
No último dia vinte de abril, o Papa Francisco, ao aparecer no balcão da Basílica Papal de São Pedro, abençoou os fiéis e depois fez uma breve passagem pela praça. Não sabíamos que esta seria a sua última aparição. Na madrugada do dia vinte e um de abril, após um processo de enfermidade, o santo padre retornava à casa de Deus.
A notícia que surpreendeu o mundo aos poucos trouxe consigo a saudade de um papa pastor, muito atento às necessidades das pessoas e aos problemas do mundo. Imediatamente nos veículos da imprensa e nas mídias sociais abundaram homenagens, mensagens, fotos e até mesmo críticas. Análises sobre o pontificado e o legado deixado por aquele que se apresentou como vindo do “fim do mundo” foram destaque nas páginas dos jornais e nas conversas informais.
Nada do que é humano ficou fora do coração de Francisco: os pobres e marginalizados, as crianças vítimas de maus tratos, os idosos esquecidos, as mulheres descartadas, a guerra que devasta os povos, a casa comum sendo violentada, questões internas da vida da Igreja Católica, e tantos outros temas delicados e sensíveis, foram encarados por aquele que ocupava a cátedra de Pedro.
Francisco, em sua reflexão, chamou a atenção para o perigo na sociedade hodierna, de dissimular a realidade, em favor de uma espiritualidade intimista, negando que existem pessoas sofrendo ou situações dolorosas e marginalizantes, que exigem uma resposta da comunidade de fé.
De acordo com o Papa: “O mundano ignora, olha para o lado, quando há problemas de doença ou aflição na família ou ao seu redor” (Gaudete et Exsultate, 2018, n. 75). Ignorar, ou fingir não ver, é a palavra-chave de uma sociedade ensimesmada. E continua o Papa: “O mundo não quer chorar: prefere ignorar as situações dolorosas, cobri-las, escondê-las. Gastam-se muitas energias para escapar de situações em que está presente o sofrimento, julgando que é possível dissimular a realidade” (Gaudete et Exsultate, 2018, n. 75).
A partir dos documentos, discursos e mensagens, é possível perceber que Francisco buscou dar voz àqueles que não a tem. Suas palavras fazem eco ao grito do povo que clama a Deus, a exemplo do sangue de Abel morto por seu irmão Caim (cf. Gn 4,10); de José vendido pelos irmãos (cf. Gn 37,28); ou do próprio Jesus traído e entregue, com um beijo, por seu amigo (cf. Jo 18,2-3).
Somos todos irmãos, nos recorda o Francisco de Roma, sendo preciso criar proximidade e favorecer a cultura do encontro (cf. Fratelli Tutti, 2020, n. 30). A mudança na conduta moral é reflexo de uma espiritualidade bem encarnada, uma vez que propicia olhar e iluminar as situações angustiantes e desesperadoras da condição humana. A oração precisa despertar o profetismo que se levanta para defender direitos, para denunciar injustiças, para despertar a consciência crítica da realidade, não assistindo a tudo passivamente.
A autêntica espiritualidade impele à construção do Reino inaugurado por Jesus de Nazaré que, para fazer uso das palavras de Castillo: “antes de ser um projeto de atividade pastoral, é um projeto de humanização das pessoas, um projeto de vida e de felicidade para todos os que sofrem” (CASTILLO, 2012, p. 27.) O Reino, portanto, não é meramente uma ideia ou um plano, é antes, e acima de tudo, o lugar pleno de realização e humanização dos homens e mulheres de todos os tempos e lugares.
Bergoglio ao escolher o nome de Francisco, em referência ao Francisco de Assis, e ao inclinar-se no balcão da Basílica de São Pedro para dar a sua primeira bênção, depois de eleito, disse ao mundo o que seria o seu pontificado: fraternidade e sinodalidade, um caminho de discernimento! Um pontificado marcado pela acolhida, pela misericórdia, pelo riso sincero e apertos de mãos firmes.
O Papa fez reformas não apenas na cúria romana ou nas questões litúrgicas, mas convidou a uma grande reforma interior, e, outras palavras, uma mudança de mentalidade. Assim, Francisco, fez fortes apelos em favor da paz, em inúmeras audiências gerais. O lava-pés nas prisões de Roma ou o báculo feito de madeira do barco de imigrantes que naufragaram, utilizado por ele, em Lampedusa, no ano de 2013, constituem gestos eloquentes. Ao caminhar pela praça de São Pedro vazia, durante a pandemia, para dar a bênção Urbi et Orbi, a benção reservada às grandes celebrações da Igreja, Francisco recordou que ninguém se salva sozinho.
Não faltaram, naturalmente, críticas e resistências ao seu pontificado, entretanto, Francisco soube transitar tranquilamente, enquanto a barca de Pedro era agitada por inúmeras ondas. A presença de inúmeras personalidades no seu funeral constitui um sinal de contradição, considerando que muitas das denúncias feitas por ele falavam diretamente às pessoas que ali estavam. Construir pontes e não levantar muros, não foi apenas um discurso do Papa, mas de alguma maneira se tornou o seu lema diário. Ao exortar, corrigir e orientar, o Santo Padre exercia o múnus derivado de seu ministério petrino: Confirmar os irmãos!
O homem de hábitos simples, coração pulsante e olhar cativante fez com que muitos olhassem para Roma com esperança. Pode-se dizer até que o Francisco de Roma é como um dos “‘poetas sociais’ que à sua maneira trabalham, propõem, promovem e libertam” (Fratelli Tutti, 2020, n. 169). Seu túmulo despojado, ao lado da Salus Populi Romani, apresenta somente a inscrição Franciscus. Simplesmente Francisco!
Os novendiali se encerram e também se encerra o tempo de luto pelo pontífice defunto. Chega ao fim o pontificado de Francisco, mas não o seu espírito. O legado de Francisco deve continuar em todos os que, de uma forma ou de outra, se sentiram tocados pelo Romano Pontífice. Continuemos a fazer eco dos seus ensinamentos, de sua postura e de seus gestos. Seu pontificado seja grande entre nós e que Francisco seja lembrado por todo o sempre!
Referências
BÍBLIA DE JERUSALÉM. Edição revista e ampliada. São Paulo: Paulus, 2013.
CASTILLO, José Maria. Espiritualidade para insatisfeitos. São Paulo: Paulus, 2012.
FRANCISCO. Fratelli Tutti: sobre a fraternidade e a amizade social. São Paulo: Paulinas, 2020.
FRANCISCO. Gaudete et exsultate: sobre o chamado à santidade no mundo atual. São Paulo: Loyola, 2018.
Imagem: Presidencia de la República Mexicana/Wikimedia Commons
