Estudos Sobre Morte e Pós-morte

ENTREVISTA – Pastor André Anéas

Entrevistas com líderes religiosos: morte, luto e pós-morte

Quando criamos o grupo de pesquisa MORTE E PÓS-MORTE, no início de 2020, reunimos pesquisadores diversos: advogados, jornalistas, psicólogos e tantos outros. Percebemos ao longo deste processo que todos têm seus talentos e inclinações distintas: uns para comunicações orais, outros para escrita, e todos, sem exceção, com interesse profundo na nossa temática. Muitos projetos estão sendo encaminhados e vários deles fruto de um interesse pessoal, íntimo e que fazemos questão de acompanhar e estimular. O projeto da pesquisadora Maria Cristina Baptista Navarra é um deles. A pesquisadora entrevista líderes religiosos com muita profundidade e sensibilidade, trazendo reflexões essenciais para o nosso mundo contemporâneo. Aproveite a leitura!

Andréa Kogan e Cris Guarnieri

Pastor André Anéas

IGREJA EVANGÉLICA BATISTA
Caminhos independentes ao encontro de uma religião: a fé como manifestação pública da escolha de viver de acordo com a vontade de Deus


No entendimento e modo de vida contemporâneos, a ciência e a razão foram elevadas a categorias superiores, pois atenderiam por si só a toda e qualquer demanda do ser humano. Mas essa postura não retirou o espaço relevante que a religião ocupa na sociedade, em razão do questionamento que existe em todo indivíduo pelo simples fato de sua existência, de sua relação com os valores que o transcendem e sua inegável dificuldade em lidar com a morte.

Nessa busca por respostas e acolhimento espiritual, antes mesmo do surgimento da Reforma Protestante e sem vínculos com a Igreja Católica, surge a Igreja Batista, fundada sobre os pilares da liberdade religiosa e da consciência, tendo como uma das principais doutrinas o Batismo de adultos por imersão e a confissão da sua fé em Jesus Cristo e que, através dos tempos, se organizou de forma a defender, entre outros, os Princípios da Responsabilidade individual diante de Deus e da Separação entre Igreja e Estado, reconhecendo cada Igreja Batista local como comunidade autônoma e democrática.

Tais premissas se mostram extremamente atuais, não apenas por tocarem em temas que nos são extremamente caros, como liberdade e responsabilidade, mas também por tratarem a fé de uma forma racional, o que poderia ser entendido como contraditório quando se trata de afetos, emoções e intuições.

Quem esclarece se tal compreensão seria contraditória ou apenas uma forma simples e objetiva de exercer a espiritualidade, e explica o que é ser um Batista, sua Filosofia, Crenças e Dogmas, é o Pastor André Anéas, Doutorando e Mestre em Teologia pela PUC-SP, bacharel em Teologia pela Faculdade Teológica Batista de SP, Pastor Titular da Igreja Batista de Quitaúna, Osasco, SP, desde 2019.

O Pastor André Anéas foi educado entre o catolicismo de seu pai, que foi coroinha de Igreja Católica, e o Evangelicalismo de sua mãe, que frequentava a Igreja Batista quando criança, circunstância que sempre o deixava em dúvida ao ter que responder, em algum formulário da escola, qual era sua religião. Só por volta dos 12, 13 anos é que essa situação foi definida, após seus pais participarem de um encontro de casais organizado por uma Igreja Evangélica de denominação norte-americana e abraçarem essa religião. Foi quando, então, fez o rito de conversão declarando que havia aceitado Jesus como o único Salvador.

Em meados de 2008, com aproximadamente 20 anos, sentiu o chamado da vocação para o ministério pastoral e procurou discernir o que significava esse sentimento, ingressando em um Seminário para estudar Teologia, primeiro um curso livre e, em seguida, um bacharelado. Quando começou a entender, a ter a percepção que Deus o havia chamado para um propósito e, mesmo sem saber exatamente qual era, mas sabedor de que de alguma forma seria preparado, buscou o estudo teológico de uma maneira mais séria, acadêmica e rigorosa.

Esse caminho logo teve desdobramentos, com um de seus professores o chamando para ajudá-lo em uma Igreja Batista. Após o término do seminário, passou pelo processo denominado “Concílio Pastoral”, no qual se reúnem pastores que avaliam a capacidade e aptidão do indivíduo para o exercício do Ministério Pastoral, sendo aprovado e nomeado Pastor Batista Auxiliar, até ser convidado para ser Pastor Titular da Igreja Batista de Quitaúna, na cidade de Osasco, onde está hoje.

Aqui deve ser ressaltada a autonomia da Igreja Batista em relação às próprias decisões, uma vez caber à igreja local, junto com os fiéis, determinar quem será o novo Pastor. Essa autonomia não impede ou proíbe previsões estatutárias de eventuais requisitos para o Ministério Pastoral como, por exemplo, instrução formal ou vínculo à Ordem dos Pastores Batistas do Brasil, órgão que regulamenta a função pastoral dos Batistas.

Por outro lado, não adianta apenas a instrução formal ou o cumprimento dos requisitos, como explica o Pastor André, uma vez que “quem precisa te reconhecer como pastor é a comunidade. Então, esse chamado de Deus, esse sentir-se vocacionado, obrigatoriamente, na estrutura Batista, tem que ser acompanhado de uma percepção comunitária, de que, de fato, o indivíduo tem o dom para pastorear, tem jeito com as pessoas e para pregar. É lógico que nesse processo ele vai se aperfeiçoando, teologicamente ou homiléticamente. Mas sempre há necessidade dessa verificação comunitária.”

Especificando a questão do dom, da vocação para o Ministério Pastoral, o Pastor André complementa que essa é uma experiência extremamente subjetiva, que não se trata de um anjo descer do céu e dizer “você vai pastorear a Igreja Batista de Quitaúna”. A percepção do chamado vocacional exige uma busca e descoberta gradual, um envolvimento com a igreja e a comunidade, que em seu caso começou no ingresso do movimento da música, tocando guitarra, violão, passando a cantar e, finalmente, a falar com a comunidade. Surgiu, então, uma oportunidade para pregar, posteriormente dar aula, e nesse processo foi sendo acolhido, incentivado a continuar e procurado para dar conselhos espirituais e instrução teológica, concluindo que “é um casamento que acaba tendo a confirmação de que realmente foi chamado a partir do próprio povo, que te reconhece como tal”, porque, para a Igreja Batista, o reconhecimento comunitário é essencial.

Já o que define um Batista são os seus princípios, porque, como explica o Pastor André, as igrejas são autônomas e não estão, necessariamente, vinculadas às crenças – embora exista um mínimo denominador comum em relação ao que se crê. Por isso é praticamente impossível a sua homogeneização. Também não há papa, não há um líder Batista, mas, sim, uma convenção entre as igrejas autônomas, que voluntariamente decidiram se unir, a fim de otimizar algumas práticas, alguns projetos.

Um dos princípios mais caros aos Batistas é a absoluta Liberdade Religiosa e de Consciência, a liberdade de expressar a própria fé, que deve ser garantida pelo Estado, mas com estrita observância da separação deste da Igreja, em razão do entendimento de que a religião está entre Deus e o indivíduo, e ao Estado não cabe responder por ela e nem ser o juiz dessa relação. A origem de tal princípio é o fato de a Igreja Batista ser parte de um protestantismo histórico que antecede os movimentos pentecostais e ter sido perseguida por sua própria convicção.

Assim, a democracia está completamente dentro do que significa o ser Batista, a identidade Batista, e o Pastor André afirma “você pode ser o que quiser, católico, da umbanda, espírita, desde que a minha liberdade para ser o que eu quero ser, seja preservada”. Mesmo participando da Convenção Batista Brasileira ou da Convenção Batista Nacional, por exemplo, a igreja local possui completa e absoluta autonomia para decidir, definir o que quer, e mesmo que exista o risco de ser convidada pela convenção a se retirar, ainda que isso ocorra, não deixa necessariamente de ser Batista, se os princípios Batistas forem mantidos.

Até então, ficou muito clara a parte administrativa, a estrutura, a defesa incondicional da absoluta liberdade religiosa e da democracia na profissão de fé da Igreja Batista, mas à questão da espiritualidade não é atribuída tal ênfase – mesmo considerando a importância dada ao batismo. Essa diferença de tratamento poderia ser interpretada como um embate entre razão e fé, embora, na atualidade, se venha buscando o entendimento do binômio Razão e Fé como conciliação e não oposição, visando alcançar a contemplação da verdade absoluta, como reflete a Carta Encíclica FIDES E RATIO do Sumo Pontífice João Paulo II (1):

A Fé e a Razão (fides e ratio) constituem como que as duas asas pelas quais o espírito humano se eleva para a contemplação da verdade. Foi Deus quem colocou no coração do homem o desejo de conhecer a verdade e, em última análise, de conhecer a ele, para que, conhecendo-o e amando-o, possa chegar também à verdade plena sobre si próprio. (JOÃO PAULO II, 2021, p. 5)

Da mesma forma, HESCHEL (2) fala sobre Razão e Fé como forças conjuntas:

O pensamento religioso é um esforço intelectual que nasce nas profundezas da razão. É uma fonte de percepção interior cognitiva, centrada nos assuntos mais importantes para a existência humana. A religião é mais do que um estado de espírito ou um sentimento. O judaísmo, por exemplo, é uma forma de pensar, não somente uma forma de viver. Se não compreendermos suas categorias e seu modo de percepção e de avaliação, seus ensinamentos permanecerão ininteligíveis (HESCHEL, 2021, p. 116).

O Pastor André Anéas explica essa questão, cuja origem está no próprio surgimento da Igreja Batista, que é parte de um protestantismo chamado protestantismo histórico que antecede os movimentos pentecostais. Isso significa que o Batista histórico não é pentecostal, este sim voltado para o aspecto pneumatológico, para a questão do Espírito Santo, sua manifestação, força mística e dons, elementos relacionados ao êxtase espiritual, ao ser cheio do Espírito Santo, se revelando com os movimentos carismáticos, algo que no segmento protestante é mais claro, mais nítido.

Já os Batistas não possuem esse viés carismático, embora nada impeça que uma Igreja Batista seja mais “avivada”, com uma expressividade litúrgica mais pentecostalizada, justamente em razão de sua autonomia. Mas, de uma maneira geral, o importante para os Batistas é o indivíduo e sua liberdade de explicar, de professar sua fé em Jesus Cristo, de prestar seu testemunho, da crença em Jesus como seu único e suficiente Salvador.

No momento em que tem certeza dessa crença, a pessoa estará apta a ser batizada em igrejas históricas. E essa é a razão de a Igreja Batista não batizar crianças, porque ainda não possuem a capacidade de decidir, escolher e responder pela própria fé, revelando-se com isso, mais uma vez, a liberdade religiosa e de consciência do indivíduo.

A importância do Batismo está, justamente, na representação da livre escolha e responsabilidade por tal opção – tanto que a sua formalização ocorre nas águas, na imersão, momento em que “a pessoa morre para o mundo e nasce pra Jesus, o velho homem morre e nasce o novo homem, essa é a simbologia do batismo. Então ele está testemunhando publicamente aquilo que aconteceu interiormente”, como explica o Pastor André, acrescentando que não se trata de um sacramento, no sentido de ser meio de graça, porque ninguém é salvo por ser batizado, mas sim “o batismo é um símbolo, é um símbolo em que a pessoa dá um testemunho público”.

Mesmo verificando essa visão mais intelectualizada, mais racional da fé, a questão da espiritualidade é refletida na forma como o Batista vive e expressa essa fé: na comunidade e na igreja, no culto, no louvar a Deus através do canto e da oração, individual ou coletiva, da escuta de mensagens. E o Pastor André complementa “acho que aqui está o ponto muito alto, especialmente para os Batistas mais tradicionais, menos avivados ou, digamos assim, menos influenciados pelos pentecostais, que é o púlpito, a pregação, que é uma coisa caríssima”. E novamente estamos diante da ênfase na intelectualidade, a pregação e o ensino, tão caros aos Batistas.

Diante do questionamento da Igreja Batista ser uma religião mais racional no sentido teológico, o que seria contraditório em relação à fé, que é afeto e sentimento, o Pastor André confirma que o Protestantismo, de uma maneira geral, tende a ser mais racional. Contudo, também reconhece que talvez seja esse o motivo que o leve a pesquisar tanto a questão da experiência de Deus, da mística, como uma espécie de autocrítica ao próprio movimento, considerando que a pessoa pode professar sua fé da forma esperada, teologicamente correta, integrar a comunidade, mas a questão da sua espiritualidade fica em segundo plano:

Nosso positivismo moderno, nossa racionalidade, nossa lógica, nossa Ciência, não dá conta da existência. Assim, a mística é a epistemologia por excelência, pois nela se produz a humildade necessária diante do nosso intelecto limitado para compreender os fenômenos do mundo. Não damos conta de um pássaro engaiolado. Quem sabe, a humanidade apenas finge que o engaiola. Estudar mística nos coloca diante do mistério, e nos põe em nosso lugar. (ANÉAS, 2020, p. 28) (3).

Nesse sentido, e até por conta de sua biografia, sua caminhada intelectual, buscando ser um Batista autêntico, o Pastor André tenta imprimir na sua comunidade uma vasta oralidade que tenha compromisso com a tolerância, a liberdade para pensar, o livre exame, que são valores Batistas.

Por outro lado, mesmo com o racionalismo e sem a ênfase pentecostal nos dons do Espírito de uma forma mais carismática, explica que os Batistas também têm o Espírito Santo – sendo que há Pastores que não apenas acreditam, como ensinam sobre essa questão e também há aqueles que são Cessacionistas, que creem não existirem mais dons espirituais e o dom de profecia estaria restrito à manifestação da profecia escrita na Bíblia Sagrada. Sempre lembrando que tais posturas apenas refletem a autonomia que cada igreja local possui, que um único Pastor não tem o poder de falar em nome dos demais e cada Pastor é uma espécie de papa dentro da sua igreja, embora a assembleia de crentes, exercendo seu poder de voto, detenha a última e soberana palavra.

O Pastor André, por sua vez, crê na existência dos dons espirituais, da relação do humano com Deus e que tal relação é real, é possível, que todo evangélico, de uma maneira geral, crê nesse contato pessoal com Deus. Por isso, dentro da sua comunidade, incentiva que cada pessoa, cada indivíduo, e todos da comunidade como um coletivo, busquem essa relação com o Sagrado, construindo uma espiritualidade que compreenda a relação homem e Deus como real, que pode acontecer, e Deus deixe de ser uma abstração. E procura ser coerente com aquilo em que acredita, que o “Pastor da Igreja” e o “Acadêmico” que habitam dentro dele vivam em harmonia, e tenta empregar essa percepção na sua comunidade de fé, “da possibilidade de você ter uma experiência com Deus, uma experiência pessoal com Deus e você vai entender que a razão não dá conta de tudo. É buscar, dentro de si, o equilíbrio entre as emoções e a razão, ter uma experiência integral de Deus, que envolva tanto a intelectualidade, a razão, a lógica, a discussão, quanto a questão dos afetos, das emoções. Espiritualidade essa tão bem definida por Rubens Alves (2017, p. 122) “Espiritualidade: a busca desse desejo perdido, desejo de vida, que nos libertaria dos desejos de morte que nos petrificam… É preciso voar…” (4)

Questionado, então, se nessa busca teria vivenciado alguma experiência mística, alguma manifestação de algum dom do Espírito Santo nele mesmo ou em algum fiel, o Pastor André não apenas responde afirmativamente, como ressalta que acontece diariamente, variando tão somente a intensidade. Não se trata de experiências extraordinárias como as descritas na Bíblia Sagrada, mas de experiências constantes que dependem do olhar que cada um possui, da análise que é feita das situações, para que possam ser percebidas na sua trivialidade[FCS1] [CdM2] . Essas experiências acontecem quando a pessoa vai servir um café da manhã a um morador de rua, para ajudá-lo, e naquele momento sente a presença de Deus e o modo de ver sua vida muda totalmente; ou mesmo durante uma pregação, em que a pessoa recebe a palavra de uma maneira especial, porque era justamente o que ela precisava ouvir naquele momento, e conta um caso específico quer aconteceu com ele:

“A gente estava com um problema, situação bem delicada na igreja, no âmbito mais administrativo, recentemente. E eu, como líder da comunidade, bem angustiado, preocupado. E aí tem uma senhora que vem só no culto de manhã, com o pessoal mais de idade. Ela se senta sempre lá no fundo, do lado esquerdo, mas nesse dia ela quis falar comigo, mesmo muito envergonhada, e ela disse ‘tô sentindo no meu coração que eu queria orar pelo senhor’. Falei, ‘Está bom, minha irmã, pode orar por mim’. E ela orou pedindo para Deus cuidar das minhas angústias, cuidar da minha alma, pacificar meu coração. (Ela) Não sabia absolutamente nada do que estava acontecendo. E nada aflorou para mim naquele dia. Depois, no culto posterior, ela novamente se dirigiu a mim e disse ‘Tome cuidado aqui e tome cuidado ali, tenho orado pelo senhor’. Então, assim são coisas que eu leio. Como que são? É mistério, não está na ordem da razão assim. Por que ela decidiu, naquele dia, naquela semana, naquele momento, sentir Deus e orar por mim? E foi tão assertiva, tão categórica? Não é uma irmã que está envolvida com lideranças da igreja, com diretoria, com nada. E, então, são coisas assim que vão acontecendo e você vai discernindo, vai percebendo. E a gente pode chamar de mover de Deus, do Espírito soprando, pode dar vários nomes, teológicos bonitos para entender isso que está na categoria do mistério.”

No que diz respeito à forma pela qual a morte é tratada pela Igreja Batista, seu enfrentamento, o Pastor afirma não haver resistência a esse tema, compreendido pelo Novo Testamento como uma inimiga a ser vencida. No momento em que ressuscitou, Jesus derrotou a morte. Então, a compreensão é, ao entregar a vida para Cristo, ao viver em Cristo, tendo Ele como mestre e ser seu discípulo, a morte física é, na verdade, uma abertura para a própria vida eterna. E continua “a morte não é o ‘dead line’, não é ‘o fim do trilho’, é algo a ser superado, algo a ser vencido e vai ser vencido, porque existe uma esperança escatológica, dentro da nossa maneira de entender o texto sagrado, de que a morte não é o término”. Muitas vezes o culto fúnebre é um lugar de sentimentos complexos, uma mistura de tristeza pela ausência, saudades do ente querido que partiu, com alegria e gratidão a Deus pela vida e certeza de que o falecido está desfrutando da vida eterna. E o Pastor ressalta que esse entendimento é tanto para os que creem como para os que não creem, porque a graça de Deus é poderosa e pode salvar até o último minuto.

Mesmo diante da insistência sobre a forma concreta como os fiéis lidam com a morte ou a sua proximidade, a angústia, o medo, a negação, sentimentos inerentes ao ser humano, se a religião fortalece e o ensinamento realmente entra na alma do indivíduo, o Pastor André afirma com segurança que, embora sempre haja pessoas com entendimentos diversos, muitos fiéis da igreja que pastoreia têm uma convicção absurda nesse ensinamento. Creem em absoluto que aquele irmão falecido está melhor que nós e, de tal maneira, que isso não chega a ser uma angústia, um tabu, um problema, uma questão. E como diz Rubens Alves (4):

O medo não é uma perturbação psicológica. Ele é parte da nossa própria alma. O que é decisivo é se o medo nos faz rastejar ou se ele nos faz voar. Quem, por causa do medo, se encolhe e rasteja, vive a morte na própria vida. Quem, a despeito do medo, toma o risco e voa, triunfa sobre a morte. Morrerá, quando a morte vier (2017, p. 360)

Assim, para os Batistas, a morte é um acidente de percurso que, dependendo do contexto em que acontece, a fé do indivíduo é forte o suficiente para fazê-lo ter forças para caminhar, superar e passar por isso. No entanto, reconhece que o Pastor precisa trabalhar esse luto de outras maneiras na Pastoral, para que não se torne muito mais complexo e difícil do que já é, e existem todas as razões para isso. E, mais uma vez, permitindo que seja conhecida a sua profunda e sincera relação com a religião Batista e seus afetos, o Pastor André afirma:

Eu acho que (a morte) faz parte da experiência humana mesmo. E confesso que estou mais para o lado da experiência humana. Eu confesso que, às vezes, a fé de alguns irmãos me surpreende por demais. Porque eu fico incomodado com a morte. A morte é algo que me incomoda demais. É horrível você ter que fazer culto fúnebre. É um negócio que não é legal. Agora, sim, um sepultamento de um senhor de 91 anos, sabe? Foi crente a vida inteira. Se dedicou à igreja. É uma coisa, você pode até mais. Mas descansou. Eu também estou acompanhando o sofrimento. Às vezes, o senhor está com incontinência urinária, está tendo que usar fralda, coisa que nunca precisou na vida inteira. Então há essa percepção do descanso. E aí eu acho que a teologia é essa escatologia que dá esperança. A gente encontra um acolhimento nessa verdade de fé. Agora existem situações mais complexas, que a gente precisa trabalhar. Eu tento conscientizar os irmãos que ora a morte é de fato uma inimiga, no sentido de que isso nos incomoda. Não está errado você sentir, não saber explicar. Não está errado você passar pelo luto. Não está errado você só chorar e não conseguir encontrar esperança. Não está errado isso. Então eu acho que não é a questão de certo, errado. Acho que é uma questão de experienciar a vida, e faz parte de quem vive ter que lidar com a morte.”

Em relação ao pós-morte, a teologia Batista é muito cautelosa. Não deseja se tornar especulativa sobre o que acontece “do lado de lá”, tendo em vista que o texto bíblico não é muito claro sobre essa questão, não dá subsídios para sistematizar uma escatologia, um pós-morte descrito em minúcias, não havendo, assim, uma preocupação com esse tema.

O Pastor explica que, tradicionalmente, existem alguns consensos sobre um destino final, que pode ser um estilo de vida eterno ou de perdição eterna, o que, grosso modo, seriam o céu e o inferno. O texto bíblico dá muitas margens sobre como seria esse céu e, por exemplo, fala de uma nova Jerusalém que desce do céu, dando a impressão de tratar-se dessa própria terra que será restaurada para ser aquilo que deveria ter sido no Éden, na criação. Diante de tais elementos, entende que Deus não teria uma proposta de um céu metafísico, o que estaria mais parecido com Agostinho, Platão e com o neoplatonismo do que com a Bíblia. Gênesis 1 e 2 também apresenta o modelo de como seria esse céu, e é um céu muito parecido com o de Dante Alighieri.

Então, de acordo com a concepção teológica do Pastor André “o céu vai estar muito mais parecido com isso, só que sem muitos problemas e dificuldades que nós temos do que uma abstração metafísica”. Existe a percepção dessa vida eterna e dessa perdição eterna, mas os Batistas não creem em purgatório, em ambientes intermediários. Também não creem em reencarnação, mas sim que todo mundo é destinado a viver uma única vez, responder diante da sua própria vida e diante de Deus. Existem várias posições teológicas relativas à vida eterna, assim como também sobre o inferno, algumas correntes escatológicas que tentam ler a escritura e interpretar esse pós-morte, mas o Pastor André é taxativo ao afirmar que, para ele, “é um assunto desinteressante, inútil, totalmente especulativo”, pelo qual não possui o menor interesse, entendimento em plena consonância com HESCHEL, que, em uma entrevista, ao ser questionado que não escrevia sobre a vida após a morte, afirmou

Creio que é assunto de Deus o que fazer comigo depois de minha morte. Mas, aqui, é assunto meu o que fazer com a minha vida. Deixo isso para ele. Estou tão ocupado em tratar de viver uma boa vida, e nem sempre consigo, que não tenho mais tempo de me preocupar com o que Deus fará comigo uma vez que esteja no túmulo. Quem sabe o que Deus espera de mim no túmulo? (HESCHEL, 2021, p. 112)

Realmente importante na prática pastoral é o elemento escatológico que dá esperança no pós-morte. Isso é caro ao Pastor, porque, ao lidar com a morte, não é necessário ter uma resposta definitiva, mas um alento é imprescindível.

Por fim, ao ser questionado se achava que a sua vocação como pastor era um dom, o dom da fala, da comunicação, concedido pelo Espírito Santo, o Pastor André declara ter convicção que sua vocação tem a ver com o Espírito Santo, tem a ver com o dom. E, no caso da questão pastoral, envolve o que ele chamaria de Pessoa-Dom, que está em Efésios 4:11, na carta de Paulo aos Efésios, dizendo que Jesus chamou alguns para pastores e mestres. Por isso, afirma com muita tranquilidade, e com sua característica espontaneidade, achar que realmente é um dom, porque “antes desse dom ser derramado sobre mim, essa chamada de Deus, enfim, eu não tinha o menor interesse, nunca tive, nunca quis falar em público, nunca quis ficar lidando com gente, nunca quis nada disso. Nunca fui simpático a isso e por ter essa experiência é que isso foi sendo trabalho. A maneira que eu considero algo do Espírito mesmo, ou seja, o André, digamos assim, nato, do jeito que ele é, sozinho com o que ele tinha antes dessa experiência, ele não daria conta, em hipótese alguma, de uma prática pastoral dessas. Em contrapartida, o André, depois dessa experiência, é o André que tem condição de pegar na mão de Deus, de conseguir escutar, de confiar que durante a semana vai ter o ‘insight’ necessário para subir no púlpito, para pregar o sermão que tem que ser pregado. Então, sem dúvida nenhuma, eu acredito nos dons espirituais, em todos eles. Não tenho dificuldade nenhuma com isso. Como eu te disse, a gente não tem uma ênfase na questão carismática. Mas eu acredito que sim, que a questão de ser pastor tem a ver com uma questão de dom, de chamado, não tenho dúvida, porque senão o camarada não aguenta.

Referências Bibliográficas

PAPA JOÃO PAULO II, Carta Encíclica ‘FIDES ET RATIO’ aos Bispos da Igreja Católica Sobre as Relações Entre Fé e Razão. Ed. Paulinas, SP, 2010.

HESCHEL, Abraham Joshua, O Último dos Profetas – Uma Introdução ao Pensamento de A. J. Heschel. SP, Comunidade Shalom, 2021.

ANÉAS, André, Diálogos sobre a experiência de Deus. SP, Ed. Recriar, 2020.

ALVES, Rubens, A Eternidade numa hora. SP, Ed. Planeta, 2017.

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Sobre o autor

Maria Cristina Navarra

Advogada pela PUC-SP, graduada em História pela FFLCH da USP, mestranda em Ciência da Religião PUC-SP e pesquisadora do Grupo de Estudos sobre Morte e Pós-Morte do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ