Estudos Sobre Morte e Pós-morte O Vazio Existencial na Contemporaneidade

A tênue linha entre o luto saudável e o patológico

Tire o seu sorriso do caminho, que eu quero passar com a minha dor*

A pergunta não é “se um dia vamos partir ou enfrentar um luto”. As perguntas são“Como?”; “Quando?”; “Por quê?”

A verdade é que todo mundo sabe que vai morrer, por mais que se negue isso a cada segundo, inclusive para nós mesmos. Outra dura realidade: todos sabem que, caso sobrevivam e envelheçam com saúde, um dia vão enfrentar um luto pelo falecimento de alguém muito próximo – pai, mãe, avós, cônjuges – e, às vezes, a finitude subverte a “ordem natural das coisas”, com um filho partindo antes dos pais, levando-os à dor extrema de uma partida.

A consciência da finitude pode nos paralisar ou, quem sabe, nos levar a viver da melhor forma possível e honrar nossos amores. Será que conseguimos expressar em palavras o que é um luto? Alguns pesquisadores o definem como um conjunto de reações emocionais, físicas, comportamentais e sociais que surgem como resposta a uma perda significativa. O luto é uma resposta universal e natural à perda de um ente querido, sendo esse um acontecimento estressante, que a maioria das pessoas terá que enfrentar ao longo da vida. Não à toa, Viktor Frankl criou o que chamou de tríade trágica: a dor, a culpa e a morte, como os três aspectos que todo ser humano, indubitavelmente, enfrentará ao longo de sua existência (FRANKL, 2019, p. 161).

Nas palavras da autora Chimamanda Adichie: “O luto expõe novas camadas de mim, raspando escamas dos meus olhos. Arrependo-me das minhas antigas certezas, você certamente deve vivenciar seu luto, falar a respeito, encará-lo, atravessá-lo” (ADICHIE, 2021, p. 23).

Diante da morte de um ente querido, a maioria das pessoas desenvolve um processo de luto considerado normal, segundo a opinião de médicos e especialistas, pois gradualmente se tornam capazes de encarar a realidade da perda e de retomar os seus interesses, atividades habituais e o trabalho. No entanto, uma parcela significativa da população enlutada tem dificuldade em lidar com a perda e pode desenvolver sintomas debilitantes de ordem física, mental, comportamental e incapacidade funcional persistente. Sabe-se atualmente que, entre os extremos de uma reação de luto adaptada – não merecedora de intervenção especializada – e as síndromes psiquiátricas que podem se desenvolver após uma perda, há uma população intermediária de indivíduos que apresentará complicações no processo de luto, cuja severidade e duração dos sintomas justificam intervenção terapêutica. Reações patológicas distintivas do luto prolongado se definem principalmente pela gravidade dos sintomas, que persistem por seis meses ou mais, após a morte do ente querido. A avaliação da severidade das manifestações de luto, por um lado, permite evitar que se rotule como patológica uma reação normal e, por outro, favorece o reconhecimento do sofrimento e da necessidade de garantir suporte para um melhor ajustamento à situação de perda.

“Um ano é o tempo em que a pessoa vive pela primeira vez as grandes datas expressivas que evocam a falta da pessoa”, explica a psicóloga Maria Helena Franco, professora da PUC-SP e autora do livro O Luto no Século 21. “A patologização do luto já existe. Tem gente que vê a pessoa chorando há uma semana e acha que tem que prescrever um antidepressivo. É importante acompanhar o processo. Avaliar não só os fatores de risco, mas também os fatores de proteção, a rede de apoio”, diz Franco (Folha de São Paulo, 2021).

Um debate que pode ser frutífero é se a nova classificação do luto prolongado enquanto patologia não irá exacerbar a medicalização do luto. Será que a sociedade não pretende, com essa medida, calar o luto, calar a morte e a dor, cedendo a um tipo de negacionismo e a uma positividade vazia de sentido? (MAZZIERO, 2021, off-lattes). É normal – esperado até – que uma pessoa tente evitar o sofrimento. No entanto, na medida em que surge a possibilidade de patologização do luto, pode-se também chancelar essa negação, reforçando o tabu contemporâneo que condena esse processo tão necessário. A busca incessante pela felicidade e a recusa em aceitar o sofrimento como parte da existência são, igualmente, promotores de sofrimento.

A autora Noemi Jaffe relata, em sua obra, seu anseio por viver o luto em toda sua intensidade: “Não quero me sentir melhor, ao menos não por enquanto, porque significa a possibilidade de ir integrando a lembrança viva do toque dela, de seu rosto, do buraco de sua ausência, ao meu cotidiano. Não quero que isso aconteça. Quero continuar tendo, mesmo com a rotina normalizada, intervalos de concentração na dor e na lembrança física da presença dela” (JAFFE, 2021, p. 49).

O processo de luto, em cada pessoa, se dá de maneira diferente. Viktor Frankl defende que o ser humano é único e irrepetível, assim como o sentido para cada pessoa (FRANKL, 2020, p. 40). Na perspectiva Frankliana, assim como a vida tem um sentido, o sofrimento também o terá. Sua referência ao sentido em meio ao sofrimento num campo de concentração é a de que “O que nos importava já não era mais a pergunta pelo sentido da vida como ela é tantas vezes colocada, ingenuamente, referindo-se a nada mais do que a realização de um alvo qualquer através de nossa produção criativa. O que nos importava era o objetivo da vida naquela totalidade que inclui também a morte e assim não somente atribui sentido à “vida”, mas também ao sofrimento e à morte” (FRANKL, 2019, p. 103). Essa compreensão pode contribuir e humanizar o luto, aceitando-o com todas as suas manifestações, por vezes estranhas à realidade. Irvin D. Yalom, vivendo o luto de sua esposa Marylin, escreve que “todos sofrem de sua maneira idiossincrática” (YALOM, 2021, p. 152).

E como poderia, dessa forma, a medicina considerar patológica uma saudade? Isso não seria um risco? Estabelecer tempo-limite para a dor seria possível? O luto deixa um vazio, uma espécie de buraco, e, para alguns enlutados, esse buraco nunca fecha. Mas seguem assim mesmo ao redor desse vazio. Doenças advindas do luto, tais como arritmias, pressão alta, depressão, anorexia, essas sim talvez devam ser tratadas – mas o luto e sua imensidão de sentimentos, será que cabem em um CID, se não cabem nem em palavras? É o silêncio que se apresenta no luto, e não são soluções, nem explicações.

O luto é a derrota das palavras: “O luto é uma forma cruel de aprendizado, você aprende como ele pode ser pouco suave, raivoso. Aprende como os pêsames podem soar rasos. Aprende quanto do luto tem a ver com palavras, com a derrota das palavras e com a busca de palavras” (ADICHIE, 2021, p. 14). A patologização do luto talvez possa calar a dor com medicamentos, que anestesiam e poupam a sociedade, por vezes tão incomodada em lidar com a tristeza e finitude (do outro) de ter que responder com frases automáticas e nada consoladoras como:

– Ele tinha 60 anos… viveu bem.
– Foi descansar.
– Está melhor do que nós.
– Chegou a hora dele.
– A vida continua.

A vida continua, mas de que vida estamos falando? Falamos como se essa vida fosse o que acontece fora da morte. Não é assim. A vida continua, claro, mas agora com a morte, e não apesar ou além dela. “Um dos maiores problemas da nossa civilização atual é a separação, e até a oposição, entre a vida e a morte”. (JAFFE, 2021, p. 50).

O enfrentamento da vida – e da morte – torna-se, portanto, fundamental para todas as pessoas. Sem o enfrentamento, pouco se aprende com ambas as realidades. É assumindo a dor que tornamos possível aprender a conviver com ela. Para isso, é fundamental trabalhar na complexidade, e não na necessidade de resolução imediata. Frankl, em Der Wille Zum Sinn – traduzido nas palavras de Elizabeth Lukas – sugeria que “Toda patologia requer um diagnóstico, na diagnose, um ver através, uma referência ao logos que se encontra por trás do páthos, o sentido que o sofrimento tem.” (LUKAS, 2002, p. 14).

É preciso muito discernimento para distinguir o quanto deste luto complicado, classificado como patológico, não está relacionado à ânsia da sociedade em afogar o luto e a, avidamente, retomar uma ilusória rotina normal.

*Parte da letra da canção “A Flor e o Espinho”, de autoria de Nelson Cavaquinho.

Referências

ADICHIE, Chimamanda N. Notas Sobre o Luto. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.

FRANKL, Viktor E. Em Busca de Sentido. Petrópolis: Vozes, 2019. São Leopoldo: Sinodal, 2019.

FRANKL, Viktor E. Sede de Sentido. São Paulo: Quadrante, 2020.

JAFFE, Noemi. Lili. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.

MAZZIERO, Kelma. Os números Alarmantes e a Positividade Vazia de Sentido. off-lattes, 2021. Disponível em: https://offlattes.com/archives/9102

LUKAS, Elizabeth. Psicologia Espiritual. São Paulo: Paulus, 2002. Entrevista com Maria Helena Franco disponível em https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2021/11/luto-prolongado-passa-ser-doenca-psiquiatrica-a-partir-de-2022.shtml#:~:text=Luto%20prolongado%20passa%20a%20ser,2021%20%2D%20Equil%C3%ADbrio%20e%20Sa%C3%BAde%20%2D%20Folha&text=Este%20conte%C3%BAdo%20%C3%A9%20para%20maiores,Clique%20aqui%20para%20continuar (21/11/21 – acesso em 30/07/22).

Imagem: Stolz Gary M, U.S. Fish and Wildlife Service/Wikimedia Commons

Sobre o autor

Kelma Mazziero

Graduada em Direito, com pós-graduação em Ciências da Religião e pós-graduação em Logoterapia e Análise Existencial pela Universidade Católica Argentina (UCA). Pesquisadora do grupo de pesquisa “O vazio existencial na contemporaneidade e as possibilidades de realizar sentido” do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.

Sobre o autor

Luciana Carnial

Formada em jornalismo pela Fundação Cásper Líbero-SP, com Mestrado em Literatura e Crítica Literária. Autora do Livro “Socorro Manhê”. Integrante do grupo de pesquisa "Estudos sobre Morte e Pós-Morte", do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.