“Chega de falar de pandemia, vamos pensar positivo!”
Essa frase, dita e escrita recorrentemente pelos negacionistas, permite reflexões fundamentais para o momento em que o mundo, em especial o Brasil, atravessa. Não há como ignorar o choque entre a recusa da realidade e a realidade que se impõe, seja através dos noticiários que trazem uma montanha russa de emoções ou no próprio dia a dia a nos arrancar as pessoas de forma abrupta.
Pouco antes da pandemia, vivíamos um tempo de ilusão de potência, com frases de comando estimulando que trabalhássemos incansavelmente na busca de um futuro perfeito para construirmos coisas humanamente impossíveis. Somando-se a isso, as dicas de felicidade e plenitude que uma corrente de autores indicava serem facilmente alcançáveis em poucos passos, dando a ideia de que só era infeliz quem quisesse. Essa ideologia nos distraiu absurdamente, voltando-nos cada vez mais para nós mesmos. De repente, fomos atirados em direção ao que mais queríamos evitar: a finitude, algo que é natural da vida, mas da qual estávamos distraídos até então. A pandemia veio nos lembrar da nossa própria mortalidade.
Grande parte dos manuais de felicidade ficaram impraticáveis a partir do momento em que tivemos que mudar nosso estilo de vida, sendo obrigados a nos isolar e lidar com a morte cada vez mais presente, violando aquele mundo de conquistas anteriormente desenhado. A realidade bateu à porta e ela não é tão bonita quanto a positividade prometia. Sim, todos sabíamos que um dia morreríamos, mas não desse jeito. Nem de maneira tão aleatória. A contingência nos colocou cara a cara com nossas limitações.
De lá para cá, adaptamos muitas coisas. Algumas potencialmente interessantes, como aprender a trabalhar em casa, prestar mais atenção ao lar e a tudo o que envolve a vida doméstica – conviver entre família, enxugar compromissos para fazer o estritamente necessário, descobrir na possibilidade online um novo caminho e até encurtar algumas distâncias. Já outras adaptações se mostraram mais perversas, como encontrar formas de os filhos seguirem estudando de forma remota, tendo que muitas vezes estudar junto com eles; a perda da privacidade; rever casamentos; ou lidar com a dificuldade de manter relações à distância.
As restrições nos provaram que somos capazes de nos adaptar a (quase) tudo, afinal, “Viver é uma espécie de habilidade”(1) escreve o cirurgião Atul Gawande. Então reaprendemos a valorizar coisas simples e, em contrapartida, nos habituamos à checagem diária dos lamentáveis números de mortos. Esses números servem como baliza do perigo e como uma planilha desumanizadora: uma vez que acompanho as estatísticas, deixo de olhar para os nomes de cada vítima, consequentemente apagando cada uma dessas histórias que foram interrompidas. A planilha das mortes serve como uma referência de como devemos viver, se podemos sair de casa, se liberamos os filhos para irem à escola, se planejamos ou não nossas férias. São números sem nome, sem história, números sem rosto. Zygmunt Bauman, sociólogo, reflete essa tendência como uma obsessão por quantificar as perdas:
Em nosso mundo obcecado por estatísticas, médias e maiorias, tendemos a medir o grau de desumanidade das guerras pelo número de baixas que elas causam. Tendemos a medir o mal, a crueldade, a repugnância e a infâmia da vitimização pelo número de vítimas. (2)
Não se trata de uma apologia contra números e estatísticas, mas sim de refletir sobre o papel que eles desempenham no comportamento humano diante de situações extremas, tais como guerras, pandemias e tragédias em massa. A neurociência explica que nós conseguimos arquivar apenas o que vemos ou sentimos concretamente, tendo dificuldade em dimensionar a tragédia que os números apontam, lidando com as estatísticas num quase entorpecimento e banalizando a morte. Dessa forma, nos afastamos do cenário caótico que vivemos.
Somando a dificuldade humana na tangibilização dos números e o culto à positividade, temos diante de nós o desafio da realidade que se impõe. No olhar de quem prefere selecionar as “coisas boas”, acreditando que o pensamento positivo é como uma proteção em meio à pandemia, os números servem como um reforço para o distanciamento emocional dessa realidade. É como negar às vítimas seu direito à dignidade, deixando de compreender o significado dessas perdas.
“A negação da dignidade humana deprecia o valor de qualquer causa que necessite dessa negação para afirmar a si mesma”(3), ou seja, a positividade se esvazia de sentido ao ignorar as vidas que são diariamente ceifadas. Negar a realidade pode ser uma espécie de escolha aparentemente bem-intencionada, mas que carrega nas entrelinhas um intuito egoísta. “Sempre tivemos o egoísmo em nós, mas o direito divino de ser egoísta nunca foi defendido com tanta engenhosidade”(4), escreveu o filósofo Josiah Royce.
É partindo do entendimento de que a positividade pode ser um tipo de negacionismo que podemos ver na experiência de Viktor Frankl, neuropsiquiatra, um exemplo robusto de enfrentamento mediante a desumanização. Frankl passou por quatro campos de concentração e sobreviveu, não com frases positivas, mas plenamente consciente da realidade que o cercava. Perdeu tudo o que tinha, inclusive o nome, para se tornar um número: 119.104. Diante de um desafio desse porte, em que lidava com a possibilidade diária de extermínio, viveu na pele sua própria teoria, a Logoterapia. Nesse cenário tenebroso que foi o holocausto, Frankl optou por não fugir da realidade, enfrentando a contingência com dignidade e olhos abertos, afirmando que: “Justamente os otimistas incuráveis entre nós eram os que mais nos enervavam”(5).
Isso significa que devemos sofrer e não dar espaço algum ao otimismo, ignorando a vontade de enxergar um cenário melhor adiante?
O próprio Frankl ensina o que chamou de otimismo trágico, que é, grosso modo, a escolha pela capacidade de fazer o nosso melhor apesar das circunstâncias que se nos apresentam. Não é se anestesiar, negar ou afastar a realidade. É colocar-se de frente a ela. É estar ciente de que números e estatísticas oferecem dados, mas não definem cada uma dessas pessoas que teve sua história interrompida pela contingência. É escolher viver com sentido, ainda que viver implique aceitar a tríade trágica Frankliana: a dor, a culpa, a morte. Não ignorando, não desprezando, não minimizando a tragédia, para não perder a capacidade de enxergar o humano no outro.
Reduzir o valor de vidas é desumanizar, é relativizar o valor do outro, invalidando seu sofrimento, fechando os olhos para suas necessidades, objetificando, aceitando como algo normal quem morre sem nome, sem assistência, longe de seus entes queridos, sem poder ser enterrado com a mínima dignidade, para virar estatística. Daí a urgência em compreendermos que a morte que acontece ao nosso lado faz parte desse número altíssimo diário e que, muitas vezes, entorpece nossa consciência em relação à dimensão do que estamos vivendo.
O afastamento da realidade, seguido da sua negação, deflagra uma ilusão naqueles que temem a si próprios, como alerta a autora Andréa Kogan: “Os sentimentos que estamos experimentando agora só desaparecerão se fingirmos que não estamos vivendo”(6). É preciso aceitar que a vida não é só prazer. Que não é somente nessa suposta felicidade que o sentido será encontrado. Inclusive compreender que esse sentido pode estar presente também no sofrimento, na possibilidade da escolha pelo enfrentamento, agregando tudo isso à nossa história.
Ao olhar para o sofrimento, temos a chance de entender a contingência como parte da existência. Quando Viktor Frankl fala do encontro com o sentido, ele acolhe esse sofrimento inevitável como uma realidade da qual não é possível fugir uma vida inteira.
Não há sentido apenas no gozo da vida, que permite à pessoa realizar valores na experiência do que é belo, na experiência da arte ou da natureza. Também há sentido naquela vida que – como no campo de concentração – dificilmente oferece uma chance de se realizar criativamente e em termos de experiência, mas que lhe reserva apenas uma possibilidade de configurar o sentido da existência, que consiste precisamente na atitude com que a pessoa se coloca face à restrição forçada de fora sobre o seu ser […] Se é que a vida tem sentido, também o sofrimento necessariamente o terá (7).
Quando o medo de sofrer é a emoção que nos move e domina, acabamos ficando reféns de uma positividade vazia, sem a mínima condição de confronto com o negacionismo. Estar consciente da realidade é poder confiar na capacidade de adaptação humana para honrar as tantas mortes que estão acontecendo ao nosso redor. Afinal, cada morto tentou sobreviver à mesma ameaça que nós enfrentamos agora. Viver não se restringe a sobreviver. Trata-se de estar inteiro no momento, seja ele qual for, pois isso é parte da nossa história. Fica a questão:
Será que tem sentido todo esse sofrimento, toda essa morte ao nosso redor? Caso contrário, não faz sentido sobreviver; uma vida cujo sentido depende de semelhante eventualidade – escapar ou não escapar – em última análise, nem valeria a pena ser vivida(8).
Estar consciente, hoje, é um ato de resistência. Frankl afirma que a consciência é um órgão de sentido. Logo, enfrentar a realidade conscientemente é poder encontrar nela um sentido para vivê-la por inteiro, dizendo sim à vida, apesar de tudo (9).
Notas
1. GAWANDE, Atul. Mortais. Ed. Objetiva. Rio de Janeiro, 2015. p. 95
2. BAUMAN, Zygmunt. Amor Líquido. Ed. Zahar. Rio de Janeiro, 2004. p. 48
3. BAUMAN, Zygmunt. Amor Líquido. Ed. Zahar. Rio de Janeiro, 2004. p. 48
4. GAWANDE, Atul. Mortais. Ed. Objetiva. Rio de Janeiro, 2015. p. 123
5. FRANKL, Viktor E. Em Busca de Sentido. Ed. Sinodal e ed. Vozes. São Leopoldo – Petrópolis, 2019. p. 51
6. KOGAN, Andrea. Há fim no luto? Disponível em: https://offlattes.com/archives/8486
7. FRANKL, Viktor E. Em busca de Sentido. Ed. Sinodal e ed. Vozes. São Leopoldo – Petrópolis, 2019. p. 89
8. FRANKL, Viktor E. Em busca de Sentido. Ed. Sinodal e ed. Vozes. São Leopoldo – Petrópolis, 2019. p. 90
9. FRANKL, Viktor E. Em busca de Sentido. Ed. Sinodal e ed. Vozes. São Leopoldo – Petrópolis, 2019. p. 161
Imagem: 452,2 mil mortos