Leio Nelson Rodrigues desde os nove, dez anos. Explicarei, antes que se espantem com tal precocidade.
Passei minha infância no bairro do Maracanã, zona norte do Rio de Janeiro, a trezentos metros do estádio e o futebol sempre esteve muito presente na minha vida. Era o rumor que se ouvia, vindo das arquibancadas cheias, quando acontecia um gol; o movimento de carros e gente nas ruas; torcedores que voltavam do jogo noturno e passavam na calçada comentando os lances, e eu, já na cama, ouvia a descrição das jogadas e os nomes dos jogadores. As transmissões esportivas pelo rádio me encantavam com seus exageros, ênfases dramáticas e retóricas bombásticas e, mais ainda, os álbuns de figurinhas de jogadores de futebol que colecionava com fervor.
Passei a ir ao Maracanã com um primo de minha mãe, o Miltinho, que era vascaíno, e eu rubro-negro. Como o estádio era pertinho, íamos aos jogos todos os domingos, e ele tinha a generosidade de me levar mesmo quando o Vasco não jogava, ainda que jamais tenha sentado comigo na torcida do Flamengo. Nesse caso, assistíamos prudentemente do meio do campo.
Foi aí então que comecei a ler Nelson Rodrigues, no Jornal dos Sports e no Globo, e não parei mais. Nessa mesma época, meu pai comprava diariamente a Ultima Hora e lá estava o Nelson de “A Vida Como Ela É”. Como era leitor curioso, volta e meia passava os olhos por aquela coluna, mas devo confessar que não conseguia me entender naquele desfile de adúlteras e canalhas em acontecimentos tragicômicos. Começava a ler, mas logo passava rápido para a página do Stanislaw Ponte Preta, onde havia coisas engraçadas e fotos de mulheres bonitas.
Mais tarde, adolescente, descobri o Nelson Rodrigues da televisão, fantástico personagem das resenhas esportivas na TV Rio e depois na TV Globo, ao lado de notáveis da crônica esportiva carioca, como João Saldanha, Armando Nogueira e José Maria Scassa. Ficava fascinado com o brilho de sua inteligência, a coragem com que enfrentava os adversários, com ironia e sarcasmo, e, mesmo sendo devotado torcedor do Fluminense, adorava a sua capacidade de transcender o clubismo e falar para todos. Já sabia que ele era um admirado autor teatral, mas não conhecia sua obra, nunca havia lido nem assistido à encenação de seus textos.
Naquela época, lia as crônicas de Nelson quem lia os jornais em que eram publicadas. Depois que passei a ler menos o Jornal dos Sports, diminuí a leitura de Nelson. Nos anos 70, lia o Jornal do Brasil, e só voltei ao O Globo nos últimos anos de vida de Nelson.
Tenho a impressão de que o que me levou à sua dramaturgia foi o cinema brasileiro. Havia, desde os anos 60, uma frequente filmagem dos textos de Nelson. Boca de Ouro, Beijo no Asfalto e A Falecida têm versões produzidas nos anos 60 – o que, de certa forma, preparou o público para os grandes sucessos dos 70, como A Dama do Lotação, Toda Nudez Será Castigada, Engraçadinha e tantos outros. Eu já estava formado em Cinema e trabalhava como freelancer em funções técnicas nas equipes. Certa vez, ouvi de um diretor que era ótimo fazer Nelson Rodrigues porque não precisava nem fazer roteiro. Ele queria dizer que os diálogos enxutos e diretos, trazendo a fala das ruas com gírias e expressões populares, estavam prontos, pulsantes, sem que se precisasse alterar uma vírgula sequer. No mais, era somente uma questão de produção: escolher locações, elenco e tomar decisões técnicas. Havia a lenda de que alguns diretores não tinham mesmo roteiro e dirigiam com o livro debaixo do braço.
O encontro do menino do Maracanã com o cineasta que pretendia ser me levou ao teatro de Nelson e a algumas poucas encenações, já que o cinema brasileiro parecia haver tomado conta do assunto. O sucesso de Toda Nudez Será Castigada e O Casamento, dirigidos por Arnaldo Jabor, e a Dama do Lotação, por Neville de Almeida, trouxeram novamente Nelson Rodrigues à cena. Comprei as primeiras edições de seus textos teatrais reunidos e finalmente comecei a ler.
Em 1980, fui assistente de direção de Engraçadinha, filme dirigido por Haroldo Marinho Barbosa. Haroldo era amigo de Nelson e conversava horas com ele por telefone. Estava combinado que ele iria à Petrópolis, onde o filme estava sendo rodado, visitar o set de filmagem. Sabíamos que ele não estava bem de saúde, mas tínhamos a esperança de sua visita. Não houve tempo para isso. Quando as filmagens terminaram, no início de dezembro, Nelson estava internado e faleceu alguns dias depois.
Nessa já longa rememoração, gostaria de contar quando e como o conheci. Eu havia dirigido uma série de curtas-metragens para o produtor e diretor Braz Chediak e um deles, Meu Glorioso São Cristovão, fizera algum sucesso, dera um dinheirinho e precisávamos fazer a divisão das partes. Liguei para o Braz e ele me disse que passasse na casa dele. Cheguei rápido, pois morávamos perto. Toquei a campainha, ele abriu, e vi o Nelson Rodrigues sentado no sofá com D. Elza. Perdi a fala. Fui apresentado, Nelson foi gentil, mas logo retomou a conversa com Braz. Eles negociavam a adaptação de Perdoa-me Por Me Traíres, parecia tudo acertado e falavam dos detalhes finais. Sentei na poltrona em frente e fiquei ouvindo a conversa dos dois. Nelson me pareceu muito envelhecido, falava baixo e arrastado. D. Elza atenta e com ar de preocupação. Depois de algum tempo, a esposa de Braz serviu o jantar e me convidou. Não me lembro o que comi, mas lembro bem de Nelson comendo uma espécie de papinha, aquela mesmo de que tanto falava que acalmava sua úlcera. Estava na minha frente um Nelson Rodrigues diferente do que imaginava, um Nelson mais próximo de um de seus personagens.
Depois da sobremesa e do café, que, obviamente, ele não tomou, todos conversaram mais um pouco e D. Elza sinalizou que era hora de ir. Fiquei inquieto. Queria trocar algumas palavras com ele, mas a timidez e o respeito me haviam impedido. Aproveitei a sua saída, disse que ia embora também e no elevador comecei a falar. Disse-lhe que havia passado a minha infância na Rua Dona Zulmira, esquina da Rua Alegre, atual Rua Almirante João Cândido Brasil. Quando ouviu isso, ele me olhou bem nos olhos. Falei que andava de bicicleta naquele quarteirão e passava em frente à escola em que ele estudara, na Rua Alegre, esquina com Maxwell. O elevador chegou, o porteiro abriu a porta e já havia um táxi esperando. Despedimo-nos, ele me disse: -“Deus te Abençoe” e caminhou até o carro, bem devagar, amparado por D.Elza. Os dois entraram e o táxi partiu.
Hoje sou mais velho do que era Nelson no dia em que o conheci pessoalmente, mas quando leio as crônicas de futebol volto a ser o mesmo moleque da Rua Dona Zulmira, frequentador assíduo do Maracanã, ouvinte de radio e leitor do Jornal dos Sports.
O Nelson Rodrigues que conheci nas crônicas de futebol é diferente do Nelson do teatro, daquele com quem conversei rapidamente em 1979 e desse que estudamos aqui neste grupo de pesquisa; é diferente, mas é o mesmo de sempre. Fiel às suas obsessões, às suas visões do ser humano, às manifestações sublimes e tragicômicas presentes no futebol, corajoso nas crônicas políticas e no teatro. Nelson Rodrigues encontrou a maneira adequada de conversar com cada um de seus leitores, fosse ele o simples torcedor das arquibancadas ou o acadêmico ansioso por estabelecer pontes de significados e simbolismos em sua obra.
O leitor das crônicas sobre futebol, em geral, não era o mesmo público que assistia ao seu teatro, mas isso não o obrigava a se tornar mais diluído para conversar com esse leitor. Era o Nelson de sempre, o mesmo, mas diferente, no espaço do jornal e suas circunstâncias, daquele que estava no palco de um teatro.
Há uma crônica de 1955, “O Assassinato do Sanduíche”, que pode ser lida como uma síntese magistral. Lá está a fome atávica e patética, o áspero cotidiano, o tragicômico derrubando cadeiras como em uma comédia do cinema mudo.
Depois de descrever o estado de penúria dos antigos jornalistas esportivos e a falta de uma tribuna de imprensa, Nelson conta que o Botafogo havia inaugurado uma tribuna que “ofusca, esmaga, que humilha todas as outras, com um luxo asiático de consultório de psicanalista” e faz a comparação.
Vejam o abismo entre as duas épocas:– ontem, no Botafogo, os sanduíches circulavam nas bandejas, intactos e impunes; mas em 1920 nenhum sanduíche poderia aparecer, num reservado de imprensa, sem perigo de vida. Era acometido por todos os lados, sumariamente. Os biscoitos, também, e qualquer espécie de comestível. Pois bem: – no tal jogo antediluviano, houve o lanche. Vi um dos meus colegas arremessar-se, derrubando cadeiras, devastando mesas, ceifando pessoas; vi, ainda, quando ele agarrou um sanduíche ou, por outra, agrediu um sanduíche. Mas a simples agressão ainda não foi tudo. Houve mais:– houve um verdadeiro assassinato de sanduíche. Não existia, ali, nenhum guaraná. Do contrário, o confrade teria engolido a garrafa, com chapinha e tudo, qual um elefante de circo.
Todo Nelson está aqui. Aquele do humor e da imaginação delirante que fascinava a minha infância e o outro dos temas trágicos. Nessa crônica, publicada na Manchete Esportiva em 10/11/1955, Nelson é diferente, por exemplo, de Vestido de Noiva, de Toda Nudez Será Castigada, das crônicas de O Reacionário ou do folhetim jornalístico, mas é o mesmo Nelson paradoxal de quando o personagem Serginho, no final de Toda Nudez, foge com o ladrão boliviano ou de quando a grã-fina das narinas de cadáver pergunta no Maracanã lotado:– Quem é a Bola?
O Nelson trágico e o Nelson cômico podem parecer diferentes, mas estão sempre no mesmo Nelson Rodrigues.
Imagem: Nelson Rodrigues no Maracanã (autor e data não identificados)