
A palavra censura vem do latim censūra, ae. Tem o sentido de “ofício do censor”. Na Roma antiga, censor era aquele que fiscalizava impostos e era responsável pela manutenção da ordem e dos bons costumes. No Brasil, a prática esteve presente desde a Colônia quando a Igreja Católica realizava os processos da Inquisição. Seguindo a tradição, D. João VI institucionalizou a censura literária e D. Pedro I, a teatral1. Durante o Estado Novo, Vargas criou um órgão específico para esse fim, o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). A queda do regime de inspiração fascista e a promulgação da Constituição de 1946, no entanto, não foram suficientes para abolir o mecanismo. No artigo 141, §5º, da nova Carta Política, vinha previsto que: “É livre a manifestação do pensamento, sem que dependa de censura, salvo quanto a espetáculos e diversões públicas”2. Dentro dessa recém-inaugurada Ordem Jurídica, cada unidade federativa era responsável pelo processo de censura de suas diversões públicas. Sobreveio, porém, a Ditadura Militar, o que acarretou não apenas na federalização da censura — que passou a orientar-se pelas diretrizes do Ministério da Justiça e da Polícia Federal —, mas também na sua ressignificação (leia-se: ampliação). Abriu-se um leque para os censores, que agora tinham o poder de interditar uma obra não apenas porque a considerassem “obscena”, mas também “atentatória à segurança nacional”3. Foi só com a democratização que o Brasil desinstitucionalizou a censura. Assim, a Constituição Federal de 1988 consagrou como garantia fundamental que “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença (…)” (artigo 5º, IX) e o artigo 220, §2º, para não deixar dúvidas, estabeleceu a fórmula: “É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística”4.
Nelson Rodrigues foi um grande connoisseur dessa herança maldita do absolutismo. Só no Arquivo Miroel Silveira da Biblioteca da ECA/USP — onde constam os processos que tramitavam dentro do Departamento de Diversões Públicas de São Paulo —, treze dossiês são relativos às suas peças5. O Anjo Pornográfico foi sistematicamente censurado na ditadura militar e nos governos que a precederam. Pode-se dizer que a sua primeira censura, porém, remonta a um episódio da infância. Durante um concurso literário promovido na escola pública Prudente de Morais, cujo primeiro prêmio seria a leitura do texto em voz alta, Nelson — então uma criança de 8 anos —, apresentou nada menos que uma história de traição, na qual a mulher adúltera acaba assassinada pelo marido que se arrepende logo em seguida. A professora, apesar de espantada, premiou a redação, mas como não podia ler aquilo em voz alta, inventou um empate, lendo a redação de outro aluno. Ou seja, Nelson ganhou o concurso, mas não o prêmio. Apesar de reconhecido o seu assombroso e precoce talento narrativo, a leitura do texto foi “censurada” pela professora6.
Enquanto a redação escolar — sua grande estreia — foi a primeira censura registrada em sua biografia, “Álbum de Família” (1945) foi a sua primeira peça embargada. Mais que isso: foi a sua primeira grande censura, de abrangência nacional7. Tanto é assim que o decreto interditando o drama foi um dos primeiros atos do governo recém-constituído do general Eurico Gaspar Dutra em 17 de fevereiro de 1946. Mas o que havia de tão chocante na peça que justificasse a medida extrema? Um passar de olhos sobre o enredo pode aclarar a questão.
A tragédia de três atos gira em torno da história de uma família repleta de tensões incestuosas. Jonas, o patriarca, é obcecado pela filha (Glória). Para resistir ao desejo, vai atrás de meninas muito jovens. Como ele próprio diz em dado momento: “de doze, treze, quatorze, quinze anos”. Assistimos ao longo da peça, inclusive, uma menina de quinze anos com quem ele manteve relação morrer lentamente durante o trabalho de parto. D. Senhorinha, a mãe, padece do mesmo mal, sendo obcecada pelos filhos, especialmente por Edmundo e Nonô. Segundo a matriarca: “Não botei os meus filhos no mundo para dar a outra mulher!”. O sentimento é recíproco nos dois filhos. Para combater o desejo, Edmundo se casa com Heloísa. Não consegue, no entanto, ter relações sexuais com a mulher, sentindo sempre uma nostalgia do ventre materno (“Eu queria tanto voltar a ser o que já fui: um feto no teu útero”). Apesar de tudo, não chega a ter relações com a mãe. Com Nonô, a história foi outra. Chegou nos finalmentes com D. Senhorinha e, logo em seguida, enlouqueceu, “desligou”, retornando a uma espécie de caos primordial. Ao longo da tragédia, volta e meia, somos lembrados de sua existência por meio de urros. Quando Edmundo descobre o que aconteceu entre a mãe e Nonô, tira a própria vida. Guilherme, o filho mais velho, não compartilha com os irmãos o desejo pela mãe. Prefere a irmã. Envergonhado, arranca o próprio falo. No final do segundo ato, ao perceber que há alguma reciprocidade entre Jonas e Glória, tira a vida de sua amada. Ao fim da tragédia, Jonas vai visitar o caixão da filha e d. Senhorinha, o do filho Edmundo. Após um diálogo fatal, a mulher atira no marido (por pedido do próprio)8.
Considerando as partículas de hipocrisia presentes no ar que se respirava nos anos 1940, provavelmente os censores do governo Dutra não tiveram muita dificuldade em tomar a decisão de embargar a tragédia, sob as alegações de que “preconizava o incesto” e “incitava o crime”9. Nelson reagiu. Por quatro meses, saiu em busca de depoimentos favoráveis sobre a peça para tentar convencer Pereira Lyra, o então chefe de polícia do Distrito Federal, a contestar a ordem de censura. Nessa empreitada, contou com o apoio do diretor de redação do Diário Carioca, Prudente de Morais, neto do presidente homônimo. Apesar de tudo, perdeu a batalha. O veto foi mantido. Ainda assim, Nelson publicou a peça em livro com o selo Edições do Povo, a recém-criada editora de J. Ozon.
À época, as reações ao veto foram mistas. Álvaro Lins, por exemplo, contestou o veto, mas repudiou o conteúdo da peça. Segundo Ruy Castro10:
“E então Álvaro Lins escreveu seu rodapé no ´Correio da Manhã`, intitulado ´Tragédia ou farsa?`. Começava dizendo-se amigo do autor e oferecendo-lhe a sua solidariedade, ´como o faria em relação a qualquer outro autor, amigo ou inimigo, cuja obra fosse atingida pelo veto de um poder incompetente e ilegítimo`. Infelizmente, não podia oferecer-lhe ´solidariedade literária`. A peça era ´vulgar na forma, banal na concepção`. ´Chula`, ´primária`, ´grosseira`. ´De desoladora miséria vocabular.` ´Um mar de enganos, erros, atrapalhações e insuficiências.` ´Um equívoco como tragédia.` O que mais irritava Álvaro Lins era a inflação de incestos: Jonas ama a filha Glória; Glória ama o pai Jonas; dona Senhorinha ama os filhos Guilherme, Edmundo e Nonô; Edmundo e Nonô amam a mãe, dona Senhorinha; Guilherme ama a irmã Glória. Que família! ´Se todos são incestuosos, onde está a tragédia?`, perguntava. Álvaro Lins preferia que houvesse em cena um único incesto, como em Édipo rei`, de Sófocles, para que ele parecesse ´singular, anormal e extraordinário`”.
Ainda de acordo com o biógrafo, Nelson ficou enfurecido com o artigo do imortal da ABL. Em resposta, fez publicar dois artigos de sua lavra, como se tivessem sido escritos por outros jornalistas, em defesa da peça. Um apareceu em O Cruzeiro, assinado por Freddy Chateaubriand, e o outro no O Jornal, assinado por Monte Brito. Nesse último, classificava como “enciclopédica e delirante” a ignorância de Álvaro Lins sobre teatro11.
Aproveitando a polêmica, O Globo, fez uma enquete a respeito da interdição do drama. O resultado foi uma opinião bem variada sobre a peça, mas, no geral, houve mais vozes contrárias à censura. Segundo Ruy Castro12:
“‘O Globo’ pegou a bola e promoveu durante dias uma enquete com a pergunta: ‘Deve ou não ser representada ‘Álbum de família’?’. Pompeu de Souza, agora com seu nome, voltou a defendê-la. Álvaro Lins reafirmou sua posição: defendia o direito de a peça ser representada e o seu próprio direito de dizer que ela era ‘mal planejada e pior ainda executada’. Austregésilo de Athayde achava que ‘só o público e a crítica poderiam julgá-la’. Lúcia Miguel Pereira, biógrafa de Machado de Assis, achava que deveria ser representada, mas ‘para um público escolhido’. Seu marido, o historiador Otávio Tarquínio de Souza, repetiu-a. Dinah Silveira de Queiroz, idem, ressalvando que mesmo a censura até dezoito anos era pouco, porque raramente respeitada. Acrescentou que ‘Álbum de família’ só deveria ser levada ‘em círculos privados, para um público à altura de compreendê-la’. Ninguém explicou como esse público seria escolhido. Accioly Neto, em ‘O Cruzeiro’, estranhou que se interditasse a peça, não o livro: ‘O espectador pode ser selecionado, o leitor nunca’. O poeta Lêdo Ivo bateu duro: ‘Imoral não é a peça, mas a sua proibição’. Agripino Grieco, Rachel de Queiroz, Emil Farhat, Nelson Werneck Sodré, todos opinaram pela liberação. E Manuel Bandeira, mais uma vez, não faltou com seu apoio. Viu em ‘Álbum de família’ a confirmação do juízo que fizera de Nelson Rodrigues em ‘Vestido de noiva’ e sentenciou: ‘a, de longe, o maior poeta dramático que já apareceu em nossa literatura’. Só dois inquiridos defenderam a interdição de ‘Álbum de família’: Jaime Costa e Tristão de Athayde, aliás Alceu Amoroso Lima. O veterano Jaime Costa, que se dava bem com a censura, quis ser profético: ‘Se algum dia uma companhia representar essa peça, veremos pela primeira vez no Brasil o público impedir o final de um espetáculo’. E Alceu convocou quatro advérbios de modo para ficar ao lado da censura: ‘A peça é literariamente nula. Não passa da mais vulgar subliteratura. A interdição me parece perfeitamente legítima. O guarda-civil tem não só o direito, mas o dever de impedir que um louco se dispa em plena avenida. Os loucos de ‘Álbum de família’, que se despem moralmente no palco, também podem legitimamente ser convidados a fazê-lo de modo mais discreto. A exibição de uma patacoada obscena não é menos nociva ao grande público do que o funcionamento de uma roleta’”.
Apesar do resultado positivo da enquete, a peça continuou interditada, só sendo liberada em dezembro de 1965 e encenada em julho de 1967. De acordo com Sábato Magaldi, toda essa contenda jornalística — especialmente a polêmica com Álvaro Lins — contribuiu para que a peça permanecesse censurada:
“Tenho para mim que as reações contrárias a Álbum de família se deveram a um juízo moral e não artístico da obra, e à utilização de cânones e códigos estéticos, aos quais escapavam os desígnios do autor. A ética se pautou por uma atitude primária: o medo, o horror ao incesto […] Se tivesse havido um esclarecimento didático a propósito das intenções da peça, e não o escândalo jornalístico logo armado, provavelmente seria outro o destino de Álbum”13.
Seja como for, ao bater Álbum de Família na máquina de escrever, Nelson inaugurou o seu “teatro desagradável” (que seria seguido por Anjo Negro e Senhora dos Afogados). Segundo o próprio dramaturgo: “São obras pestilentas, fétidas, capazes, por si só, de produzir o tifo e a malária na plateia”14. Essa tomada de rumo consagrou Nelson como um enfant terrible do teatro brasileiro. O termo francês designa uma criança que diz coisas embaraçosas aos adultos. Nelson, o “menino que via o mundo pelo buraco da fechadura” — sua ótica de ficcionista — revelava aos “adultos” verdades que os deixavam de cabelo em pé. Nesse sentido, pode-se atribuir certa razão aos críticos da peça que a classificaram como “obscena”. Pela sua etimologia, o vocábulo significa “colocar em cena algo que deveria estar nos bastidores”. E foi justamente o que o autor fez ao tocar na espinhosa temática do incesto, uma das feridas abertas mais antigas da humanidade, de “Édipo Rei” à “Tragédia da Rua das Flores”. Segundo Sérgio Milliet: “O autor enfia um ferro em brasa numa ferida comum a todos, localizado no fundo do nosso inconsciente, e que todos desejam ignorar”15.
Nesse sentido, é interessante notar que o homem responsável pela provocação “Entre o psicanalista e o doente, o mais perigoso é o psicanalista”, realizou, em Álbum de Família, uma exemplar explicação psicanalítica, tão evidente que Milliet chegou a identificar nisso um dos defeitos do drama:
“Se algum defeito deve ser apontado na peça de Nelson Rodrigues seria o da extrema clareza da concepção e explanação. Tão límpida é a casuística psicológica que, por vezes, sua literatura descamba para a ilustração psicanalítica e deixa de nos empolgar como obra de arte em si, que a arte não explica, mas sugere, não resolve nem analisa problemas (o que cabe à ciência), mas aponta a sua inexorável existência”.16
Na escola Prudente de Moraes, Nelson foi censurado por retratar um adultério. Em Álbum de Família, peça mítica pela classificação de Sábato Magaldi, o dramaturgo sofreu por ousar tocar na temática do incesto. Os dois fenômenos estão na Bíblia. Cite-se, por exemplo, o adultério do rei Davi e o caso de Ló e suas filhas. O grande “crime” do autor foi o de transplantar para a realidade brasileira essas manifestações que se verificam desde que o mundo é mundo. Ainda assim, as autoridades da época, supostamente amparadas numa moral cristã, censuraram as suas produções. Segundo ele próprio dizia: “‘Álbum de família’ é uma peça bíblica. Então teriam que censurar também a Bíblia, que está varada de incestos!”17.
Para o desespero dos censores, a interdição da peça fez com que a publicação do texto pela Edições do Povo, em 1946, fosse um grande sucesso. Como se não bastasse, até hoje a peça é encenada nos teatros e estudada na academia. É o chamado “Efeito Streisand”, termo cunhado por Mike Masnick em 2003, após a cantora americana Barbra Streisand processar o fotógrafo Kenneth Adelman e o website “pictopia.com” em 50 milhões de dólares a fim de remover uma foto da sua mansão da coleção de mais de 12.000 imagens disponíveis no site. No mês seguinte, a foto da mansão viralizou, contando com mais de 420 mil acessos18. Dizendo de outro modo, a censura acaba causando o efeito contrário daquele que pretende.
Referências
1 GARCIA, Miliandre. Censura e costumes no Brasil: a institucionalização da censura teatral. 2023. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2023. Disponível em: https://antigo.bn.gov.br/sites/default/files/documentos/producao/pesquisa/censura-costumes-brasil-institucionalizacao-censura-teatral/miliandregarcia.pdf. Acesso em: 12 jun. 2024.
2 BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (de 18 de setembro de 1946). Brasília, DF: Presidência da República, 1946. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao46.html. Acesso em: 12 jun. 2024.
3 GARCIA, op. cit.
4 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Presidência da República, 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em: 12 jun. 2024.
5 RABELO, Adriano de Paula. Nelson Rodrigues e a censura: o caso Boca de ouro no Arquivo Miroel Silveira. Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 53, p. 355-367, 2022. Disponível em: https://www.scielo.br/j/elbc/a/SPs9bvyRvHJvksPdgr3tHRf/?lang=pt#. Acesso em: 12 jan./abr. 2018.
6 CASTRO, Ruy. O anjo pornográfico: a vida de Nelson Rodrigues. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p.15-16.
7 RODRIGUES, Sergio Manuel. Revelações rodrigueanas de um álbum de família. Anais do SILEL, Uberlândia, v. 1, p.1-9. Disponível em: https://www.ileel.ufu.br/anaisdosilel/pt/arquivos/gt_lt06_artigo_4.pdf. Acesso em: 12 jun. 2024.
8 RODRIGUES, Nelson. Teatro Completo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004.
9 CASTRO, op. cit., p. 131.
10 Idem, ibidem.
11 Idem, p. 132.
12 Idem, p. 133.
13 MAGALDI, Sábato. Álbum de família. In:_____. Teatro da obsessão: Nelson Rodrigues. São Paulo: Global, 2004. p. 49 – 58.
14 CASTRO, op. cit., p. 142.
15 MILLIET, Sérgio. Álbum de Família. In: MAGALDI, Sábato (Org.). Nelson Rodrigues: teatro completo. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003. p. 48.
16 Idem, ibidem.
17 CASTRO, op. cit., p 131.
18 BYRNE, Suzy. Streisand Effect: Barbra Streisand Faces Invasion of Privacy Lawsuit Over New Memoir. Yahoo Entertainment, 6 nov. 2023. Disponível em: <https://shorturl.at/dmEP5>. Acesso em: 12 jun. 2024.
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