Nelson Rodrigues: Literatura, Filosofia e Religião

Dentes como símbolo de status e transformação

A luta contra a efemeridade é uma busca profundamente humana, refletida em inúmeras expressões culturais, artísticas e corporais, e que hoje se intensifica com o uso de procedimentos estéticos, cosméticos e artifícios visuais.

Nas redes sociais, o uso de filtros que promovem uma imagem de juventude e perfeição reflete o desejo generalizado por uma aparência imutável e idealizada. Essa busca pela “falsa beleza” é também uma tentativa de transcender a natureza perecível do corpo, criando uma ilusão de permanência que desafia o tempo e a mortalidade.  Nesse contexto, práticas mais radicais, como a modificação dos dentes com ouro ou titânio, tornam-se formas extremas de autoexpressão, ostentação e resistência à efemeridade.

O rapper Kanye West, por exemplo, conhecido por sua constante reinvenção estética, revelou em 2010, ter substituído seus dentes por ouro cravejado de diamantes. O músico mostrou no programa de TV Ellen DeGeneres Show seu novo sorriso. Admitiu ter arrancado os dentes inferiores frontais, substituindo-os por próteses de ouro e diamantes, e afirmou que “diamonds are cooler”[1] (diamantes são mais legais). Ao ser perguntado pela apresentadora como ele limpava os dentes, disse que já era acostumado pois limpava as suas joias com pasta de dente, concluindo que estes procedimentos são coisas que um rock star deveria fazer.

No início de 2024 uma nova dentadura chamou a atenção mundialmente. O mesmo rapper, agora conhecido como Ye, exibiu seu novo sorriso nas redes sociais. Após essa segunda transformação estética ele exibiu orgulhoso próteses de titânio. A dentadura de titânio foi desenhada e feita sob medida pelo Dr. Thomas Connelly, apelidado de “Pai da Odontologia de Diamantes”, e pelo dentista cosmético Naoki Hayashi. Segundo o Daily Mail, as próteses de Kanye seriam permanentes e teriam custado entre 850.000 e 900.000 dólares[2].

Devido aos inúmeros rumores causados pela publicação nas mídias sociais, vários meios de comunicação online publicaram nos dias subsequentes notas esclarecedoras dadas pelo Dr. Connelly, informando que os dentes naturais de Kanye não foram extraídos e ressaltando que o rapper ainda mantém sua dentição natural[3]. O procedimento envolveu a construção de algo semelhante a um protetor bucal, como os utilizados por boxeadores, informou.

O próprio artista fez uma comparação de sua nova imagem com um dos vilões mais icônicos da franquia James Bond, Jaws, conhecido por sua impressionante estatura de 2,18 metros e por seus dentes metálicos, que se tornaram sua marca registrada nos filmes O Espião que Me Amava (1977) e Moonraker (1979). Para esse vilão os dentes de aço não apenas servem como arma letal, capaz de quebrar metais, mas também simbolizam sua natureza brutal e ameaçadora[4].

Podemos nos questionar se essa transformação do rapper, além de uma declaração de riqueza e poder, é também uma forma de se dissociar da mortalidade e vulnerabilidade associadas ao corpo humano devido ao trauma deixado pela morte de sua mãe.  Donda West era uma acadêmica formada em Língua Inglesa que lecionou por 31 anos na Universidade de Chicago. Ela foi uma figura essencial na vida de Kanye, tendo-o criado sozinha após o divórcio. Donda faleceu em 2007, aos 58 anos, devido a complicações após cirurgias estéticas.[5]

Traça um paralelo entre o personagem Boca de Ouro, da peça homônima de Nelson Rodrigues, um bicheiro (banqueiro de bicho)[6] de origem humilde, que suborna o dentista para arrancar todos os seus dentes sadios para trocá-los por uma dentadura de ouro.

“DENTISTA — Rapaz, te digo com sinceridade: nunca vi, em toda a minha vida — trabalho nisso há vinte anos — e nunca vi, palavra de honra, uma boca tão perfeita!”[7]

Se o dentista da peça de Nelson Rodrigues, realizada em 1961, tinha um lapso de pudor antes de ver o dinheiro, o Dr. Thomas Connelly aparentemente orgulha-se de ser um dentista de próteses estéticas.

“DENTISTA — Mas olha: não diz que fui eu, porque os meus colegas vão achar um serviço porco! Muito feio!
BOCA DE OURO (assombrado) — Feio?
DENTISTA — De mau gosto.
BOCA DE OURO (feroz) — Quem acha ouro feio é burro!” [8]

É possível interpretar que essa escolha de Boca de Ouro tenha uma relação simbólica com a única lembrança positiva de sua mãe, contada por um terceiro: seu sorriso, pois “Riu até morrer, morreu tão alegre!”[9]

“BOCA DE OURO (lançando grunhidos) — Minha mãe era gorda, tão gorda, que não se notava a barriga da gravidez. No nono mês, foi dançar nos “Imperadores da Floresta”. Lá pulou, cantou, pintou o caneco. De repente, sentiu um troço, um puxo…Pediu licença ao par, que era um preto… Minha mãe não ligava pra cor…

BOCA DE OURO (arquejante) — Minha mãe pediu licença e foi ao toalete das senhoras. Então eu nasci. Minha mãe me apanha e me enfiou na pia. Depois abriu a bica em cima de mim e voltou para o salão e…[10]

Embora seu sorriso fosse um vazio emocional, Boca de Ouro pode ter tentado ressignificá-lo, transformando-o em um símbolo de poder e dignidade através do ouro.

Queres saber da maior, e vê se tem cabimento: o “Boca”, quando bebe, chama a mãe de “A Virgem de Ouro”! (dramatizando)[11]

O material, associado à riqueza e ao prestígio, seria uma tentativa de transcender a humilhação e a marginalidade que marcaram sua origem. Assim ele tenta recriar o sorriso da mãe, mas com uma conotação de grandeza que ele jamais pôde associar a ela em vida.

Sua tão desejada invulnerabilidade é destruída quando, já morto, sua dentadura de ouro é roubada, privando-o da única coisa que simbolizava seu poder. Em sua morte, o autoproclamado “deus asteca” foi devolvido à condição inicial de desdentado.

““MARIA LUÍSA — Deus asteca! Um deus asteca!
BOCA DE OURO (na euforia de um deus cafajeste) — Pensando bem, eu sou meio deus. Quantas vidas eu já tirei? Quando eu furo um cara, eu sinto um troço meio diferente, sei lá, é um negócio! Ainda agora. Primeiro, eu ia te matar. Depois, vi que o golpe era executar a Celeste. Um perigo, a Celeste! Gostaste da classe? E quando eu morrer, já sabe: o caixão de ouro! (bate com as mãos abertas nas próprias coxas, triunfalmente) Todo o mundo”[12]
LOCUTOR (na sua fixação de pobre de espírito) — Sem um mísero dente! Não é um paradoxo? É um paradoxo! Um homem existe, um homem vive por causa de uma dentadura de ouro. Matam esse homem e ainda levam, ainda roubam a dentadura da vítima! (quase agressivo) Paradoxo, “Caveirinha”! Acho isso um requinte — é um requinte! — pior do que as 29 facadas.”
[13]

Em ambos os casos, a manipulação da própria imagem reflete uma tentativa de afirmar poder e obter reconhecimento em um mundo cheio de expectativas sociais. No entanto, essa busca se mostra frágil e efêmera, criando apenas uma aparência de invulnerabilidade que, na realidade, é ilusória.

O artigo de Ricardo Azevedo Barreto, intitulado “Sobre psicanálise, oralidade e odontologia”[14] explora as conexões entre a psicanálise e a odontologia, com ênfase na fase oral do desenvolvimento psicossexual descrita por Freud. O autor destaca a importância dessa fase como o ponto inicial de interação do indivíduo com o mundo, onde atividades como sugar e morder não se limitam ao ato da alimentação, mas também servem como fontes de prazer e expressão psíquica. Essa fase inicial é analisada como um momento de intensa incorporação, no qual as dimensões emocionais e simbólicas da boca começam a se formar, revelando impulsos canibalescos e sentimentos ambivalentes que têm implicações importantes para a prática odontológica.

O artigo também aborda as contribuições de Karl Abraham e Melanie Klein, aprofundando a compreensão dos elementos orais do desenvolvimento. Abraham dividiu a fase oral em duas subfases: a primeira, associada ao prazer de sugar e incorporar, e a segunda, denominada fase sádico-oral, marcada pelo impulso de morder e por sentimentos canibalescos. Klein, por sua vez, acrescenta que o seio materno é percebido como o objeto primordial, dividido entre seio bom e seio mau, dependendo das experiências de gratificação ou frustração. Essas contribuições psicanalíticas, segundo Barreto, oferecem à odontologia uma perspectiva mais rica sobre as dimensões emocionais dos pacientes, permitindo uma prática mais integrada que considera não apenas os aspectos físicos, mas também os psicológicos envolvidos na saúde bucal.

As dentaduras de Kanye West e de Boca de Ouro simbolizam a tentativa humana de transcender as limitações, mesclando poder e vulnerabilidade. Essas transformações estéticas refletem uma busca contínua por controle e reconhecimento, enquanto expõem a fragilidade inerente a essa tentativa. Boca de Ouro tenta superar sua origem miserável — o nascimento em uma pia — transformando-se em uma figura poderosa e imponente. Ao substituir seus dentes perecíveis por uma dentadura de ouro, ele simbolicamente busca escapar dos limites da condição humana e alcançar uma forma de poder absoluto.

De acordo com Barreto e Guirado[15], a existência da “rebeldia inconsciente” sugere que certos comportamentos em contextos odontológicos podem ser entendidos como expressões de conflitos psíquicos profundos. No caso fictício de Boca de Ouro e no caso real de Kanye West, a escolha de substituir a dentição natural, algo que se deteriora com o tempo, por materiais duráveis e valiosos como ouro e titânio reflete o desejo de escapar do ciclo de vida e morte, buscando uma permanência simbólica através do corpo. Esse impulso contra a efemeridade é uma característica profundamente humana, refletida em inúmeras expressões culturais, artísticas e corporais. O desejo de transcender a fragilidade da vida, da aparência e da mortalidade se manifesta de formas inesperadas.

Ao longo da história, os seres humanos desenvolveram códigos sociopolíticos que ultrapassaram as limitações biológicas[16]. O desenvolvimento de novas técnicas e o aumento da exposição midiática intensificaram as expectativas sociais em relação à aparência. A facilidade de acesso a procedimentos estéticos nos dias de hoje tornou a transformação corporal mais comum, enquanto as redes sociais criaram um ambiente em que a aparência idealizada é constantemente promovida e comparada. Essa pressão incessante reforça a fragilidade da busca por invulnerabilidade e reconhecimento, fazendo com que a manipulação da própria imagem se torne uma tentativa cada vez mais desesperada e, em última análise, ainda mais efêmera.

Referências bibliográficas

[1] programa de TV “Ellen DeGeneres Show”: https://youtu.be/cuHE-eefX94?si=NGTrp-bkhnCxXuiP

[2] https://www.dailymail.co.uk/tvshowbiz/article-12975613/Kanye-West-teeth-REMOVED-replaced-TITANIUM-dentures-expensive-diamonds-rapper-compares-James-Bond-villain-Jaws.html

[3] https://www.infobae.com/entretenimiento/2024/01/18/como-es-la-dentadura-de-titanio-que-se-implanto-kanye-west-y-cuesta-850000-dolares/

https://tg24.sky.it/spettacolo/2024/01/18/kanye-west-denti

https://pagesix.com/2024/01/17/style/kanye-west-has-teeth-removed-and-replaced-with-850k-titanium-dentures

[4] https://www.lavanguardia.com/gente/20240118/9500678/kanye-west-disena-nueva-protesis-titanio-valorada-850-000-dolares.html

[5] https://www.vanityfair.it/people/mondo/2021/09/01/donda-west-amata-madre-morta-2007-kanye-dedicato-ultimo-disco

[6]  Rodrigues, Nelson. Boca de Ouro (p. 35). Nova Fronteira. Edição do Kindle

[7]  Rodrigues, Nelson. Boca de Ouro (p. 10). Nova Fronteira. Edição do Kindle.

[8]  Rodrigues, Nelson. Boca de Ouro (p. 13). Nova Fronteira. Edição do Kindle.

[9]  Rodrigues, Nelson. Boca de Ouro (p. 56). Nova Fronteira. Edição do Kindle.

[10] Rodrigues, Nelson. Boca de Ouro (p. 72). Nova Fronteira. Edição do Kindle.

[11] Rodrigues, Nelson. Boca de Ouro (p. 49). Nova Fronteira. Edição do Kindle

[12]  Rodrigues, Nelson. Boca de Ouro (p. 123). Nova Fronteira. Edição do Kindle

[13] Rodrigues, Nelson. Boca de Ouro (p. 126). Nova Fronteira. Edição do Kindle.

[14] Sobre psicanálise, oralidade e odontologia https://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-34372012000200015

[15] Psicanálise e Odontologia na rebeldia inconsciente https://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?pid=S0100-34372009000100017&script=sci_arttext

[16] Harari, Yuval Noah. Sapiens (p. 77). L&PM Editores. Edição do Kindle.

Imagem gerada por IA

Sobre o autor

Paola do Amaral Figueiredo

Paola Peterle Rosa do Amaral Figueiredo é graduada em Geografia pela UFRJ, possui MBA pelo IBMEC e mestrado em Gestão Territorial pela UFSC. É pesquisadora do grupo Nelson Rodrigues: Literatura, Filosofia e Religião do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.