Nelson Rodrigues: Literatura, Filosofia e Religião

O Ex-Covarde na guerra cultural

Nelson Rodrigues entra na redação de O Globo e logo é chamado por um amigo curioso e enfático: — “Você, que não escrevia sobre política, por que é que agora só escreve sobre política?” O amigo relembra que não há uma palavra sobre política em suas peças, romances, contos e crônicas e, de repente, quando resolveu escrever suas confissões o assunto é só política e ele quer saber o porquê disso.

Depois de apagar o cigarro no cinzeiro, Nelson avisa que é uma “longa história”. “Eu sou um ex-covarde”. E diz ao amigo que hoje é muito difícil não ser canalha e que por toda a parte só víamos pulhas. Reitores, professores, sociólogos, intelectuais de todos os tipos, jovens e velhos, mocinhas e senhoras. Os jornais e as revistas, o rádio e a TV.

Às mídias daquela época, o final dos anos 1960, poderíamos acrescentar as redes sociais, os sites, os canais de influenciadores, o ativismo judicial, as patrulhas do pensamento e estaríamos no Brasil de hoje.

A crônica, “O Ex-Covarde”, foi publicada em O Globo em 18 de outubro de 1968. E nos vem a pergunta: seria publicada hoje e Nelson Rodrigues seria um colunista de O Globo?

O que diria ele do jornalismo comprometido com uma determinada agenda ideológica e subserviente ao governo da vez?

Na reedição recente de vários livros de Nelson Rodrigues, a editora Nova Fronteira colocou no alto da capa a seguinte chamada: “Nelson Rodrigues explica ontem o Brasil de hoje. Crônicas sobre política, cultura e sociedade”.

Escritas principalmente em 1967 e 1968, lá está o Brasil de sempre, ora explícito, ora silencioso. Experimente fazer o exercício, meio de brincadeira, de substituir certos nomes e situações, por acontecimentos e personagens atuais e veja o que acontece.

Há, é claro, a genialidade perene de Nelson, mas é o mesmo Brasil, ainda que diferente.

Não se usava naquela época a expressão “guerra cultural” e pouco se falava do filósofo e líder político italiano Antonio Gramsci, mas as suas ideias e estratégias já estavam em curso.  O regime implantado em 1964 cassara direitos políticos e exilara centenas de pessoas. Através de atos institucionais liquidara com os partidos existentes e impusera um bipartidarismo de fachada. Ainda não havia a censura prévia à imprensa e às artes, o Congresso continuava aberto, e havia liberdade de expressão. O fechamento do regime só ocorreu em dezembro de 1968 com a decretação do Ato Institucional número 5, que fechou o Congresso, suspendeu as garantias constitucionais e consolidou a ditadura.

Durante o período entre o movimento de 1964 e o AI 5 de 1968, travou-se intensa luta cultural nas artes, nas universidades, nos comportamentos e até mesmo nas pequenas relações sociais da vida cotidiana.

Uma parte da esquerda brasileira compreendeu a estratégia gramsciana e passou a atuar fortemente para estabelecer a sua hegemonia cultural. Fora do Brasil, eram os tempos da contracultura nos Estados Unidos, do maio de 1968 na França e da invasão da Tchecoslováquia pelas tropas soviéticas. No Brasil, as passeatas, os festivais de música, e as mudanças na Igreja Católica orientadas pelo Concilio Vaticano II. Para Gramsci não fazia sentido investir na preparação de uma revolução armada. Era preciso, sim, penetrar na cultura por dentro, desde logo, já que ela moldava o imaginário coletivo e essa estratégia permitiria que todas as instâncias e espaços da vida social fossem aos poucos sendo ocupados.

Aqueles que ousavam dissentir e apontar a existência de uma luta cultural e política, tal como Nelson, eram logo taxados com a pior das ofensas: “Reacionário”. Pior sim, pois os palavrões haviam saído das tocas e mocinhas e até mães de família soltavam os mais cabeludos deles, antes ditos apenas nos botecos, nas peladas, ou na beira do cais.

Certo figurão do partido hoje no governo, em declaração recente, disse “que uma coisa é ganhar as eleições e outra, bem diferente, é tomar o poder”. Nelson Rodrigues tem a lúcida percepção desse processo em curso no final dos anos 60 e para nós fica claro como ao longo de 50 anos ele foi se consolidando.

O que chamamos de guerra cultural no Brasil de hoje, já estava presente nas observações agudas e certeiras das crônicas políticas de Nelson e era essa obsessão que intrigava seu amigo Marcelo Soares de Moura na redação de O Globo.

Nelson fala da Revolução Russa, de Cuba, do Vietnã, dos jovens, da Igreja, mas o amigo não parece convencido: — “E você? Por que, de repente, você mergulhou na política?” Nelson responde com a própria política dizendo que, como todos, fora também um pusilânime. Relembra dos tempos da Segunda Guerra Mundial quando ouviu de um comunista que Hitler era mais revolucionário que a Inglaterra. Era o tempo do pacto de não agressão que os nazistas assinaram com Stalin a quem os disciplinados comunistas obedeciam cegamente, mas ele, Nelson, por covardia, não dissera nada. Era preciso levar o pão para casa e embora não fosse como hoje, a esquerda já tinha presença forte nas redações e no mundo intelectual.

 Nelson conta ao amigo os vários medos que tinha e agora não os tinha mais. Nem medo do confronto, nem de suas próprias opiniões. Em 1929 viu seu irmão Roberto ser assassinado; logo em seguida o pai morre de desgosto; alguns anos mais tarde um irmão a quem era muito unido, Joffre, morre tuberculoso no sanatório; em 1963 a filha nasce cega; em 1967 o irmão Paulo morre com toda a família e a sogra em um desabamento. Para quem a coragem foi obtida à custa de muito sofrimento, o medo deixou de ter qualquer sentido e passou a ser ridículo temer as Esquerdas e seus poderes paralelos. Precisamos também, como Nelson Rodrigues, proclamar que somos ex-covardes. Que devemos mostrar o que somos e pensamos ainda que isso signifique dificuldades e o risco de que seja, proposital e ardilosamente, confundido com posições políticas que não são as nossas. Que não temos medo do cancelamento, nem da polícia da linguagem e seus pronomes neutros. Que não precisamos falar só de política para encontrar o nosso ouvinte, leitor, espectador, parceiro, amigo, seja lá o que for. Temos que procurar em meio ao caos do mundo, e essa é uma das muitas lições de Nelson Rodrigues, “ouvir o eterno e ouvir o sagrado, que estão enterrados em nós”.

Imagem: Domínio público/Acervo Arquivo Nacional

Sobre o autor

Ney Costa Santos

Doutor e Mestre em Comunicação Social pela PUC-Rio e graduado em Cinema pela UFF. Cineasta e professor do departamento de Comunicação da PUC-Rio, é membro da Associação de Investigadores da Imagem em Movimento, AIM/Portugal, e pesquisador do grupo Nelson Rodrigues: Literatura, Filosofia e Religião, do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP- LABÔ.