Cultura do Consumo, Sociedade e Tendências

A verdade como mercadoria

O período pós-moderno, defendido por alguns autores como a atualidade sociológica mundial, ao menos nos países de primeiro mundo, tem como característica central a perda das perspectivas sólidas como balizadoras das ações dos indivíduos. Estes não têm mais a mesma segurança sobre o desvelar do seu futuro que tinham os cidadãos das sociedades tradicionais, onde as posições sociais eram estáveis e as gerações mais velhas eram respeitadas como referências de sabedoria.

O privilegiar da liberdade em detrimento da segurança, conforme Bauman defende em O mal-estar na pós-modernidade, condena o sujeito contemporâneo a uma condição de “turista eterno”, sempre vagando pelo mundo sem encontrar um referencial estável em que possa basear sua vida. Dessa maneira, a efemeridade é eleita como fundamento máximo do éthos pós-moderno:

Manter o jogo curto significa tomar cuidado com os compromissos a longo prazo. Recusar-se a “se fixar” de uma forma ou de outra. Não se prender a um lugar, por mais agradável que a escala presente possa parecer. Não se ligar a vida a uma vocação apenas. Não jurar coerência e lealdade a nada ou a ninguém. Não controlar o futuro, mas se recusar a empenhá-lo: tomar cuidado para que as consequências do jogo não sobrevivam ao próprio jogo e para renunciar à responsabilidade pelo que produzam tais consequências. Proibir o passado de se relacionar com o presente. Em suma, cortar o presente nas duas extremidades, separar o presente da história. Abolir o tempo em qualquer outra forma que não a de um juramento solto, ou uma sequência arbitrária, de momentos presentes: a planar o fluxo do tempo num presente contínuo. (BAUMAN, 2012, p. 130)

Nesse sentido, alinhado com Lyotard, o pensador polonês identifica uma coincidência entre a crise da modernidade com a crise da verdade. Afinal, um mundo pautado pelo eterno presente não pode ser compatível com uma concepção que expressa a imutabilidade. A partir de então, a verdade passou a ser encarada como um valor de caráter absoluto atribuído a perspectivas variáveis de mundo que não encontravam sua base em uma leitura racional e metodológica sobre ela – como a filosofia defendeu até sua fase moderna –, mas sim em valores culturais e sociológicos relativos. Sob a ótica desses autores, passamos a encarar a verdade como uma ficção e a linguagem tomou posição central nos debates nascidos da decadência moderna.

Afinal, se todos os discursos têm o mesmo status ficcional diante da realidade, a pós-modernidade possibilitou o surgimento de propostas de utilização de nossas ferramentas de representação de mundo para “criação” de valores que se adequassem melhor as nossas perspectivas imaginárias. O raciocínio é simples: se ressignificarmos ou substituirmos palavras de nosso vocabulário ou imagens que circulam nas mídias de massa e digitais, transformaremos nosso modo de lidar com a realidade que nos cerca, pois, nossos fundamentos simbólicos serão diferentes.

Infelizmente não é tão simples como os mais otimistas gostam de professar – para além de debates antropológicos, históricos e sociológicos reveladores das camadas culturais que guardam valores de profundas raízes estruturantes e estruturadas pelos nossos habitus sociais, conforme Bourdieu estuda em sua vasta obra, e não podem ser superados tão facilmente por meros artifícios de linguagem. Não podemos perder de vista o fato de que as sociedades pós-modernas são fruto de um capitalismo que perdeu sua perspectiva teleológica burguesa de progresso da humanidade e está focado apenas no consumismo cego, voltado para si mesmo.

É evidente que a sociedade de consumo enxergaria a crise da pós-verdade como uma oportunidade para transformá-la em mercadoria e vender “posições sólidas” para aqueles que buscam conhecimento fácil, quando na verdade estão diante de informação (nos melhores casos) e entretenimento (nos mais terríveis).

Isso sem entrarmos na famosa tensão entre a fronteira da representação e dos fatos, onde qualquer opção de expressão se converte em um posicionamento parcial diante do ocorrido e desta maneira a diferença entre notícias verdadeiras e fake news fica muito mais estreita do que os jornalistas gostariam de assumir. E as fake news se valem justamente da linguagem jornalística, em todos seus aspectos, para se fazerem verdadeiras e enganar seus leitores com dados inexistentes ou interpretações completamente absurdas, posto que a veracidade do jornalismo se encontra em sua forma e não propriamente em seu conteúdo, caso contrário, não seriam tão avassaladoras em sua tarefa de desinformação social.

Nosso foco são os intelectuais públicos, ou aqueles que que fingem sê-lo, pois ali temos uma categoria diferenciada dos propagadores de informações comuns. Nessa área estão aqueles que deveriam discutir e esclarecer as questões mais importantes para a sociedade, seria o lugar onde as banalidades do senso comum seriam afastadas e a verdade surgiria como um esclarecimento necessário. No entanto, como estamos imersos em um momento de relativismo extremo, não há uma régua clara para medir a qualidade dos pensamentos destes pensadores mediáticos, resultando em qualquer criticidade para qualificar ou desqualificar os seus discursos, das quais podemos citar: “muito conservador”, “muito progressista”, “não está no local de fala”, “não usou termos respeitosos para a minoria x”, ou simplesmente “não entendi”.

A indústria cultural se aproveita deste “vale-tudo” pós-moderno para abrir o grande “mercado das opiniões”. “Para uma posição mais conservadora, ligue em tal canal”, “para uma mais progressista, assista a este vídeo”, “para uma revolucionária, leia este post”, e por aí vai. Nada tem peso no mundo do consumo, tudo flutua esperando os navegadores da superficialidade. Mergulhar em busca de ideias novas e desconfortáveis parece loucura. Além da absoluta falta de critério sobre quem fala sobre o que (ou talvez tendo a audiência como único critério, algo igualmente preocupante), as ideias devem ser palatáveis para o grande público, o que implica distorções e simplificações que acabam por aniquilar as ideias originais e atrapalhar ainda mais o debate público. A linguagem, enquanto fundamento da ficção, se desenvolve neste contexto mais como uma retórica que cativa a imbecilidade para o consumo do que um meio de emancipação e harmonia como propõe o politicamente correto. Existe mais como veneno do que remédio para a alma.

A ideologia perde sua semântica crítica referente a um conjunto de ideias que ocultam a realidade, em prol de uma dominação de classe, e passa a ser sinônimo de “opinião”. O fato de a ideologia do discurso estar predominantemente na sua forma e na sua dinâmica de disseminação social escapa à grande maioria dos “intelectuais” de Instagram. “Ideologia, quero uma pra viver” pode até ficar legal em uma letra de rock, mas com certeza não combina com um debate crítico esclarecido.

Bibliografia

BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor Ltda., 2012

BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2007.

LYOTARD, Jean-François. A Condição Pós-Moderna. Tradução Ricardo

Correa Barbosa. Rio de Janeiro, José Olympio, 2004.

Imagem: Dough4872 (Wikimedia Commons)

Sobre o autor

Francisco Etruri Parente

Bacharel em cinema pela FAAP, mestre e doutorando em comunicação e semiótica na PUC-SP e especialista em filosofia na Universidade Estácio de Sá. É pesquisador do grupo de pesquisa Cultura do Consumo, Sociedade e Tendências, do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.