A Crise do Amadurecimento na Contemporaneidade

De Grifos e Ebós – democracia e sanha estatal nas perspectivas de Frank Furedi e D.W. Winnicott

Diz a sabedoria popular que, juntando sete ovos brancos, um tanto de canjica cozida e azeite doce num alguidar médio se pode espantar olho gordo. Não sei dizer, no entanto, se esse ebó é eficaz quando o olho grande é lançado pelo Estado. Frank Furedi (2008), no texto “The Business of the State”, preocupado com politização do exercício parental, avalia que “todos os pais em potencial são alvos dos formuladores de políticas”[1] (p. 188).  Contra um Estado voraz, um casal de Grifos na entrada de cada casa, para proteção contra a cobiça dos políticos, pode ser eficaz.

Por outro lado, falar apenas da cobiça estatal não resolve o problema. Chapeuzinho Vermelho fora advertida de que não deveria ir pela floresta. E por onde é que ela foi? Ao investimento estatal na intrusão da vida particular deve corresponder um anseio de que o Estado invada: o Vampiro só pode entrar numa casa se for convidado.

Winnicott (1950) fala da quantidade de “indivíduos reagindo à insegurança interna através da tendência alternativa – a identificação com a autoridade” (p. 254). Existiria algo sombrio em nós, clamando por nos tornar servos de algo ou de alguém?

Bruno Garschagen (2015) discute o problema em nossa realidade nacional através de um paradoxo: não acreditamos nos políticos e esperamos do governo as soluções para nossas vidas: “por qual razão nós, que tínhamos uma imagem tão compreensivelmente negativa sobre os políticos, achávamos que o governo deveria resolver os problemas do país?” (p. 196). Antigamente – e tenho lembranças disso das falas de tios e avós, gente rústica do interior de Minas Gerais –, parecia fácil traçar a linha no fio do bigode entre o que é meu e o que é seu. Quando um inadequado cruzava a linha, a frase “cuide da sua vida!” era sonoramente enunciada. Se a inadequação corresse o risco de vir do governo, ouvia-se “Isso não é da conta do Governo!”. Se o meu bigodudo tio tivesse lido Furedi, certamente afiançá-lo-ia naquilo que o sociólogo, comparando passado e presente, escreveu: “no passado, foi reconhecido que tal interferência poderia ser prejudicial e que os pais devem ter permissão para criar os filhos à sua maneira”[2] (p. 189). Claro que essa vociferada força sucumbiria ante um interesse maior do governo em afirmar o contrário: “isso é sim da minha conta!”. Aí reside um ponto: parece ter havido um aumento na sanha do governo em ampliar a sua conta, em cruzar a linha.

Furedi é categórico ao afirmar haver uma intervenção crescente do Estado nos assuntos privados familiares – com a influência e ajuda dos profissionais dos cuidados infantis. Curioso como um objeto, a infância, tão recentemente recortado, seja banhado de tanta certeza[3]. Já foi aquele tempo em que se podia sustentar, diante da máquina estatal, qualquer frase cuja essência fosse “isso não é da conta do governo”.

Winnicott disse que “o medo simplifica a situação emocional, porque muitos dos y indeterminados e dos x antissociais tornam-se capazes de se identificar com o Estado” (p. 267). À diferença de Furedi, para quem a crescente intervenção do Estado na esfera particular-familiar é causa de paranoia parental: “A intervenção oficial na esfera da paternidade não oferece soluções. Só alimenta a paranoia dos pais, distrai as pessoas de lidar com problemas genuínos e aumenta as dificuldades dos pais”[4] (p. 192); Winnicott diz que é a paranoia, entre outras consequências de uma individuação problemática[5], que responde pela adesão maciça ao Estado. Com Winnicott, pode-se pensar que a democracia não é, efetivamente, a regra no mundo democrático; ela é potencial, requer maturidade para que seja, digamos, desejada: “uma sociedade democrática é ‘madura’, quer dizer, que apresenta uma qualidade que é aliada à maturidade individual que caracteriza seus membros saudáveis […]” (p. 250). É melhor, então, pensar em apoiá-la, a democracia, de forma negativa: “através da não interferência organizada na boa relação comum mãe-criança e no bom lar comum” (p. 262).

Aqui voltamos à convergência entre Furedi e Winnicott: ambos apontam a tendência, na democracia, para a interferência estatal na esfera privada. Para Furedi, a causa repousaria numa incapacidade para dar destinação correta ao real sentimento de que haja algo de podre no Reino da Dinamarca: “a politização da paternidade é impulsionada por um profundo sentimento de mal-estar moral”[6] (p. 187). O equívoco estaria no fato de que “culpar os pais pelo presente estado de mal-estar moral é confundir o sintoma com a causa”[7] (p. 188).

Winnicott diz que a democracia precisa levar em conta as interações entre ‘x’ de imaturos e ‘y’ de antissociais. Havendo maior número entre os antissociais e os indeterminados, a balança ficaria desequilibrada em favor do Estado e contra o indivíduo (justo pela ofensa causada pelo indivíduo naquele que não alcançou a unidade), sobretudo quando ascende aquela liderança imatura que “imediatamente começa a se rodear de indivíduos antissociais óbvios, que lhes dão boas-vindas, como se ele fosse seu chefe natural” (p. 255). Desse modo, ao contrário de Furedi, não seriam o oportunismo e o analfabetismo moral da classe política os motores do avanço do Estado sobre a esfera da vida privada. Talvez a tendência das sociedades democráticas a se identificar com o governo, obedecendo-o, servindo-o, advenha de um pedido latente – difícil de ser reconhecido – daquele ‘x’ e daquele ‘y’ egressos da parte do todo tendente à democracia. Democracia que é composta, como nos propõe Winnicott, por porcentagens de “antissociais; indeterminados; pró-sociedade, porém anti-indivíduo, e de indivíduos saudáveis capazes de contribuição social”. (p. 255). A esperança estaria em fazer frear a fúria do Estado em se intrometer na esfera privada, sustentando – para falar nos termos de Winnicott – o fator democrático inato: “Podemos evitar interferir nos lares que podem dar conta, ou que estão dando conta, de lidar com suas próprias crianças e adolescentes. Esses bons lares comuns [8] fornecem o único contexto em que se pode criar o fator democrático inato” (p. 257).

Furedi vai numa mesma direção quando afirma que as sutilezas das relações emocionais mais íntimas não são bem apoiadas pelas formalidades impessoais das políticas públicas. Tornar as relações familiares alvo de políticas públicas, fazendo avançar a maquinaria pública, com seus tantos agentes e falantes, para dentro da última salvaguarda do controle total, dispara a paranoia dos pais, cujas “relações familiares íntimas se tornaram sujeitas ao escrutínio público”[9] (p. 190), uma vez que “tal pressão, seja na forma de conselhos úteis, advertências periódicas de saúde ou a intervenção de profissionais ou políticos, corrói continuamente a confiança dos pais”[10] (p. 190). Como corolário: “tirar a questão da paternidade da esfera da vida política seria uma contribuição valiosa para restaurar a confiança de muitos pais”[11] (p. 190). Desse modo, Furedi limita o avanço do Estado, e de seus papagaios de pirata, ao afirmar que “o papel das autoridades públicas deve ser restrito às circunstâncias excepcionais em que uma criança enfrenta um dano real”[12] (p. 191). Não mais do que isso. Furedi, ainda para mostrar que o feitiço pode se virar contra o feiticeiro, nos lembra de uma advertência feita pelo psicanalista inglês: “tudo o que não sustentar especificamente a ideia de que os pais são pessoas responsáveis, a longo prazo, será prejudicial para o próprio corpo da sociedade”[13] (p. 192).

O que parece ser uma tendência das sociedades democráticas, ter os espaços privados legislados pela esfera pública estatal, é explicitada por Furedi como equívoco e oportunismo. Equívoco em se confundir a causa com o efeito: o mal-estar vivido com a erosão dos valores foi confundido com mau comportamento moral das famílias. O oportunismo surge quando a política (e suas esferas) se aproveitam dos sintomas para fazer avançar uma agenda favorável à expansão do poder estatal. Winnicott, por sua vez nos faz ver que a democracia é uma tendência potencial inata, que pode ou não ser atualizada, devendo ao que predominar numa dada sociedade em termos quantitativos e qualitativos, distribuídos entre os indivíduos maduros ou em via de se tornarem maduros.

O que aproxima os dois autores é a defesa da esfera particular contra a voracidade estatal. O que os separa é a explicação das causas. Para Furedi, é o equívoco e o oportunismo, que, ao minar a confiança dos pais, acende a paranoia. Para Winnicott, é a paranoia quem responde pela eventual adesão das pessoas à sanha estatal.

Referências

ARIÈS, P. (1986). História Social da Criança e da Família (2ª ed.). (D. Flaksman, Trad.) Rio de Janeiro: Guanabara.

BAKUNIN, M. (1873). Estatismo y Anárquia. Acesso em 15 de novembro de 2020, disponível em http://afoiceeomartelo.com.br/posfsa/: encurtador.com.br/crKU8

BETTELHEIM, B. (2007). A Psicanálise dos Contos de Fadas (21 ed.). São Paulo: Paz e Terra.

BOÉTIE, E. d. (1549/2006). Discurso da Servidão Voluntária. São Paulo: EbooksLibris.

BULFINCH, T. (2006). O Livro de Ouro da Mitologia – Histórias de Deuses e Heróis. In: Os Monstros (D. Jardim, Trad., pp. 126-132). Rio de Janeiro: Ediouro.

FUREDI, F. (2008). The Business of the State. In: Paranoid Parenting – Why Ignoring the Experts May be Best for Your Child (pp. 186-192). Continuum.

GARSCHAGEN, B. (2015). Pare de Acreditar no Governo – Por que os brasileiros não confiam nos políticos e amam o Estado (1ª ed.). Rio de Janeiro: Record.

WINNICOTT, D. W. (1999). (1950) Algumas Reflexões sobre o Significado da Palavra “Democracia”. In: Tudo Começa em Casa (P. Sandller, Trad., 3ª ed., pp. 249-272). São Paulo: Martins Fontes.

[1] All potential parents face the attention of policy makers.

[2] In the past, it was recognized that such interference could be harmful and that parents must be allowed to bring up children their own way.

[3] Segundo o historiador Philippe Ariès, a infância, antes de nossa época, era um anonimato.

[4] Official intervention into the sphere of parenting offers no solutions. It only fuels parental paranoia, distracts people from tackling genuine problems, and magnifies parenting difficulties.

[5] Síntese grosseira da ampla teorização de D. W. Winnicott sobre o processo do amadurecimento pessoal (e seus percalços), descrita dentro de uma linha de desenvolvimento distribuída em três marcos: (1) dependência absoluta, (2) dependência relativa e (3) independência relativa.

[6]The politicization of parenting is driven by a profound sense of moral malaise.

[7]To blame parents for the present state of moral malaise is to confuse the symptom with the cause.

[8] Itálico do autor.

[9]It is evident that one of the main causes of parental paranoia is the way in which intimate family relations have become subject to public scrutiny. Such pressure, whether in the form of helpful advice, periodic health warnings, or the intervention of professionals or of politicians, continually erodes parental confidence.

[10] Ibid.

[11] Taking the issue of parenting out of the sphere of political life would make a valuable contribution toward restoring the confidence of many parents.

[12] The role of public authorities should be confined to those exceptional circumstances in which a child faces real harm.

[13] This danger was clearly anticipated by D. W. Winnicott when He warned that “whatever does not specifically back up the Idea that parents are responsible people will in the long run be harmful to very core of society”.

Imagem: Gryphon retratado em afresco no Palácio de Knossos, Creta, séc. 15 AC

Sobre o autor

Ricardo Rodolfo de Rezende Prado

Psicanalista e consultor em escolas da rede particular de ensino. Graduado em Filosofia pela PUC-Minas, com formação e especialização em Psicanálise (Cinpp-Vale/Univap). Pesquisador do Grupo A Crise do Amadurecimento na Contemporaneidade, do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo /PUC-SP – LABÔ.