Teologia Cristã e Religião Contemporânea

Novos fenômenos evangélicos: hermenêutica pentecostal

Um dos novos fenômenos que mais tem chamado atenção dentro do contexto evangelical brasileiro diz respeito ao universo pentecostal. No Brasil, o pentecostalismo é notoriamente o solo mais fértil que o evangelicalismo já testemunhou. Entretanto, devido a sua capilaridade e popularidade, a religião evangélica das massas – o pentecostalismo –, envolvendo as camadas menos privilegiadas economicamente e periféricas, sempre foi alvo de críticas dos grupos protestantes supostamente mais intelectualizados e minoritários. “Emocionalismo”, “falta de estudo”, “ignorantes” e “heresia” são alguns dos termos utilizados para descrever os pentecostais pela “elite” evangelical histórica – que não raras vezes despreza os mais de cem anos das Assembleias de Deus em terras brasileiras. Fato: na leitura superficial de batistas, presbiterianos e outras denominações, pentecostais sempre foram tratados em tom de desprezo, de forma pejorativa e com muito preconceito.

Com a neocalvinização do pentecostalismo[1] – que tenta introduzir em terrenos pentecostais a “intelectualização teológica calvinista” e, de forma mais enfática do que o lastro histórico já o fez, o fundamentalismo cristão (ambos com as suas tendências racionalistas), bem como o desprezo da riqueza teológica pentecostal já existente na maneira pentecostal de vivenciar a fé cristã –, teólogos acadêmicos foram capazes de descortinar os elementos teológico-filosóficos pentecostais de maneira academicamente rigorosa. Impulsionados por uma busca de valorização do pentecostalismo, do jeito que ele é, e empenhados em destacar a sofisticação da teologia pentecostal, brasileiros como Kenner Terra, David Mesquiati, César Carvalho e Gutierres Siqueira, e norte-americanos e europeus, como Amos Yong, Graig Keener, Kenneth Archer, Veli-Matti Kärkkäinenm, Harold D. Hunter e James K. A. Smith, têm proposto uma hermenêutica pentecostal. Neste breve artigo busca-se sintetizar os principais eixos teológico-filosóficos dessa proposta.

Valorização da experiência

A fé pentecostal é experiencial. “Sentir Deus” é determinante para o fiel que participa dos cultos carismático-pentecostais. Vale mencionar que a teologia pentecostal clássica destaca os dons espirituais, com especial atenção ao falar em línguas, fenômeno da glossolalia, em que o fiel em um transe religioso fala em idiomas desconhecidos aos humanos, também compreendidos como idiomas angelicais. O elemento experiencial, envolvendo radicalmente as emoções e o corpo, é o coração da fé pentecostal. Dessa forma, os estudiosos que trabalham a hermenêutica pentecostal buscam dar a centralidade à experiência em sua produção teológica, especificamente em termos epistemológicos.

Crítica ao racionalismo

Embora possa parecer que a proposta seja reduzida a um irracionalismo, na verdade ela é uma crítica contundente ao racionalismo moderno, presente em diversas metodologias teológicas, especialmente no protestantismo. Ao enaltecer a experiência, o que esses autores pretendem é simultaneamente superar uma lógica dicotômica entre fé e razão, abrindo caminho para uma percepção integral da experiência de Deus, conciliando racionalidade e emoção. Para tanto, a hermenêutica pentecostal é oferecida como opção diante de um protestantismo e evangelicalismo intelectualista, racionalista e refém de métodos oriundos do Iluminismo. A crítica é pertinente, pois os teólogos fundamentalistas cristãos e os conservadores, ao criticarem o “emocionalismo pentecostal”, não se dão conta de que toda a sua epistemologia é devedora da modernidade racionalista, ainda que possua um “ar piedoso”.

Crítica ao relativismo

Nota-se que esse projeto também abre uma frente de resistência ao relativismo pós-moderno. Muito embora a proposta seja uma possibilidade viável para a dita pós-modernidade, é verdade que os traços de uma teologia conservadora permanecem. Em outras palavras, nota-se cautela nesses expoentes, especialmente no Brasil, em não serem considerados relativistas e pós-modernos stricto sensu. Permanecendo fiéis aos principais símbolos da fé evangelical, dentre eles a autoridade do texto bíblico, pretende-se sempre conservar limites e fronteiras para que a experiência seja “gerida” e para que o relativismo não prevaleça dentro da proposta. Ao mesmo tempo, busca-se fôlego intelectual para que esse projeto hermenêutico enfrente liberais e fundamentalistas dentro do debate epistemológico.

Valorização do método narrativo de leitura do texto

Dentro desse “campo de batalha”, a maneira de acesso ao texto bíblico é revisitada no debate acadêmico. Percebendo que a experiência possui lugar privilegiado e evitando caminhos extremos como o racionalismo e o relativismo, a forma pentecostal de acessar o texto bíblico carece de um tipo específico de interpretação. O que se destaca nos autores é o método narrativo. Utilizando-se de trabalhos contemporâneos na área da semiótica, o método narrativo – que parece ter sido adotado inconscientemente pelos fiéis pentecostais, os quais colocam em destaque o leitor como pessoa ativa e protagonista na leitura da Bíblia – faz com que a experiência que dá origem ao texto e a experiência do leitor do texto que testemunha a experiência se encontrem. Esse encontro, que supera os métodos histórico-gramatical (mais fundamentalista) e histórico-crítico (mais liberal), torna possível ao leitor “experienciar” o texto, pois, mais do que entender o conteúdo e assimilá-lo preposicionalmente, as emoções, os aspectos estéticos e a criatividade tornam-se indispensáveis dentro dessa proposta.

Práxis pentecostal

Um último elemento a ser destacado é o horizonte da práxis pentecostal. A despeito de ser predominantemente conservador, o pentecostalismo é capaz de exercer mudanças históricas e concretas no mundo, sem precisar “apelar” para elementos teóricos que subsidiem a sua prática social. Sem ser marxista e progressista politicamente, a práxis pentecostal é elaborada por autores dessas vertentes, na medida em que essa hermenêutica coloca o fiel como protagonista da história. Imbuídos da linguagem bíblica, o crente pentecostal é cheio do Espírito Santo para viver a vida real e concreta e não para experimentar um “êxtase intelectual” alienante. Assim, por um caminho diferente das teologias latino-americanas, a hermenêutica pentecostal revela uma possibilidade de superações de problemas estruturais graves na sociedade, por intermédio de um poder espiritual que atua na vida real das pessoas, independentemente de sua classe social, gênero ou cor de pele. Muito embora, intuitivamente, a prática dos pentecostais já aconteça há décadas, a sua teorização é realizada por esses estudiosos, que destacam a capacidade do modus operandi pentecostal de superar o racismo, o machismo e o elitismo estrutural brasileiros.

A hermenêutica pentecostal mostra-se muito frutífera como filosofia capaz de subsidiar intelectualmente o pentecostalismo, abrindo caminho para muitos desdobramentos e para produções teológicas cujas metodologias sejam genuinamente pentecostais, não devendo em nada a outras tradições da fé cristã. Mais: há potencial de exportação dessa hermenêutica, dada a sua relevância e pertinência para a pós-modernidade e a limitação metodológica das teologias evangelicais que ou cedem ao fundamentalismo racionalista com ênfase apologética e intolerante ou ao liberalismo racionalista igualmente apologético e intolerante às avessas. Uma crítica, porém, é pertinente: a hermenêutica pentecostal como proposta teológica fundamental, no sentido de ser um teosofema[2], parece ter as suas limitações, pois tenta abrigar o pentecostalismo – fenômeno datado – e a experiência de Deus – fenômeno humano abrangente –, ao mesmo tempo. Ao se limitar a tradição pentecostal, não se leva em conta o quão fundamental é a experiência em si nem o potencial em termos de teologia fundamental que a experiência possui. Claro que esse seria um caminho um tanto quanto arriscado, especialmente para quem precisa enfrentar apologeticamente tanto fundamentalistas quanto liberais. Mesmo assim, esse apontamento é pertinente, pois o risco de um anacronismo “romântico-pentecostal” na história do protestantismo é real. Tal romantização do pentecostalismo gera mais um risco: desconsiderar academicamente o fundamentalismo presente na prática pentecostal, retratado em um moralismo comportamental e intolerância religiosa que, mesmo não podendo ser generalizado, é predominante. Ou seja, o potencial de “abertura” epistêmica parece estar mais conectado com a experiência em si do que com a “experiência pentecostal”.

Abaixo textos sugeridos para aprofundamento:

GUTIERRES, Siqueira; TERRA, Kenner. Autoridade bíblica e experiência no espírito: a contribuição da hermenêutica pentecostal-carismática. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2020.

OLIVEIRA, David Mesquiati de; TERRA, Kenner. Experiência e hermenêutica pentecostal: Reflexões e propostas para construção de uma identidade teológica. Rio de Janeiro: CPAD, 2018.

SMITH, James K. A. Pensando em línguas: uma contribuição pentecostal para a filosofia cristã. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil; Renova, 2020.

Referências Bibliográficas

[1] Outro fenômeno que está sendo investigado pelo Grupo de pesquisa Teologia Cristã e Religião Contemporânea do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.

[2] Significa uma questão teológica fundamental, que influencia toda uma teologia.

Imagem: foto de Rovena Rosa/Agencia Brasil

Sobre o autor

André Anéas

Doutorando e mestre em Teologia pela PUC-SP e bacharel em Teologia pela Faculdade Teológica Batista de SP. É autor dos livros “A racionalização da experiência de Deus” (CRV, 2019) e “Protestantismo e Mística - razão e experiência mística no protestantismo histórico” (Fonte Editorial, 2016) e organizador da obra “Diálogos sobre a experiência de Deus” (Recriar, 2020). É membro do grupo de pesquisa “A Questão de Deus” (PUC-SP) e coordena o grupo de pesquisa “Teologia Cristã e Religião Contemporânea” no Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.