
A paisagem contemporânea assemelha-se menos a um cemitério de deuses e mais a um supermercado das religiões[1]. Essa alegoria evoca duas perspectivas acerca da religião na modernidade. De um lado, partindo de prognósticos influenciados por certa visão iluminista, acreditava-se que com o advento da sociedade moderna industrial e secularizada, baseada na ideia de emancipação dos sujeitos e com a noção de progresso da história, inevitavelmente se daria o “fim da religião” e a “morte de Deus” na cultura contemporânea. De outro, dá-se a constatação que o prenúncio do desaparecimento das religiõesnão apenas não ocorreu, mas, ao contrário, deu lugar a uma recomposição e difusão religiosa global de uma sociedade moderna com “múltiplos altares”[2].
Desde a segunda metade do século XX, espiritualidades new age, novas tradições afro-étnicas, pentecostais e carismáticos nos cristianismos, movimentos de místicas sufi no islã, correntes zen-budistas, entre tantas outras expressões – formam como que um tipo de grande prateleira de opções religiosas. Essa disseminação das mais variadas formas e tipos de religiosidades, em especial nas últimas décadas, obrigou uma revisão teórica e a busca por chaves de interpretação mais refinadas para compreensão desse fenômeno. Este novo cenário guarda relações homônimas com a de um mercado: as tradições religiosas passam a ser tornar commodities de consumo, as instituições como empresas burocráticas do sagrado colocadas numa situação de concorrer com outros grupos, tendo que adaptar suas crenças/práticas a partir das demandas dos crentes religiosos que passam a se comportar como consumidores. Na literatura das ciências sociais, essa leitura da condição religiosa moderna ficou conhecida como teoria do mercado religioso. Desde então, a dinâmica do campo das religiões tem sido interpretada a partir de uma leitura da economia religiosa baseada na lógica de consumo de bens e serviços religiosos, à semelhança do funcionamento capitalistas das sociedades modernas.
A metáfora do mercado, mais do que apenas um recurso de linguagem, constitui-se de um quadro teórico-metodológico que nos permite uma análise das lógicas e dinâmicas das religiões na modernidade. Historicamente, essa perspectiva que articula as relações entre religião e mercado/economia encontra suas raízes nas discussões pioneiras dos “pais” do pensamento sociológico como Adam Smith, Karl Marx, Max Weber, ou, mais recentemente, em autores como Pierre Bourdieu. Mas é a partir das décadas de 1970 e 1980 com os estudos de autores como Rodney Stark, Roger Finke, Laurence Iannaccone e Peter Berger que se desenvolveu a chamada “teoria da escolha racional da religião” e a “teoria do mercado religioso”. No diálogo entre as ciências econômicas e sociais, estes autores buscaram compreender o funcionamento e orientação das religiões no contexto das sociedades capitalistas, das quais, teriam sido submetidas à uma lógica mercadológica. Uma vasta produção pode ser encontrada a respeito desta discussão[3]. Neste breve artigo, buscaremos compreender o contexto, aspectos e dinâmicas do mercado das religiões desta perspectiva de análise do religioso na contemporaneidade.
O religioso nas tramas do mercado: secularização, pluralismo e seus efeitos sobre as religiões na contemporaneidade
O mercado religioso é um fenômeno decorrente do processo de secularização das sociedades modernas que desestabiliza o monopólio religioso de certas instituições anteriormente hegemônicas possibilitando assim uma pluralização de ofertas religiosas. Nessa perspectiva, quanto mais secularizada for uma sociedade, isso não implicará em necessariamente menos religião, mas sim, mais ofertas religiosas disponíveis na sociedade. No mercado das religiões, as tradições de fé e espiritualidades se organizam, direta ou indiretamente, em função da lógica desse mercado, numa relação de rejeição, de tensão ou de acomodação. Nesse contexto, os grupos que mais se adaptarem à lógica de funcionamento terão maiores probabilidades de êxito; em contrapartida, àquelas que não o fizeram tenderão a marginalizar-se no interior deste mercado. A busca por resultados e rentabilidade torna as tradições religiosas centradas na racionalização dos seus processos, otimização de suas ofertas, competitividade com outros grupos
A situação de mercado decorrente do processo de secularização e pluralismo tem promovido uma diversificação das ofertas religiosas, levando a um ambiente onde diferentes crenças coexistem e competem por espaço. Esse mercado das religiões resulta em mudanças significativas nas formas de prática e expressão da fé, com implicações profundas tanto para os indivíduos quanto para as instituições religiosas, que precisam se adaptar a um cenário cada vez mais plural e dinâmico. O religioso nas tramas do mercado revela a complexa relação entre secularização, pluralismo e suas consequências para as religiões na contemporaneidade.
As empresas do sagrado: as instituições religiosas sob o imperativo da burocracia e concorrência
As instituições religiosas, cada vez mais percebidas como empresas de gestão de bens simbólicos de salvação, enfrentam o imperativo da burocracia e da concorrência no contexto contemporâneo. Essa condição transforma as práticas religiosas em operações que exigem uma administração eficiente, refletindo uma crescente burocratização das empresas religiosas. Nesse cenário de mercado, a concorrência entre diferentes tradições e denominações gera disputas e conflitos que moldam as interações religiosas, desafiando as instituições a se adaptarem às dinâmicas competitivas enquanto buscam manter sua relevância e atratividade para os fiéis. Assim, as organizações religiosas se veem obrigadas a reelaborar suas crenças com as exigências de um ambiente de mercado em constante mudança.
O aumento desregulado das ofertas e da concorrência inflaciona o mercado do sagrado, gera reações estratégicas das instituições religiosas para sobreviver nesse cenário competitivo. As denominações transformam-se em “grifes religiosas”, semelhantes às marcas seculares, que definem perfis específicos de consumidores religiosos, evidenciando uma customização em aspectos como músicas, pregações, aparência dos pastores e conforto dos templos. Há uma crescente preocupação estética com a imagem das lideranças, pregadores e comunicadores, refletida nos cultos-espetáculos, onde a performance litúrgica precisa ser profissional e eficiente. Os templos, agora com características de shopping, oferecem conforto, tecnologia e entretenimento, fazendo do rito litúrgico um espetáculo a ser apreciado.
As instituições que operam com “amadorismo” ou pouca competência técnica tendem a sucumbir diante da concorrência, levando ao crescimento da informalidade dos microempreendimentos religiosos, que incluem pequenas comunidades e serviços pontuais como casas de oração e práticas de cartomancia. Para atender à necessidade de competência técnica e ferramentas eficientes na gestão burocratizada, surgem agências que oferecem consultoria para o crescimento e desenvolvimento de igrejas, realizando pesquisas de mercado para entender a realidade social e religiosa ao redor. Assim, a concorrência não só gera disputas e conflitos entre grupos, mas também fomenta a formação de corporações religiosas que se agremiam para somar forças, criando redes comerciais-religiosas de cooperação, apoio e parcerias.
Crentes e consumidores: individualização e privatização dos sujeitos religiosos como fiéis-clientes
Na situação de mercado, a identificação à um grupo religioso é menos uma relação de conformidade e mais uma interação de consumo. A produção religiosa no contexto de mercado se dá a partir de demandas estabelecidas por estratos sociais específicos para o qual grupos específicos de especialistas irão fazer a oferta e gestão destes bens simbólicos da salvação. A tradição para consumo se dá para o “gosto e apetite” dos sujeitos religiosos, que se servem à la carte. As noções de obrigatoriedade e dever das formas religiosas tradicionais vão sendo substituídas pela ideia de voluntarismo e livre associação na religiosidade moderna de mercado. As identidades religiosas em tempo de mercado se dão de modo pragmático, centralizado na eficácia simbólica, no caráter terapêutico, na experiência extática-emocional.
Nesse novo cenário, os fiéis são cada vez mais vistos como clientes, cujas demandas e interesses moldam a prática religiosa. Essa transformação implica uma adaptação das instituições religiosas, que precisam responder às expectativas de um público que busca experiências personalizadas e que valoriza a autonomia na escolha de suas crenças. Assim, a privatização das identidades religiosas reflete não apenas uma mudança na forma como a fé é vivida, mas também uma reconfiguração das relações entre as instituições e seus seguidores, enfatizando a importância da satisfação individual em um mercado religioso em expansão.
Comoditização da fé: a customização e reelaboração das crenças e práticas religiosas
A comoditização da fé refere-se à customização e reelaboração das crenças e práticas religiosas consumidas como produto no contexto contemporâneo. Nesse cenário, o capital religioso é tratado como bens e serviços de consumo no mercado das crenças, onde as religiões se adaptam às dinâmicas do mercado. A lógica e o funcionamento dos produtos religiosos modernos revelam como essas práticas são moldadas pelas demandas dos consumidores, levando a uma customização que atende às necessidades individuais e coletivas. Essa transformação implica não apenas na oferta de produtos religiosos, mas também na maneira como as crenças são vivenciadas e interpretadas, refletindo as exigências e preferências do público atual.
As formas de devoção, práticas de espiritualidade e experiências extáticas passam a tornar-se commodities de uma sociedade de mercado como bens de consumo simbólico. Tal customização e reelaboração das ofertas religiosas refletem uma dinâmica contemporânea na qual as definições teológicas dos dogmas são relativizadas e apropriadas de maneira subjetiva, resultando em uma formação de identidades religiosas que são mais pessoais do que tradicionais. As crenças não são mais avaliadas apenas por sua lógica racional ou pretensão de verdade teológica, mas sim pela eficácia e pela experiência emocional que proporcionam. Diante deste quadro, as religiões que se concentram em aspectos mais racionais e doutrinários tendem a perder espaço para aquelas que promovem experiências extáticas e mais conectadas ao cotidiano dos indivíduos. Muitas vezes, essas crenças são (re)apropriadas de forma sincrética, em um processo de bricolagem religiosa. Além disso, as práticas religiosas tornam-se não obrigatórias, caracterizadas por pertenças frouxas e fluidas, permitindo um trânsito e circulação temporária entre diferentes grupos. Essa dinâmica resulta em um “estar em” determinado grupo religioso, mais do que a sensação de pertencimento, destacando a flexibilidade e a individualidade na vivência da fé.
* * *
Para concluir, em resumo, a secularização e o pluralismo provocam uma situação de mercado no campo religioso que conduz as instituições religiosas a agirem como empresas sob imperativos burocráticos (como racionalidade, eficiência, rentabilidade etc.) num contexto de concorrência. Dentro deste quadro se dá a emergência de novas formas de identificação religiosa baseadas na individualização e privatização, gerando “fiéis-clientes” consumidores de bens simbólicos de salvação. Por fim, ocorre uma customização das crenças e práticas religiosas em vista às suas ofertas como produtos e serviços especializados para segmentos particulares. Portanto, a metáfora do mercado das religiões se coloca como uma chave teórico-metodológica a partir do qual aqueles interessados em compreender não apenas o campo religioso, mas sobretudo as tendências culturais do contemporâneo, precisam se debruçar de maneira analítica e crítica.
Bibliografia
BERGER, Peter. Dossel Sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. Petrópolis: Vozes, 1985.
BERGER, Peter. Os múltiplos altares da modernidade: rumo a um paradigma da religião numa época pluralista. Petrópolis: Vozes, 2017.
BOBINEAU, Olivier; TANK-STORPER, Sébastien. Sociologia das religiões. São Paulo: Edições Loyola, 2011.
FINKE, Roger; STARK, Rodney. Religious Economies and Sacred Canopies: Religious Mobilization in American Cities, 1906. American Sociological Review, Vol. 53, No. 1 (Feb., 1988).
GUERRA, Lemuel Dourado. Mercado religioso no Brasil: competição, demanda e a dinâmica da esfera da religião. Tese de doutorado apresentada ao programa de Pós-Graduação em Sociologia, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2000.
HOUTART, François. Mercado e religião. São Paulo: Cortez Editora, 2003.
IANNACCONE, Laurence. Religious markets and the economics of religion. Social Compass, 39(1), 1992.
OBADIA, Lionel. Marchés, business et consumérisme en religion: vers un «tournant économique» en sciences des religions?. Mélanges de l’École française de Rome – Italie et Méditerranée modernes et contemporaines, 129-1, 2017.
PIERUCCI, Antonio Flávio. O fiel é Deus: notas sobre o mercado religioso. Revista Rever, Ano 13, n.02, Jul/Dez 2013.
[1] HOUTART, François. Mercado e religião. São Paulo: Cortez Editora, 2003, p.38.
[2] BERGER, Peter. Os múltiplos altares da modernidade: rumo a um paradigma da religião numa época pluralista. Petrópolis: Vozes, 2017.
[3] Sobre a discussão acerca da “teoria da escolha racional” e do “mercado religioso” em língua portuguesa: FRIGERIO, Alejandro. O paradigma da escolha racional: mercado regulado e pluralismo religioso. Tempo Social, v.20, n. 2, 2008.; FRIGERIO, Alejandro. Teorias Econômicas Aplicadas ao Estudo da Religião: em Direção a um Novo Paradigma? BIB, Rio de Janeiro, n. 50, 2°sem., 2000.; GUERRA, Lemuel Dourado. Mercado religioso no Brasil: competição, demanda e a dinâmica da esfera da religião. Tese de doutorado apresentada ao programa de Pós-Graduação em Sociologia, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2000.; JUNGBLUT, Airton. O “mercado religioso”: considerações sobre as possibilidades analíticas da teoria da “economia religiosa” para a compreensão da religiosidade contemporânea. REVER, Ano 12, n.2, Jul/Dez, 2012.; MARIANO, Ricardo. Usos e limites da teoria da escolha racional da religião. Tempo Social, v.20, n.2, 2008.; MONIZ, Jorge Botelho. Teorias da secularização e o modelo da economia religiosa: uma análise comparativa. Ciencias Sociales y Religión, Ano 19, n. 26, p. 52-74, Set/2017.; OLIVEIRA, Lívio; NETO, Giácomo. A teoria do mercado religioso: evidências empíricas na literatura.REVER, Ano 14, n.1, Jan/Jun, 2014.
Imagem gerada por IA
