
Introdução
As duas últimas eleições marcaram um giro na relação entre política e religião no Brasil, deslocamento caracterizado pela ultrapassagem do conhecido favorecimento político via instrumentalização do sagrado por uma forma de sacralização da política, notadamente no meio evangélico.
Nossa análise parte de três pressupostos metodológicos. O primeiro é lógico-temático, posto que trabalhamos política e religião em relação, segundo o estabelecimento de distinção entre os campos. Outro pressuposto é histórico-temático, tendo o presente tema lugar desde a autonomização das mais diversas dimensões da sociedade na modernidade, historicizando-se no contexto do Estado laico. Por fim, temático-epistêmico, que se justifica pela ampla extensão da fenomenologia do sagrado, o que nos conduz à delimitação ao seu momento racional, ou seja, o sagrado capturado pelas malhas da linguagem e domesticado nas formas de uma religião instituída.
Da politização do sagrado
Em um país como o Brasil, em que a maioria da população professa algum tipo de fé, especialmente o cristianismo, não seria estranho observar, ao longo de seu processo histórico, diferentes estratégias de uso político do espaço religioso para fins de obtenção e manutenção do poder.
Num jogo de contrapartidas e conluio de interesses, tornou-se comum a prática do clientelismo, atividade caracterizada pela troca de favores com o governo federal, a exemplo da concessão de canais de rádio e TV. Como estratégia de ampliação dessa influência, o “voto de cajado” se tornou ferramenta largamente utilizada pela liderança religiosa perante a comunidade. Pouco tempo depois de os evangélicos começarem a marcar presença política no país[1], quando se formou, durante a Constituinte em 1986, a chamada “bancada evangélica”, a Igreja Universal do Reino de Deus, mediante seu Conselho Bispal, já escolhia os candidatos em que os fiéis deveriam votar[2]. Em período de eleição, pastores das mais diferentes igrejas se transformavam em cabos eleitorais, quando as mídias também se tornavam palanques para divulgar candidaturas e inflacionar o debate sobre pautas morais. Em 1989 já corriam boatos de que o então candidato Lula fecharia as igrejas evangélicas caso ganhasse as eleições, sendo inclusive comparado ao demônio[3]. Em 1994 a Associação Evangélica Brasileira (AEVB) chegou a elaborar uma cartilha com dez pontos para orientar o voto dos evangélicos[4].
Da sacralização da política
O giro qualitativo que identificamos e ao qual ora nos referimos se define como uma intensificação do discurso instrumental, que vai além das pautas morais e busca distorcer elementos histórico-políticos para criar uma atmosfera caótica e embasar uma narrativa apocalíptica que justifique o retorno ao flerte com a via ditatorial, produzindo um discurso alienante que leva à maioria evangélica conservadora a idealizar numa figura política uma espécie de messias como única opção para a salvação da nação.
Os meios tradicionais de barganha de votos continuam em cena, no entanto novos elementos surgem como protagonistas nesse enredo “político-autoritário e de recorte fundamentalista”[5].
O primeiro a ser destacado é a dinâmica das redes sociais e as chamadas “fake news”. O triunfo eleitoral da extrema direita se deve notadamente à manipulação do universo digital. As plataformas como Facebook, Twitter (atual X) e WhatsApp desempenharam um papel fundamental na disseminação instantânea de informações, muitas vezes descontextualizadas, ampliando polarizações, ganhando proeminência com a atuação do chamado “gabinete do ódio”, que se engajou em estratégias agressivas de marketing político, formando bolhas informativas, através de algoritmos, capazes de promover a segmentação do público nas redes sociais e reforçar visões pré-existentes, dificultando o diálogo saudável e construtivo.
Inúmeras foram as informações falsas produzidas, principalmente quanto às pautas morais-religiosas dominantes, considerando que no Brasil, a defesa de uma moral de costumes costuma ser mais inflamada que a defesa de uma moral social, potencializando o fenômeno do fundamentalismo religioso e fortalecendo a lógica da universalização impositiva dos costumes da maioria em detrimento das minorias.
A título ilustrativo, em agosto de 2018, o candidato à presidência pelo PSL mostrou, em entrevista ao Jornal Nacional, o livro chamado “Aparelho Sexual e Cia”, afirmando que ele faria parte de um “kit gay” distribuído a escolas durante os governos petistas.
Elementos simbólicos do universo sagrado foram estrategicamente utilizados e dimensionados para favorecer a identificação política-religiosa. Especialmente no nicho protestante, a restrição ao uso cúltico de ícones e o déficit imagético daí decorrente talvez tenha sido o fator determinante do desvio do imaginário evangélico para o campo simbólico produzido pela teologia política bolsonarista[6].
A exploração do nome “messias” bem como o episódio do atentado à facada ocorrido na campanha de 2018 são exemplos claros dessa usurpação. Por diversas vezes o candidato de extrema direita foi comparado a um mártir que se sacrificou pela nação. Montagens com a frase “Ele sangrou por ti” viralizaram nas redes[7] e serviram de chamariz para ajuntamentos nas ruas durante toda sua trajetória política. Ovacionada e em meio a lágrimas, Michele Bolsonaro discursou em 2022, afirmando que a candidatura de seu marido seria um “projeto de libertação” e que Jair seria “um escolhido de Deus”.[8]
Por sua vez, a deputada Carla Zambelli publicou em suas redes uma imagem mostrando, de um lado, Jesus, Bolsonaro e a bandeira do Brasil e, do lado oposto, uma figura sugerindo um demônio junto do atual presidente Lula e as imagens da foice e do martelo, a representar o comunismo. Já a atriz Regina Duarte optou por publicar em seu perfil uma fotomontagem do ex-presidente de extrema direita de mãos dadas com Jesus.[9]
A retórica do ódio certamente já é parte integrante desses posicionamentos que visam demonizar grupos específicos, disseminar preconceitos e instigar divisões na sociedade. E os alvos são os mais diversos, mas podem alcançar minorias étnicas, grupos religiosos, LGBTQIAP+ e outros segmentos da população, podendo ter repercussões reais, contribuindo para a intolerância, a discriminação, chegando até mesmo à violência física.
Outro fato marcante é a defesa da figura do “líder ungido”, mesmo diante de comportamentos flagrantemente incompatíveis com a postura cristã. Ao que nos parece, a identificação de inimigos ou ameaças aos valores conservadores e à liberdade religiosa dos evangélicos gerou uma espécie de frenesi em que vale tudo contra a possível perseguição desses pilares, levando-os a adotar uma espécie de “moral seletiva”.
Mas mesmo para as posturas agressivas não faltam justificativas bíblicas no intuito de resguardar o escolhido, comparando-o ao intempestivo Apóstolo Pedro, por exemplo.
A linguagem apocalíptica e maniqueísta foi um recurso bastante empregado, destacando uma visão dramática e catastrófica do estado social. A frequente identificação de inimigos e ameaças à segurança, à ordem pública e moral, inculcava o senso de urgência e de mudança imediata através da adoção de uma abordagem rigorosa, autoritária e de cunho meritocrático a fim de salvaguardar a sociedade assolada pela corrupção e imoralidade. Há ainda um crescente movimento de absolutização do campo político no meio evangélico, também conhecido por idolatria, que evidencia uma forte tendência em atribuir importância suprema às questões políticas, passando-se a adotar uma visão simplista e dogmática do contexto social, e contribuindo para o fim do diálogo e para o reforço da intolerância.
A bibliolatria, ou, o engessamento hermenêutico característico do movimento fundamentalista, também traz para esse movimento um caráter de empobrecimento crítico, de interdito da consciência interpretativa, como diria Rubem Alves.[10]
Analogia histórica
Esse deslizamento encontra analogia em outros momentos da história mundial. Em 2017, ano em que se comemorava os 500 anos da Reforma Protestante, estive em uma mostra em Berlim, montada no Museu da Topografia do Terror, estabelecido no antigo quartel-general da Gestapo, cujo tema versava sobre “Lutero e o nazismo”. A exibição destacava basicamente como a politização do sagrado pode desbordar dos seus limites, dando origem ao fenômeno que aqui chamamos de sacralização da política.
O catálogo de exibição da exposição denominada “As palavras de Lutero estão por toda parte – Martinho Lutero na Alemanha Nazista” nos informa que mesmo durante a fase inicial do regime nazista já havia inúmeros escritos cristãos alemães declarando Lutero como o “maior alemão” e um “grande antissemita”, utilizando textos luteranos substancialmente editados para oferecer justificativa teológica para fins partidários. No 450º aniversário do reformador, em novembro de 1933, ano em que os nazistas tomaram o poder na Alemanha, foi comemorado por todo o Reich o “Dia Alemão de Lutero”. No mesmo ano, o governo nazista juntamente com o Vaticano produziu um documento (Reichskonkordat) para a conformação da Igreja protestante, cuja parte denominada Movimento de Fé Cristã Alemã cedeu à postulação, declarando o cristianismo e o nazismo como compatíveis, bem como incluiu o chamado “parágrafo ariano”, demitindo pastores e funcionários de igrejas, ao quais fossem descendentes de judeus. Já a oposição, formou a Liga de Emergência dos Pastores, resistência representada por Karl Barth e Dietrich Bonhoeffer para o qual as palavras de Lutero foram transformadas de verdade, em engano.
Não são poucos os exemplos de usurpação religiosa para fins políticos. Já em 1922 Adolf Hitler havia caracterizado Jesus Cristo como “nosso maior líder ariano” em um boletim do partido nazista. Mais tarde, em 1933, o teólogo Hans Preuss, em seu livro “Luther and Hitler” se posiciona: “mas Lutero e Hitler são um só, na medida em que são ambos líderes alemães que sabem que foram chamados para a salvação do seu povo.” O próprio Hitler, em apelo ao povo alemão em janeiro de 1933 discursou que “o governo nacional (…) tomará sob a sua firme proteção o cristianismo como base da moralidade, e a família como núcleo da nação e do Estado”. Não eram raros panfletos que traziam lado a lado a cruz de cristo e a suástica nazista, bem como reportagens sugerindo similaridade entre Lutero e Hitler.
Reflexão necessária: Um projeto de poder?
Entendemos que o fenômeno do qual tratamos aqui difere da faceta já conhecida da sacralização da política denominada teologia do domínio. Afinal, o ex-presidente de extrema direita não é um religioso disposto a impor sua cosmovisão religiosa no mundo. Ao contrário. É aquele tipo de político disposto a angariar votos da igreja, mas que nunca escondeu seu jeito agressivo, sua admiração pela ditadura nem sua fala desbocada e debochada. Mas porque então ganhou esse apoio irrestrito, quase idolátrico? Conforme recentemente exposto pelo Pr. Dr. Sérgio Dusilek, em 08 de dezembro de 2023 em palestra da 5ª semana dos Diretos Humanos em Maricá – RJ:
“Penso que não foi Bolsonaro quem mudou. Aliás, uma das poucas virtudes públicas do presidente derrotado em 2022, é não esconder o que é. Bolsonaro sempre foi isso que está aí; não enganou ninguém. Foi a Igreja que mudou, ou foi sendo alterada ao longo do tempo, distanciando-se do Evangelho e do ideal do Reino de Deus e se voltando para projetos de poder”.
Talvez seja esse o ponto de reflexão no qual devamos nos deter mais profundamente.
Conclusão: o que vem pela frente?
Diante de todo o quadro traçado, entendemos que, caso haja o avanço da extrema direita alavancado pelo fundamentalismo religioso no Brasil, é possível que tal discurso dê base à narrativa de desumanização do outro, não sendo possível prever as consequências em termos de violência.
Numa perspectiva mais otimista, pensamos que, além da regulamentação das redes sociais e a responsabilização das plataformas na prevenção da disseminação da desinformação, devem ser adotadas medidas promotoras do diálogo construtivo, e a educação sobre tolerância e a importância da convivência plural, de modo a incentivar abordagens equilibradas, inclusive dentro dos templos e garantir a liberdade de expressão para que seja preservada a integridade do processo democrático ao mesmo tempo em que se protege a sociedade contra abusos e manipulações.
Por fim deixo um relato de uma motociata realizada no Rio de Janeiro em maio de 2021, quando militantes inflamados, cercando o repórter Pedro Duran, da CNN, gritavam: “Lixo! Lixo! Lixo!” Quando uma única voz bradou inesperadamente um latente: “Lincha!” e rapidamente contagiou a multidão que, em cumplicidade, retraiu o semblante e adensou a violência sonora: “Lincha! Lincha! Lincha!”. Desacreditado, o repórter, a essa altura já encurralado pelos mais agressivos, olhou para trás e conseguiu seu resgate por uma viatura próxima. Como disse Castro Rocha (ROCHA, 2023)[11], “eis, em menos de minuto, uma síntese vertiginosa e brutal da extrema direita: do “lixo” ao “lincha” desenha-se a trajetória da retórica do ódio à violência física, do espírito de seita ao terrorismo doméstico.
Bibliografia
ALVES, Rubem. Religião e Repressão. São Paulo: Siano. 2020.
ROCHA, João Cezar de Castro, Bolsonarismo: da guerra cultural ao terrorismo doméstico: Retórica do ódio e dissonância cognitiva coletiva. Rio de Janeiro: Autêntica, 2023.
STIFTUNG TOPOGRAPHIE DES TERRORS, GEDENKSTÄTTE DEUTCHER WIDERSTAND, Catálogo da exposição “Uberall Luthers wrote: Martin Luther im Nationalsozialismus”, 2017.Berlim. Druckerei Kettler GmbH, Bönen/Westfalen.
Notas
[1] https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1994/6/12/brasil/28.html. Acesso em 12/12/2023.
[2] https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1994/6/12/brasil/27.html. Acesso em 12/12/2023.
[3] https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1994/6/12/brasil/32.html. Acesso em 12/12/2023.
[4] https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1994/6/12/brasil/31.html. Acesso em 12/12/2023.
[5] ROCHA, João Cezar de Castro, Bolsonarismo: da guerra cultural ao terrorismo doméstico: Retórica do ódio e dissonância cognitiva coletiva, 2023)
[6] Concordamos nesse ponto com acadêmico Prof. Paulo Nogueira, ao dissertar sobre Sacrifício, martírio e religião cristã em aula disponível pelo OLAH, grupo de estudo sobre o sacrifício disponível em https://www.youtube.com/watch?v=ASAnz21N-I0&t=27s Acesso em 27/11/2023.
[7] https://web.facebook.com/operacaobolsonaro/posts/352317001970075/ Acesso em 27/11/2023.
[8] https://www.poder360.com.br/brasil/michelle-fala-em-tom-religioso-bolsonaro-e-enviado-de-deus/ Acesso em 13/12/2023.
[9] https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2022/01/4975757-regina-duarte-garante-que-montagem-de-bolsonaro-com-ser-divino-e-verdadeira.html Acesso em 13/12/2023.
[10] ALVES, Rubem. Religião e Repressão, 2020.
[11] ROCHA, João Cezar de Castro: Bolsonarismo – Da guerra cultural ao terrorismo doméstico, 2023, pg.36
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