Sala Michael Oakeshott

Notas sobre “The Moral Life In The Writings Of Thomas Hobbes” (partes 1 e 2), de Michael Oakeshott

OAKESHOTT, Michael Joseph. The Moral Life In The Writings Of Thomas Hobbes (partes 1 e 2)
In: Rationalism in politics and other essays. New and Expanded Edition, Liberty Fund, Carmel, Indiana, United States, 1991.

Um dos mais extensos ensaios contidos na compilação Rationalism in Politics, de Michael Oakeshott, é “The Moral Life in the Writings of Thomas Hobbes”. Sua extensão faz com que uma leitura atenta e as discussões que se seguem demorem certo tempo. Portanto, o presente artigo cobrirá apenas as duas primeiras partes do ensaio, deixando as demais para temas de trabalhos subsequentes.

Esse é um ensaio de suma importância, pois é nítida a influência do pensamento de Hobbes ao longo da obra de Oakeshott. Entretanto nem sempre foi assim. Segundo Paul Franco (2004), Oakeshott se deteve pela primeira vez em Hobbes, de maneira aprofundada, em 1946, quando lhe pediram que editasse o Leviatã para a série Blackwell’s Political Texts. Mas Oakeshott não estava inclinado a aceitar a demanda, em um primeiro momento. Felizmente, todos os outros textos já haviam sido distribuídos. Surge então a “Introdução do Leviatã”, um dos mais celebrados ensaios de Oakeshott. É a partir desse momento que Hobbes passa a ter um lugar central no pensamento oakeshottiano, incluindo o ensaio lançado em 1960 “The Moral Life in the Writings of Thomas Hobbes”.

Oakeshott começa seus escritos não com o autor em questão, mas com uma discussão sobre a vida moral. Nas palavras de Oakeshott: “The moral life is a life inter homines” (OAKESHOTT, 1991, p. 295). Isso significa, em suma, que a conduta moral se dá entre os homens, e não em um indivíduo isolado. É no relacionamento com os outros que está nossa vida moral.

Ademais, a conduta moral requer liberdade de escolha. Ela surge sempre que alternativas para agir são possíveis. Em qualquer situação em que nos vemos diante de uma escolha, e que essa escolha afete outros, temos uma conduta moral. No entanto, tal escolha não é necessariamente consciente. A conduta moral pode ser um hábito, sobre o qual não refletimos. Oakeshott explica que mesmo o hábito é uma escolha, mas sua decisão ocorreu no passado. É uma escolha, portanto, feita há muito tempo e que se perdeu no hábito.

Se há uma escolha envolvida, consciente ou não, a conduta moral não é uma necessidade natural, da qual não podemos escapar. Há liberdade em qualquer ação moral. Por isso, Oakeshott trata a vida moral como sendo uma arte. Nas palavras do autor, arte é “o exercício de uma habilidade apreendida” (p. 296). Apreendemos a nossa conduta moral e não nascemos com ela. Como agir em determinada situação é algo que todo ser humano deve aprender.

Não obstante, o que nós devemos fazer, como nós devemos agir, tem a ver com o que acreditamos que somos por natureza. A vida moral é uma arte, mas depende de uma compreensão da natureza humana. Todo pensador que se debruça sobre a conduta moral, baseia sua teoria em uma antropologia filosófica, que é responder à pergunta: “o que somos nós?”

Oakeshott então vai identificar três idiomas da conduta moral, que diferem sobre a natureza do homem, ou seja, diferem sobre o que nós somos: “morality of communal ties”; “morality of individuality”; e “morality of the common good”. Ele deixa claro que existem outros idiomas, mas sustenta que esses três seriam os principais encontrados nos moralistas (pensadores que, ao longo da história, se debruçaram sobre a questão da vida moral)

A moralidade dos laços comunais [morality of communal ties] é a conduta moral na qual os indivíduos são membros de uma comunidade e, portanto, sua conduta é boa na medida em que é apropriada para a comunidade. O indivíduo apenas segue algo já estabelecido, é uma conduta moral que não varia. Essa invariabilidade e aparente falta de escolha individual parece ser algo natural, já que o que alguém deve fazer é o mesmo que se faz. No entanto, não é natureza, é arte, que remonta a uma escolha feita há algum tempo e já esquecida. O que ficou foi a conduta, resultado dessa escolha.

Na moralidade da individualidade [morality of individuality] cada indivíduo é visto como separado e busca seus próprios objetivos; não há um empreendimento comum ou algo apropriado para a comunidade como um todo. Nessa moralidade, há uma escolha individual na tomada de decisões, mas também há uma acomodação entre os indivíduos. “Morality is the art of mutual accommodation” (p. 297). Eles devem se acomodar uns aos outros, pois cada escolha individual afetará o próximo. Há um limite, portanto, na liberdade de escolha de todos os indivíduos.

Por fim, há a moralidade do bem comum [morality of the common good], segundo a qual o indivíduo é percebido como independente em sua conduta moral (ao contrário da moralidade dos laços comunais), mas essa individualidade é suprimida sempre que entra em conflito com interesses da sociedade. Ou seja, se encontra entre os dois idiomas anteriores. Ao contrário da moralidade da individualidade, não há uma acomodação entre indivíduos, os limites do indivíduo são os do bem comum, “o bem de todos”. Para deixar claro esse idioma, Oakeshott lança mão de um exemplo do mundo animal. Na moralidade do bem comum, o leão e o boi vivem sob a mesma lei, e, portanto, ambos devem comer palha. Não importa a necessidade de cada um, os dois animais em questão devem ser tratados exatamente da mesma forma, negligenciando suas diferenças.

Após essa explanação sobre a vida moral na parte 1, na parte 2, Oakeshott adentra o pensamento de Hobbes propriamente dito. Começa por afirmar que a moralidade nos escritos de Hobbes é do idioma da individualidade – e isto não é uma surpresa, já que a ideia de indivíduo estava emergente na Europa Ocidental. Tal característica Hobbes compartilha com demais filósofos de sua época. Sua especificidade é “a maneira precisa na qual ele interpreta esse sentimento corrente de individualidade [comum na época] e a doutrina de conduta moral associada” (p. 298). A atitude de Hobbes é precisamente a de um filósofo: “traduzir sentimentos correntes no idioma das ideias gerais e universalizar uma versão local do caráter humano, procurando uma base racional” (p. 298). No caso, a versão local do caráter humano é a moralidade da individualidade, e sua base racional é o que Hobbes argumenta sobre a natureza humana. Como dito acima, uma teoria da vida moral pressupõe uma antropologia filosófica. Vejamos como Hobbes responde à questão.

Thomas Hobbes divide o homem em duas partes: a paixão (“apetite natural”) e a “razão natural”. O homem, para ele, é uma “estrutura corporal caracterizada por movimentos internos” (p. 299). Tais movimentos, por sua vez, são de dois tipos: vitais, que são involuntários, como respiração e circulação sanguínea; e movimentos de apetites (apetite natural) ou aversões, ligados ao prazer e à dor que o ser humano sente do ambiente ao seu entorno e de sua relação com os movimentos vitais. Se ajudam, há prazer; se prejudicam, há dor. Se a dor prejudica movimentos vitais, significa que é danosa à vida. O homem prefere, portanto, a vida à morte. Hobbes conclui, a partir dessa primeira caracterização, que há uma aversão do ser humano à morte. Esse é um primeiro passo do que será sua teoria política.

Os apetites naturais, ou as paixões, seriam então reações no contato do ambiente com os movimentos vitais inconscientes. Mas o homem tem outros dotes (endowments) além desses movimentos vitais, como memória e imaginação. A memória faz com que nos lembremos das causas de dores e prazeres passados; e a imaginação nos permite vislumbrar um ambiente com experiências que não ocorreram e desejar o que ainda não existe. A imaginação e a memória também funcionam como um comando, ou controle, do ambiente ao redor. O dote da imaginação capacita o homem a desejar o que ainda não tem. Em outras palavras, podemos escolher nossos apetites.

A finalidade desses comandos é Felicidade (Felicity), que nada mais é do que um eterno sucesso. Contudo, o apetite de uma criatura imaginativa é insaciável, justamente por causa da nossa imaginação inesgotável. Sendo assim, não há satisfação final, o desejo cessa apenas na morte.

Além disso, para Hobbes, o homem é também um animal competitivo. “Felicity iscontinually to outgo the next before’.” (p. 301). Ele quer ser superior a todos, sabe disso em seu coração e deseja saber que outros saibam que ele é superior. Portanto, a principal paixão do homem é o Orgulho, identificado por Hobbes como esse desejo de ser superior e de que outros reconheçam sua superioridade.

O medo, por sua vez, é a paixão parceira do orgulho. No homem, medo é medo de não conseguir ser melhor do que outros, de ser, então, excluído da Felicidade. É um pavor de ser deixado para trás na corrida. Pavor este que é, em última instância, medo da morte. (sendo a morte vista aqui como insucesso na vida). O medo da morte vem especialmente de outros homens, e sobretudo há o medo da morte violenta. Isso porque a morte violenta é vergonhosa.

Aqui aparece então o grande pressuposto da filosofia política de Thomas Hobbes. É a partir da constatação do medo da morte violenta que os homens entrarão em um acordo que será o Leviatã. A resolução do estado de guerra de todos contra todos é criada a partir da razão, a outra das partes constituintes do ser humano, além dos apetites naturais, segundo Hobbes.

O homem tem dois dotes distintos dos animais, relacionados à sua razão. Em primeiro lugar, regular sua “linha de raciocínio” (“traynes [versão antiga da palavra ‘train’] of thought”), isto é, imaginar o que pode vir e o que alguém pode fazer em dada situação. O segundo dote elencado por Hobbes é o “poder da fala” (“traynes of thought” se tornam “trayne of words”). A fala serve à comunicação e possibilita comunicar seus desejos e vontades para uma possível ajuda de outro homem. A própria fala, para Hobbes, já é um acordo (agreement) entre homens, pois há uma mútua concordância sobre o significado das palavras.

É interessante notar que nesse ponto aparece uma característica “positiva” da natureza humana. Hobbes é notoriamente conhecido por dar conta de uma natureza humana violenta acima de tudo, mas o poder da fala possibilita uma cooperação entre indivíduos, ainda que a paixão que tenha acarretado todo esse processo seja o orgulho. E é a partir da constatação do poder de fala e de sua importância para firmar acordos que Oakeshott caminha para o que será a resolução hobbesiana da guerra de todos contra todos.

Livrar-se dos inimigos no estado de natureza, como por exemplo matá-los, é uma solução temporária, não permanente. Se um indivíduo assassinou um outro, nada garante que o primeiro também não será morto. Por isso a razão impele o homem a achar uma solução permanente para a morte, especialmente a desonrosa. O homem então busca a paz, e uma paz duradoura. Para isso, se submete a uma “autoridade soberana criada artificialmente” (pp. 306-307) que governa a todos. O acordo passa a ser duradouro e não mais incerto, como seria se dependesse da relação dos indivíduos entre si.

Constata-se, então, que a razão em Hobbes surge como um fruto da paixão e não como uma imposição sobre ela. Assim como em Hume, em Hobbes há uma precedência das paixões em relação à razão, no sentido de que as primeiras sejam mais fundamentais. O medo da morte violenta cria o desejo de um estado de paz. A paz é, portanto, uma consequência do medo. A fim de evitar a guerra de todos contra todos, é feito um acordo que busca modificar a tendência natural de hostilidade entre os humanos.

Esse acordo não pode, no entanto, ser um acordo qualquer. Oakeshott identifica alguns tipos possíveis de acordo que, em sua maioria, fazem os homens dependerem uns dos outros. Para evitar que um indivíduo não cumpra sua parte do compromisso com os demais, a autoridade do acordo deve ser colocada em um terceiro, no caso o soberano. Com isso, finalmente chegamos na parte mais famosa da filosofia política de Hobbes e, como há de se notar, o Leviatã é uma conclusão obtida a partir de um desenvolvimento lógico. Está exemplificado, então, o que Oakeshott afirmou no início de seu ensaio, no sentido de que as teorias de moralistas se baseiam em uma doutrina sobre a natureza humana.

Oakeshott termina a segunda parte desse longo ensaio apontando algumas aparentes contradições em Hobbes. A que mais chama atenção é a de que, no final, o estar vivo supera o orgulho de ser superior a outros homens. Isso significa que o medo é aplacado, mas o homem nunca conseguirá a Felicidade. Oakeshott argumenta que o homem orgulhoso descrito por Hobbes nunca aceitaria ser domado. Se o homem é por natureza orgulhoso e desejo precedência sobre outros homens, como ele aceitaria estar em pé de igualdade com os demais?

Bibliografia

FRANCO, Paul. Michael Oakeshott: An Introduction. New Haven: Yale University Press, 2004.

OAKESHOTT, Michael. Rationalism in Politics and other essays. Indiana: Liberty Fund, 1991.

Imagem: Michael Oakeshott (autor não identificado)

Sobre o autor

Theo Villaça

Mestre em Filosofia Política pela PUC-Rio, com pesquisa em Hannah Arendt e Eric Voegelin e pesquisador do Núcleo de Filosofia Política do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.