Entrevistas com líderes religiosos: morte, luto e pós-morte
Quando criamos o grupo de pesquisa MORTE E PÓS-MORTE, no início de 2020, reunimos pesquisadores diversos: advogados, jornalistas, psicólogos e tantos outros. Percebemos ao longo deste processo que todos têm seus talentos e inclinações distintas: uns para comunicações orais, outros para escrita, e todos, sem exceção, com interesse profundo na nossa temática. Muitos projetos estão sendo encaminhados e vários deles fruto de um interesse pessoal, íntimo e que fazemos questão de acompanhar e estimular. O projeto da pesquisadora Maria Cristina Baptista Navarra é um deles. A pesquisadora entrevista líderes religiosos com muita profundidade e sensibilidade, trazendo reflexões essenciais para o nosso mundo contemporâneo. Aproveite a leitura!
Andréa Kogan e Cris Guarnieri
Irmã Virgínia Aparecida dos Santos
LEIGOS CONSAGRADOS e NOVAS COMUNIDADES
Modos plurais de ser Católico mediante o resgate da consagração tradicional atualizada na contemporaneidade
Muito se fala sobre o fenômeno da secularização, da racionalização, do desencanto, da supressão da magia na vida e, consequentemente, do afastamento do mistério da religião. No entanto, na mesma medida, deve ser observada a “volta da religião” ou a “dessecularização”, o que implica o deslocamento e transformação dessa religião mediante uma nova composição de energias sociais, de “formas contemporâneas do fenômeno religioso, apontando para um possível processo de ‘reencantamento’”. (SANCHIS, 2018).
Nesse processo de transformação, especificamente em relação à Igreja Católica Apostólica Romana, nos deparamos com diferentes modos de ser católico pelo resgate da consagração tradicional atualizada na contemporaneidade – dentre os quais os Leigos Consagrados e as Novas Comunidades –, demonstrando compreensão das formas de se viver o catolicismo aliado ao desejo de diálogo com as culturas e realidades com as quais os fiéis se deparam cotidianamente.
A palavra Leigo significa desconhecedor, inexperiente, que não possui familiaridade com determinado assunto e, no âmbito religioso, não clerical, mundano ou secular. Ocorre que, na busca de formas contemporâneas da religiosidade, a partir do Concílio Vaticano II (1962/1965) e, posteriormente, pelo próprio Direito Canônico (Cân. 207, §§ 1º e 2º), os Cristãos Leigos passaram a ser reconhecidos pela Igreja Católica como seus membros legítimos, embora com funções distintas de Bispos e Padres que exercem um “ministério ordenado” e são representantes oficiais da Igreja, conforme explica o Teólogo Professor Marco Antonio G. Bonelli:
(…) os leigos, embora com função distinta, são também membros legítimos da mesma comunidade cristã. Eles também exercem uma importante atividade eclesial, na qual vivenciam a própria fé e animam a fé da comunidade. Organizam atividades, como também diversos serviços e grupos pastorais dentro da Igreja, dedicando-se também a variados trabalhos de evangelização fora dela. São portadores de uma vocação e de um “ministério” próprios, aos quais são consagrados, não pelo sacramento da ordem como o Clero, mas por outro sacramento igualmente importante que é o batismo.
(…) Cada um, com sua vocação e seu carisma próprio, consagra a própria vida a Deus, exerce um serviço pelo bem da comunidade e busca, a seu modo, contribuir para propagar no mundo a salvação oferecida e realizada por Jesus. (BONELLI, 2018)
As Novas Comunidades, por sua vez, traduzem a valorização da vida em comunhão fraterna, baseada na tradição monástica mais antiga, buscando constantemente a Deus na oração. Essas comunidades são formadas por sacerdotes, religiosos e leigos consagrados, homens e mulheres, celibatários ou casados, servindo aqueles que querem conhecer e amar a Deus em suas vidas, compartilhando uma mesma estrutura organizacional e uma mesma espiritualidade, segundo um Estatuto próprio, elaborado de acordo com o carisma e forma de atuação evangelizadora que cada um escolheu seguir.
Para uma melhor apreensão dessa forma de ser católico na contemporaneidade, baseada na vida comunitária e na espiritualidade mediante a consagração de sua vida a Deus, a Irmã Virgínia Aparecida dos Santos, monja que optou por percorrer o seu caminho como LEIGA CONSAGRADA – o que não a fez perder seus votos, os quais não se perdem –, relata sua experiência pessoal na Comunidade da Santíssima Trindade de Monte Sião, MG, onde exerce o Apostolado da escuta.
Irmã Virgínia nasceu em uma família católica e, assim, sua formação foi dentro dos preceitos do catolicismo. Entre 15 e 16 anos – “fase em que se tem muita energia, não conhece nada da vida, mas jura que vai dar conta de tudo” –, por não estar feliz com o que tinha e em razão do imenso vazio que sentia em sua alma, decidiu buscar “algo mais”, mesmo sem conseguir ainda definir exatamente o que seria, algo que só foi revelado ao perceber Deus despertando dentro de si, de forma lenta e gradual, atraindo-a para um amor maior, como ensina o Papa Emérito Bento XVI:
Não há outra possibilidade de adquirir certza sobre a própria vida, senão abandonar-se progressivamente nas mãos de um amor que se experimenta cada vez maior porque tem a sua orgiem em Deus (Bento XVI, Porta Fidei, n. 7 in MENDONÇA, 2018)
Embora existam vários caminhos para o despertar da vocação, “porque Deus encontra caminhos diversos para alcançar a cada um de nós”, a maioria das pessoas O encontram na dor. Irmã Virgínia, no entanto, encontrou Deus no vazio, ao identificar em si uma sede de realização que não encontraria em um homem comum, em um casamento ou na maternidade. Um sentimento que era o despertar da sua vocação, sabedora de que estava no lugar certo, o que não afastaria as lutas e dificuldades inerentes a qualquer caminho.
Ao iniciar a busca para viver a sua vocação, já com plena convicção de que não poderia corresponder à vida contemplativa, de silêncios e orações, em razão de seu temperamento agitado, manteve contato com várias congregações, do Brasil e do exterior, já solidificadas e estruturadas, em especial com a comunidade denominada “Mensageiras do Amor Divino”, situada na cidade de Aparecida, composta por freiras missionárias e ligada aos redentoristas que cuidam do Santuário de Nossa Senhora Aparecida. Com aquela congregação, Irmã Virgínia trocou correspondência por um ano, chegando a pensar que estaria pronta para assumir esse novo caminho, o que não ocorreu.
Alguns meses após essa procura profunda, Irmã Virgínia conhece, em Passos-MG, na própria cidade em que vivia, uma comunidade muito simples, fundada por alguns jovens, homens e mulheres, há apenas cinco anos, que, em um imóvel alugado, um barracão onde trabalhavam, pintavam imagens, mantinham uma loja de artigos religiosos e, em um cantinho, havia apenas uma imagem da Santíssima Trindade e algumas cadeiras. Nesse local, se reuniam para rezar e sonhar em viverem juntos partilhando uma vida para Deus. Naquele exato momento, Irmã Virgínia entendeu que a sua busca havia terminado:
Na hora que eu entrei naquele lugar, me veio um sentimento extremamente forte. Eu cheguei em casa e esse sentimento nunca saiu de dentro de mim. Não foi nada externo que me atraiu, foi uma melhoria, uma certeza de ter encontrado o meu lugar. E está aí o que mais me manteve na comunidade, justamente essa alegria de perceber que essas pessoas buscavam o mesmo que eu queria. A gente não tinha nada ainda externo, não usávamos hábito, não tínhamos ainda nada estruturado. Estava tudo muito no começo. E aí comecei a frequentar (e lá está) já há 23 anos.
No curso desses 23 anos, Irmã Virgínia confirmou sua opção em seguir uma vida consagrada a Deus, assumindo os compromissos da castidade, da obediência e da pobreza por meio de votos, integrando essa comunidade que, em 2006, se transferiu para Monte Sião, onde permanece desde então, sob o nome de Comunidade Santíssima Trindade.
O apostolado praticado por seus integrantes é o da Comunhão com Deus e a Comunhão fraterna. É uma comunidade mista de homens e mulheres consagrados a Deus, para os quais o texto dos Atos dos Apóstolos é muito forte: “onde eles viviam uma vida em comum, buscando partilhar a vida num clima de unidade, de entrega um ao outro e, também, de conduzir, atrair outras pessoas a viverem dessa forma”.
Irmã Virgínia explica que, atualmente, a Comunidade da Santíssima Trindade está em processo de reestruturação de seus Estatutos e, visando um recomeço, uma verdadeira transformação da comunidade, seus monges e monjas passaram a ser considerados, canonicamente, LEIGOS CONSAGRADOS.
Essa opção não implica a perda de seus votos ou de sua consagração a Deus (os votos não se perdem). Continuam observando e seguindo todos os sacramentos da Igreja Católica e os votos de Pobreza, Obediência e Castidade, voltados para uma vida de oração pessoal, de autoconhecimento, de “viver na verdade”, mas não podem celebrar missas ou ministrar Sacramentos, funções privativas de Bispos e Padres.
Esclarece, ainda, que existem comunidades formadas por Leigos que possuem família, são casados, têm filhos, pessoas que vivem para o louvor e o trabalho de Deus, chamados de oblatos, mas que não vivem o celibato e nem certas exigências de doação total.
Já na Comunidade da Santíssima Trindade de Monte Sião, a consagração é total. Seus integrantes moram na sede da comunidade, para vivência de seu carisma, que é a busca da comunhão fraterna, da comunhão com Deus, da iniciação de uma vida de oração, orientando as pessoas que desejam vivenciar essa experiência, independentemente de serem religiosas. Essa vivência exige dedicação integral e inviabiliza o exercício de uma profissão, cuidados com filhos ou qualquer outra atividade que obrigaria a divisão da atenção ou tempo de seus integrantes.
Ao ser indagada sobre a forma como é realizada a orientação das pessoas na busca da espiritualidade, aprofundamento de seu conhecimento e intimidade com Deus através da oração pessoal e na vivência da vida fraterna, Irmã Virgínia explica que existem duas vias.
A primeira via é o Apostolado da Escuta, realizado através do acolhimento de pessoas que vêm para conversar, presencial ou virtualmente, por estarem enfrentando algum problema, algum sofrimento ou mesmo a falta de sentido interior, e movidas pelo desejo de encontrar ou aprofundar sua intimidade com Deus. Cada uma dessas pessoas é ouvida e ajudada a discernir o próprio caminho, encontrar um sentido para o que está vivendo, a se redirecionar nos pontos em que está fragilizada.
O Segundo caminho é o Apostolado da Oração denominado “Arca da Esperança”, que é um roteiro para a oração baseado em textos da Bíblia. A cada semana é escolhido um tema e, a cada dia, é apresentada uma passagem bíblica relacionada a esse tema, de forma a orientar a pessoa a aprender a rezar como fonte da vida cristã, conhecer a si mesma e mais a Deus, acabando por entender a própria vida, como conta Irmã Virgínia:
A vida de oração é um penetrar na profundidade das coisas, porque, quando a gente lida com Deus, a gente lida com o mistério, com o que existe por trás de tudo, com a vida espiritual e não simplesmente a vida material, que muitas vezes chega a nós sem sentido algum.
(…) É um diálogo com Deus, porque o centro é crescer no amor e trazer a experiência do amor Dele.
A busca da espiritualidade afasta a correria contra o tempo, o excesso de barulho externo e, principalmente, o interno, porque a cabeça está borbulhando com cobranças; a carreira, o sucesso, a “performance”, medo, ansiedade e insegurança. A vida de oração ensina a silenciar, a sair desse redemoinho e ficar inteiro no que se está vivendo, posto que o silêncio é um grande mestre e quando a alma “faz barulho” é porque está em transformação. É o que explica a psicóloga Maria Cristina Mariante Guarnieri, com base em sua própria experiência vivida em um Mosteiro Trapista, em entrevista ao podcast “Irmã Morte: Histórias de um Capelão Hospitalar” (2021):
Quando estamos encarcerados em ideias que nos aprisionam em nossa expressão, o silêncio é mestre e de alguma forma faz você deixar que as imagens curativas do inconsciente possam te dirigir de uma nova forma. O encarceramento vem da experiência com contos de fadas (onde) não se usa muito esse termo, usa feitiço. Em geral, todo conto de fadas começa com uma história de feitiço que encarcera o sujeito em alguma coisa. E todo o processo do conto nos ensina como quebrar esse feitiço.
(…) Então, o conto de fadas é um bom símbolo, é uma boa imagem natural do inconsciente, que mostra que há um trabalho enorme a ser feito enquanto estamos enfeitiçados por um aspecto só da nossa personalidade, geralmente, o pior, aquele que, de certa forma, fecha a gente num único aspecto nosso. E viver a vida a partir de um único aspecto não é uma vida digna de ser vivida. Então, deixe que o espírito sopre, que os ventos tragam os outros aspectos de nós mesmos.
Nesse processo de oração, em conjunto com a espiritualidade, também são trabalhados pontos de formação humana, para que a pessoa consiga entender a si mesma, se conhecer melhor sem formalidades, permitindo o despertar do ser humano verdadeiro e o crescimento na autenticidade da experiência do amor. A finalidade é “crescer na comunhão com Deus para que eu cresça na comunhão comigo e, assim, estar inteiro e em Deus em tudo o que fizer”.
Ao ser indagada se a vida de oração poderia ser classificada como uma busca do autoconhecimento – o que exigiria uma coragem muito grande nesse olhar – e de Deus, Irmã Virgínia afirma:
as duas coisas andam juntas, eu me conheço e vou para Deus. Eu conheço Deus e me vejo, porque é um conhecimento por comparação. Ele é o absoluto, eu sou limitada. Então, quanto mais eu perceba o meu limite, mais eu reconheço o quanto Ele é grande. E, pelo contrário, quanto mais eu olho para Ele, percebo a imensidão de seu amor por mim, mais eu olho para mim e percebo o quanto eu preciso desse amor.
E esse conhecimento se reflete no outro pilar da Comunidade da Santíssima Trindade, a comunhão fraterna. No percurso do apostolado da oração, uma vez por semana, todos se reunem para partilhar o que rezaram, uma vez que a oração envolve a vida e as respostas encontradas nessa conversa com Deus.
No momento da partilha dessas experiências, o que será dividido é a vida de cada um, as lutas, as vitórias, as descobertas da própria intimidade com Deus, que, por sua vez, geram aprendizado com o outro, respostas ou novos questionamentos e, como Irmã Virgínia esclarece, “Santa Tereza, que na Igreja é mestre, doutora da vida de oração, disse que a oração é para os corajosos, porque é necessário ter coragem. Coragem para enfrentar a Verdade é o preço que se paga para ser feliz, para ser responsável, inclusive na vida espiritual. É viver na maturidade, na coragem de olhar aquilo que precisa ser mudado, de reconhecer que o errado sou eu e não o outro”.
Diante dessa entrega à espiritualidade por meio da oração, que exige profunda concentração no encontro de sentimentos ocultos e de difícil enfrentamento, a questão da experiência mística é inevitável, e Irmã Virgínia afirma, com plena convicção, tratar-se realmente de uma experiência mística buscada na sua vida de oração, mas que não se confunde com o “sobrenatural”, como é normalmente tratada.
Explica que o pensar em experiência mística sempre remete ao êxtase de Santa Teresa, à levitação do Padre Pio, a uma bilocação, uma chaga que se manifesta ou, ainda, a ouvir a voz de Jesus ou até mesmo a ter uma visão de Deus. Tudo isso é experiência mística.
Mas a vida de oração, a vida religiosa e de consagrados é uma busca mística que Irmã Virgínia traduz na vida oculta de Cristo enquanto homem, que em toda a sua grandiosidade se deixou conter em um corpo humano no cotidiano, santificando a nossa vida. Assim, tudo se torna manifestação do mistério de Deus, mas estão conscientes da delicadeza e dificuldade de discernimento que envolve a questão da experiência mística, em razão da tênue linha que a separa da imaginação, da carência, da vontade do ser humano de se valorizar perante os outros, como São João da Cruz, um grande místico, já alertava.
Relata, ainda, que ela própria e várias pessoas que acompanha já viveram experiências mais intensas emocionalmente, onde a presença de Deus foi sentida. Sendo que a experiência mística mais profunda que teve foi a do Perdão, cujo resultado, o mistério ao qual Deus permitiu penetrar, foi muito maior porque “perdoar é deixar Deus ser em mim, porque humanamente eu não tenho capacidade para perdoar ninguém”.
A vida de oração é compromisso, fidelidade, aceitação da oscilação inerente ao sentimento humano. Não tem nada de fácil e Irmã Virgínia conta que foram dez anos rezando, porque o perdão não veio repentinamente, do nada, mas foi sendo construído internamente, estando ciente da necessidade de fazer as pazes com a sua história, de curar as mágoas que tinha do seu pai, uma pessoa de temperamento difícil, forte e irascível, que causou muito sofrimento e deixou marcas profundas. Desde o seu ingresso na Comunidade, aos 18 anos, rezou a respeito dessa questão, dessa mágoa que chegava a ser ódio no sentido de amargura, de ressentimento pelo que havia suportado –um processo extremamente árduo porque, humanamente, não queria perdoar. A oração era apenas recitada, porque a vontade inexistia e as lembranças voltavam.
Como o processo da oração não é fuga, não é esquecimento, mas sim consciência de si, uma vez que o perdão só acontece nesse momento, toda a raiva finalmente brota após dez anos de oração e, com ela, o perdão verdadeiro, que é uma súplica. É esse momento que Irmã Virgínia considera como sua experiência mística, quando recebeu de Deus a graça que, humanamente, não seria capaz de alcançar e, dessa forma, acolheu, ressignificou e encontrou um sentido para a sua história, ficando em paz e completamente livre para amar.
Prosseguindo na questão da mística, e diante da própria denominação da Comunidade em que vive, ao ser indagada sobre o entendimento do Espírito Santo como a Terceira pessoa da Santíssima Trindade que existe dentro de cada ser humano, a concessão de dons e sua aceitação, Irmã Virgínia afirma que, justamente por aceitar esses dons, a Igreja Católica consegue acolher cada pessoa na sua diversidade, de uma forma simples, sob o entendimento de que cada um possui sua natureza, temperamento e jeito de ser.
Na Comunidade da Santíssima Trindade não é diferente, mesmo porque a instituição passou por três momentos importantes: o primeiro foi a sua criação por um grupo de jovens que vinha do Movimento da Renovação Carismática, onde haviam feito a experiência com Deus; o segundo foi passando pela experiência da vida de oração pessoal com Santa Teresa; e o terceiro foi o contato com a vida monástica, solidificando sua história, influenciada por cada uma dessas fases e seus elementos até tomar forma própria.
Nas celebrações eucarísticas da Comunidade, nas missas, o Padre faz a homilia sempre acompanhada de uma oração, de uma canção entoada pelos presentes conduzidos pelo Sacerdote que, em alguns momentos, pede para que as mãos sejam colocadas na cabeça da pessoa ao lado, momento em que cada um reza pelo outro, uma dinâmica fora da oração, mas fruto das influências sofridas na sua formação. E as manifestações do Espírito Santo são vividas na prática, no cotidiano, através do dom que cada um possui traduzido em determinada habilidade, visando o bem da Comunidade e de seus integrantes.
No percurso da busca da espiritualidade e vida de oração pessoal, a morte e o luto são temas inerentes e inevitáveis, uma vez que, se não olhamos o fim, não fazemos o trajeto, mas o movimento do homem contemporâneo é sempre querer silenciar a morte:
É pela evidência de nossa corruptibilidade que talvez possamos retomar um diálogo entre nós mesmos e com nossa tradição filosófico-religiosa, no qual o narcisismo antropológico que se revelou como a degeneração necessária do projeto humanista ocidental seja ultrapassado por um pensamento da existência que descubra na consciência da finitude um degrau que nos leve ao nosso verdadeiro fundamento ontológico: a condição insuficiente do homem. Conceito ambíguo, pois ao mesmo tempo que nos revela a finitude – e seus inúmeros desdobramentos – como miséria do ser do homem, ilumina nossa condição de seres abertos ao Transcendente.
(…) Trata-se na realidade da necessidade de perceber que somente a partir da consciência do ‘naufrágio da existência’ é que se embarca na verdadeira aventura espiritual do homem contemporâneo; sua experiência do sagrado se revela, antes de tudo, como uma mística da agonia.” (PONDÉ, 2000)
Irmã Virgínia explica que a Comunidade é inspirada e influenciada pela vida monástica, possuindo muita importância os primeiros monges, os Padres do Deserto, cujas histórias são ensinamentos e orientação de natureza moral. Entre tais ensinamentos, cita que a morte é uma verdade da qual ninguém escapa e que a consciência da morte nos faz viver bem, porque a noção da finitude, que aquele momento pode ser a última oportunidade de conviver com um ente querido, nos obriga a rever posturas diante da vida, atribuindo a importância devida às questões que são maximizadas no calor da discussão, da discórdia.
Essa postura reflete maturidade, acolhimento de todas as consequências de seus atos e capacidade de viver cada instante como se fosse o último, porque, realmente, a morte pode retirar essa chance a qualquer momento.
O que fundamenta o conviver bem com essa ideia é a experiência do amor de Deus, porque a morte amedronta quando se torna algo que não se conhece, algo estranho a si, completamente novo. Mas à medida que se vai conhecendo a Deus, tendo a experiência de Seu amor, vivendo uma experiência mística no sentido mais profundo da palavra, que é penetrar no mistério de Deus, se toca o sobrenatural e, dessa forma, é possível familiarizar-se com a morte.
E cita o Papa Emérito Bento XVI, que, ao falar sobre a morte, afirmou que finalmente irá se encontrar com o seu grande amigo, que é Jesus, ao qual ele buscou a vida inteira, um amigo que já conhece, mas cuja face finalmente verá. E nesse momento, a morte deixa de ser algo assombroso, ameaçador, e passa a ser a porta que abrirá a passagem para o que foi buscado a vida inteira, não havendo lugar para o medo.
Irmã Virgínia conclui que é humano e natural sentir um “friozinho na barriga” ao se pensar na morte, mas que nessa hora a fé é muito concreta em sua vida, pela própria história de perseverança com Deus, que tantas vezes provou estar ali. Por que então Ele não estaria na hora da sua morte? Por isso é preciso estar ciente de que a vida passa, que a morte chega e a pergunta essencial persiste: como estou vivendo a minha vida?
Não se trata de um processo simples, pois existem pessoas com muita dificuldade em lidar com a morte ou enfrentar algum luto. Daí ser um assunto que se trabalha com recorrência, porque faz parte da vida. E a Igreja Católica possui o sacramento denominado “Unção aos Enfermos”, destinado àqueles que se encontram muito doentes ou que estão prestes a morrer. É uma graça muito grande, porque essa é a Unção do Espírito Santo, que conforta, fortalece, abençoa a pessoa que está em uma dessas situações.
Os Sacramentos nos fortalecem em todas as etapas da vida. Pela via do Sacramento do Batismo adentramos na vida cristã ainda crianças e recebemos a graça de viver na Igreja Católica segundo os princípios, valores e ensinamentos de Cristo. Posteriormente, vem o Sacramento da Crisma, que é a confirmação do Batismo. Por fim, o Sacramento da Unção dos Enfermos completa nossa conformação com a morte e ressurreição de Cristo.
Só os Sacerdotes podem ministrar os Sacramentos e, na Comunidade, sediada em um sítio fora do centro urbano, existem dois padres que assessoram o padre da cidade de Monte Sião quando necessário.
Em conclusão, Irmã Virgínia acredita que, nessa experiência de anos buscando a Deus, foi saindo da paixão e cada vez mais se adentrando no amor por Ele, como um relacionamento. “É uma identificação de um com o outro, é um querer ser parecido com o outro e não se prendendo tanto aos sentimentos, às vontades, mas muito mais ao compromisso”. Por essa razão, acredita que, sim, a sua vocação é um dom divino que aguardava ser despertado e, assim como vai percebendo a reação de Deus na vida de outras pessoas, a experiência do mistério, a experiência do amor, da maravilha que é saborear essa intimidade com Deus, também é uma experiência mística sua, conquistada com fé e perseverança.
Referências
(1) SACHIS, Pierre, na obra Religião, cultura e identidades: Matrizes e matizes, Ed. Vozes, Petrópolis, RJ, 2018.
(2) BONELLI, Marco Antonio Gusmão, Artigo “O Papa Francisco e os leigos” In: CREatividade Revista Cultura Religiosa – PUC RIO, 18/04/2018, https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/33650/33650.PDF
(3) MENDONÇA, Fabiano, na obra O Leigo e sua Missão na Igreja: roteiro de formação no ano do laicato,Natal, 2018.
(4) Podcast “Irmã Morte: Histórias de um Capelão Hospitalar”, por Roberto Miguel, episódio “A Negação da Morte” – entrevista com Maria Cristina Mariante Guarnieri, junho de 2021.
(5) PONDÉ, Luiz Felipe, “Finitude como experiência humana e como experiência contemporânea do sagrado: um esboço da mística da agonia” In: O finito e o infinito na experiência humana contemporânea de José Rogério Lopes (org.). Unitau, 2000.
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