Nelson Rodrigues é um escritor polivalente, iniciou na escrita como um repórter policial, escreveu crônicas sobre o cotidiano e futebol, contos, romances, folhetim e teatro.
Seu teatro o consagrou como um dos maiores dramaturgos do país. Foram inúmeras as adaptações de sua obra para cinema e televisão, mas foi nas crônicas de futebol que Nelson conseguiu traduzir o espírito do brasileiro, a consciência das massas.
Enquanto o Nelson do teatro e de A Vida Como Ela É desnudava a alma do seu público, trazendo para o palco tudo aquilo que a psique humana tenta recalcar, suas crônicas esportivas não se preocupavam em apenas informar os leitores sobre o fato esportivo em si. Para além disso, Nelson retratava os fatos que permeiam o escrete, como o comportamento das torcidas, os personagens da semana, o fator psicológico que acometia os craques e torcedores e os bastidores das arquibancadas e camarotes (que iam dos grandes eventos no Estádio Jornalista Mario Filho, o Maracanã, aos pequenos eventos esportivos nos campos do subúrbio carioca). Essa era a sua forma de escrever sobre esportes, sobretudo o futebol, essa paixão nacional.
Segundo Fiorin (2009, p. 120), na primeira metade do século XX, um movimento de construção de uma identidade brasileira se assenta sobre a mistura, pois considera a mestiçagem como o jeito de ser brasileiro.
A ideia da mestiçagem como construção da identidade nacional era defendida por Gilberto Freyre (1954) em Casa-Grande & Senzala. Para Freyre, nosso povo era uma mistura de brancos, pretos e índios, uma mistura que nos tornava completos, pois o puro era incompleto. No prefácio escrito por Freyre, em 1947, para o livro O Negro no Futebol Brasileiro, de Mário Filho, ele destaca:
Aqui está um capítulo da história do futebol no Brasil que é também uma contribuição valiosa para a história da sociedade e cultura brasileira (…), as páginas mais sugestivas de Mario Filho nos põem diante do conflito entre estas duas forças imensas – a racionalidade e a irracionalidade – no comportamento ou na vida dos homens. No caso, homens do Brasil. Homens de uma sociedade híbrida, mestiça, cheia de raízes ameríndias e africanas e não apenas europeias. (FILHO, 2004, p. 24)
Nelson, parte dessa ideia para dizer que é a nossa mestiçagem que dá a genialidade do futebol brasileiro. Sendo esse esporte o reflexo do jeito de ser brasileiro, que une eficiência e malandragem, objetividade e transgressão, santos e canalhas.
Os anos de observação das várias arquibancadas que frequentou o fizeram cunhar máximas como: “o brasileiro era um narciso às avessas”, e, após a derrota na copa de 50 (no fatídico episódio do maracanaço), que passamos a sofrer do “complexo de vira-latas”.
As duas máximas eram recorrentes nas suas crônicas esportivas. Frases que podem ser analisadas de forma individual, e terão seus respectivos valores interpretativos, porém, se analisadas juntas, notaremos que são complementares.
Literalmente, o “narciso às avessas” refere-se ao belo que se acha feio, que desvaloriza a própria imagem e se diminui diante do seu potencial. No futebol, seria o craque de final da Copa do Mundo que, diante do adversário inferior, se põe como um jogador amador de pelada de campo de terra batida.
Em uma de suas crônicas, Nelson (1993, pp 35-36) crava que o brasileiro gosta muito de ignorar as próprias virtudes e exaltar as próprias deficiências, numa inversão do chamado ufanismo. Sim, amigos: somos uns Narcisos às avessas, que cospem na própria imagem.
O brasileiro coloca-se num lugar de desvalorização, que não lhe pertence, tem verdadeira adoração pelo importado e despreza as suas próprias virtudes. O que nos leva à análise da outra máxima de Nelson.
O “complexo de vira-latas” é explicado pelo autor em uma crônica de mesmo nome publicada em 1958, na Manchete Esportiva:
Por “complexo de vira-latas” entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. Isto em todos os setores e, sobretudo, no futebol. Dizer que nós nos julgamos “os maiores” é uma cínica inverdade. (…) Na já citada vergonha de 50, éramos superiores aos adversários. (…) Pois bem: — e perdemos da maneira mais abjeta. Por um motivo muito simples: — porque Obdulio nos tratou a pontapés, como se vira-latas fôssemos.
Eu vos digo: — o problema do escrete não é mais de futebol, nem de técnica, nem de tática. Absolutamente. É um problema de fé em si mesmo. O brasileiro precisa se convencer de que não é um vira-latas e que tem futebol para dar e vender, lá na Suécia. (…) Insisto: — para o escrete, ser ou não ser vira-latas, eis a questão. (RODRIGUES, 1993, pp. 62-63)
Essa foi a última crônica escrita por Nelson antes da estreia do Brasil na Copa do Mundo de 1958 – sairíamos da Suécia campeões do mundo. O brasileiro finalmente espantava o fantasma de 1950 e revigorava sua fé na seleção nacional, feito que se repetiria em 1962 e 1970 e que Rodrigues pôde presenciar. Ainda levaríamos o caneco em 1994 e 2002, sagrando-nos a primeira seleção tri, tetra e pentacampeã.
Após a consagração em 1958, o brasileiro encheu-se de autoestima e não se via mais como um vira-latas. Para Nelson, o futebol tinha esse poder de mudar a convicção dos brasileiros, de fazê-los renunciar a tal complexo e se sentirem reis do mundo, portando-se como tal.
Infelizmente, em 2014, um revés de 7 a 1 contra os Alemães nas semifinais fez o complexo de vira-latas ressurgir. Novamente, vimos abalada nossa fé na única pentacampeã do mundo, e em todos os jogos seguintes passamos a entrar em campo derrotados, de cabeça baixa, de rabo entre as pernas. Se ganhamos, é porque o adversário era ruim, se perdemos, é porque somos o país do 7 a 1. Nelson (1993, p. 59) diria que, por uma prodigiosa inversão de valores, sofremos com a vitória e nos exaltamos com a derrota. Devemos buscar a saída apontada por Nelson, de que o brasileiro precisa se convencer de que não é um vira-latas (SEFFRIN, 2020, p. 82).
Devido a essas mudanças no comportamento do brasileiro, para o bem e para o mal, nosso autor acreditava que a seleção nacional não era somente 11 atletas correndo atrás da bola a disputar uma partida de futebol, ela era uma representação da personalidade do seu povo ali em campo.
E essa análise de personalidade valia para todas as seleções. Para Nelson, os ingleses eram os disciplinados, os norte-americanos os modernos e realizadores do progresso, os franceses civilizados e os brasileiros eram o narciso às avessas, povo com baixa autoestima que negaria a si próprio. (FACINA, 2004, p. 295).
Uma seleção que entra em campo sob a flâmula nacional e tendo por trilha sonora o Hino Nacional não pode ser apenas um time a disputar uma peleja, ali está a pátria de chuteiras.
Nessa perspectiva, o nosso complexo de vira-latas é novamente confrontado sempre que o Hino Nacional toca ao início das partidas. Somos elevados pela grandeza da letra do canto nacional. Mesmo vendo pela televisão, o torcedor se coloca em posição de respeito, com a mão no peito, e entoa o hino como um soldado indo para a linha de frente da batalha.
Essa relação do brasileiro com o hino se potencializou ainda mais em tempos recentes, com a realização da Copa das Confederações de 2013, a Copa do Mundo de 2014 e a Copa América de 2017 em território nacional. Com a seleção jogando em casa, a torcida entoava o hino à capela até o final, num espetáculo que já valia o jogo.
Nelson tem razão ao definir o futebol como uma paixão nacional e a seleção como nossa pátria de chuteiras. Sabemos que, independentemente de termos ou não um time de coração, de entendermos ou não os meandros do escrete, de conhecermos ou não os jogadores a nos representar, para todos, basta o início da Copa do Mundo, ou de competições em que nosso país participe, e vestimos as cores da seleção canarinho.
Por isso é impossível que tamanha paixão e devoção a um esporte não traga consigo raízes da nossa identidade, da nossa personalidade e da consciência das massas.
É certo que o futebol que Nelson viu das arquibancadas, ou acompanhou ao pé do rádio, não existe mais, ficou moderno, se profissionalizou, os jogadores mudaram, a grana fez sumir muito da essência do respeito pelo manto que se veste. As torcidas também mudaram, se organizaram, algumas ficaram violentas. Mas também é certo que a essência do que ele descreveu está ali, o futebol como uma forma de perceber a alma do seu povo.
Nelson Rodrigues transformou o futebol em enredo teatral. Os jogadores de futebol em heróis da nação. Heróis negros, brancos, indígenas, cafuzos, mulatos, morenos, a mais pura representação da miscigenação do Brasil. As suas crônicas esportivas deixaram como grande contribuição a noção de que um jogo de futebol, nunca é só um jogo de futebol.
Referências Bibliográficas
FACINA, Adriana. Santos e canalhas. Uma análise antropológica da obra de Nelson Rodrigues. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.
FILHO, Mario. O negro no futebol brasileiro. Rio de Janeiro: MAUAD, 2004.
FIORIN, José Luiz. A construção da identidade nacional brasileira. BAKHTINIANA, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 115-126, 1o sem. 2009.
FREYRE, Gilberto. Casa-Grande e Senzala. Rio de Janeiro: José Olympio, 1954.
RODRIGUES, Nelson. À sombra das chuteiras imortais: crônicas de futebol. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
SEFFRIN, André. Só os profetas enxergam o obvio. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2020.
Imagem: Didi, o “Príncipe Etíope” de Nelson Rodrigues, com a taça Jules Rimet em 1962 (Foto Horstmüller)