Arte Sacra Contemporânea: Religião e História

60 anos do Concílio Vaticano II: a arte sacra na Constituição Dogmática Sacrosanctum Concilium

Em onze de outubro de 1962, após três anos de intensa preparação, o papa São João XXIII abria na Igreja Católica o Concílio Vaticano II. Esse grande acontecimento pretendeu observar o modo de ser Igreja e, ao mesmo tempo, revisitar a história, para dela haurir nova força e vitalidade para continuar a evangelização. Com a morte do papa São João XXIII, o recém-eleito papa São Paulo VI deu continuidade ao referido Concílio.

O ad fontes e o aggiornamento queridos pelo papa São João XXIII originaram quatro Constituições Dogmáticas, nove Decretos e três Declarações, abordando inúmeros assuntos pertinentes à fé católica e o diálogo com o mundo moderno (cf. TOMMASO, 2017, p. 182-183). A primeira dessas Constituições Dogmáticas é a Sacracrosanctum Concilum, que tratou da reforma litúrgica. Não sendo possível abordar aqui toda a Constituição, vamos nos ater ao capítulo sétimo, que tem como título: “a arte e os objetos sagrados”.

A reforma litúrgica se fazia necessária, uma vez que era preciso devolver a centralidade do Mistério Pascal às celebrações e à vida dos fiéis. Nessa esteira, se situa também o espaço celebrativo, no qual se havia deixado de manifestar o mistério pascal, para dar lugar a um devocionismo exagerado e individual (cf. NEUNHEUSER, 2007, p. 158). O documento conciliar acima citado restaura a compreensão de assembleia celebrativa, que exige uma nova composição do espaço sagrado.

Dessa forma, a arte e suas manifestações, não devem mais ser concebidas a partir da ótica religiosa, mas da litúrgica (cf. PASTRO, 2008, p. 24). Ou seja, a arte deve manifestar, e ao mesmo tempo conduzir, ao Mistério. Segundo a Sacrosanctum Concilium, a arte sacra: “Por sua natureza, está voltada para a manifestação da beleza divina em formas humanas, para o louvor e a glória de Deus, não tendo senão o objetivo de orientar piedosamente para Deus a mente humana e contribuir para a sua conversão” (SC, n. 122). Assim, a arte sacra na Igreja não se apresenta apenas bonita, mas manifesta o Belo.

O documento não visava uniformizar os espaços de celebração, os estilos, ou tolher a criatividade dos artistas. Pelo contrário, o Concílio declarou: “A Igreja não tem nenhum estilo próprio. De acordo com o espírito dos povos, as condições e as necessidades dos vários ritos e das diversas épocas, admitiu uma grande diversidade de formas, que constituem hoje o seu tesouro artístico” (SC, n. 123). Com isso, vemos florescer na Igreja vários artistas, que, com seu traço específico, sua técnica e sua criatividade, dão vida aos espaços do culto. Podemos citar artistas como Cláudio Pastro, Marko Ivan Rupnik, Romolo Picoli Ronchetti, Maria Fonseca, entre outros.

Figura 1. Maria Fonseca. Sarça ardente, paróquia Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Castro-PR (arquivo pessoal)


O Concílio apontou, ainda, que: “Ao promover e favorecer a arte sacra, as autoridades locais devem visar à beleza nobre, mais do que à suntuosidade. Diga-se o mesmo no que se refere às vestes sagradas e aos paramentos” (SC, n. 124). Em seus escritos, o grande artista esloveno Rupnik destaca que a beleza não se dá quando há mais nada a acrescentar a uma obra, mas que a verdadeira beleza se estabelece quando não é possível retirar mais nada. Nesse aspecto, há que se rever a prática pastoral, tão marcada pelo uso excessivo de vestes, objetos, imagens, que poluem o espaço sagrado com excesso de informação.

A Sacrosanctum Concilium ressalta a importância e necessidade da formação dos artistas: “Os bispos, pessoalmente, ou com o auxílio de sacerdotes capazes, que gostem de arte, devem trabalhar junto com os artistas, para que adquiram o espírito da arte e da liturgia sagrada” (SC, n. 127). A partir dessa compreensão, nota-se que os artistas não devem apenas ser dotados de técnica e conhecimento científico para executar suas obras, necessitam também de uma formação litúrgica, teológica, pastoral, a fim de compreenderem a finalidade de cada espaço que estão compondo.

O Concílio enfatiza: “Recomenda-se também que se criem escolas ou academias de arte sacra para formar artistas, nas regiões em que for necessário” (SC, n. 127). Nesse quesito, evidenciamos o centro de arte espiritual Ezio Aletti, em Roma, e também o ateliê de mosaicos, arquitetura e arte sacra AMACOM, em Castanhal-PA. São dois exemplos de escolas de formação artística, espiritual e litúrgica que contribuem para preparar artistas sacros.

Figura 2. Capela Centro Aletti – Roma (arquivo pessoal)


Por fim, o documento conciliar discorre sobre a formação do clero: “Durante os cursos de filosofia e teologia, os clérigos estudem também a história da arte sacra e sua evolução, os princípios que devem ser abordados na arte sacra, de maneira que aprendam a dar o verdadeiro valor aos veneráveis monumentos da Igreja, a conservá-los e se tornem capazes de orientar os artistas na realização de suas obras” (SC, n. 129).

Nesse ponto, há que se reconhecer que um longo caminho ainda precisa ser trilhado, para que os sacerdotes compreendam a arte sacra como arte a serviço da liturgia, e não meramente espelho de seus gostos pessoais (cf. TOMMASO, 2017, p. 164). Tal formação se faz imprescindível nesses tempos em que se observa uma forte corrente contrária aos apelos do Concílio Vaticano II e uma tentativa de retorno ao esquema do Concílio de Trento (cf. BOSELLI, 2014, p. 189).

Ao celebrarmos os sessenta anos da abertura do Concílio Vaticano II, reconhecemos os frutos do evento que inseriu a Igreja numa nova dinâmica de evangelização e de autocompreensão. Nota-se, ainda, que para muitos o Concílio permanece um grande desconhecido, enquanto, para outros, é algo a ser evitado e rejeitado. Urge, portanto, revisitar o Vaticano II para absorver as suas intuições e colocá-las em prática.

Vale recordar as palavras do papa São João XXIII, no discurso de abertura do Concílio Vaticano II: “Queira o céu que vossas canseiras e vosso trabalho, para o qual se dirigem não só os olhares de todos os povos, mas também as esperanças do mundo inteiro, correspondam plenamente às aspirações comuns” (ALMEIDA; MANZINI; MAÇANEIRO, 2013, p. 39). Cabe aos pesquisadores de arte sacra e aos artistas sacros possibilitar que o Concílio se torne realidade objetiva em nossas comunidades paroquiais, a fim de que a arte sacra seja um caminho mistagógico de encontro com uma Presença.

Referências

ALMEIDA, João Carlos. MANZINI, Rosana; MAÇANEIRO, Marcial. As janelas do Vaticano II: a Igreja em diálogo com o mundo. Aparecida: Santuário, 2013.

BOSELLI, Goffredo. O sentido espiritual da liturgia. Coleção Vida e Liturgia da Igreja. Brasília: Edições CNBB, 2014.

CONCÍLIO VATICANO II. Sacracrosantum Concilium: sobre a sagrada liturgia. Constituição Dogmática. 11 ed. São Paulo: Paulinas, 2019.

NEUNHEUSER, Burkhard. História da liturgia através das épocas culturais. São Paulo: Loyola, 2007.

PASTRO, Cláudio. O Deus da beleza: a educação através da beleza. São Paulo: Paulinas, 2008.

TOMMASO, Wilma Steagall De. O Cristo Pantocrator: da origem às igrejas no Brasil, na obra de Cláudio Pastro. São Paulo: Paulus, 2017.

Imagem de abertura: Presbitério, mosteiro Nossa Senhora da Paz – Itapecerica da Serra-SP (Cláudio Pastro/arquivo pessoal)

Sobre o autor

Diego Willian dos Santos

Mestre em Teologia pela PUC-SP. Pós-graduado em Processos Formativos em Seminários e casas de Formação. Bacharel em Teologia pela Faculdade Dehoniana. Licenciado em Filosofia pela Universidade de Sorocaba. Pesquisador do grupo Arte Sacra Contemporânea: Religião e História, do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.