Fui um dos editorialistas e articulistas políticos do Correio da Manhã, em 1967 e 1968. Ainda editava cadernos. Ganhava mal, vivendo de outro emprego numa revista, remunerado decentemente. Tinha um orgulho orgasmático do meu emprego no Correio. Éramos, nós da editoria política, uma elite de marginais, porque o jornal se opunha aos pontapés à ditadura em cena. No AI-5, foi todo mundo em cana – proprietário, diretores (o que incluiu um amigo meu, favorável à ditadura, desde que não lhe torturassem os amigos), em suma, quem apitava no jornal. Peguei dois meses de feijão gelado e arroz gelado. A melhor comida era o pão dormido do café da manhã. Tudo bem. Eu queria mesmo subverter a ditadura. Nada mais justo que a ditadura, quando nos lembramos do significado da palavra, nos perseguisse. O chato é que um dia fizemos uma pesquisa do que liam nossos leitores. Só 16% frequentavam a página editorial… As seções de variedades, coluna social, esporte etc., tinham muito maior freguesia. Éramos lidos por uma pequena elite. Uma pequena elite faz política, escreve sobre política e lê sobre política. Paulo Francis. “A chatice política”, Folha de S. Paulo, 24/10/1985 in Nelson de Sá (org), Paulo Francis: a segunda mais antiga profissão do mundo. São Paulo: Três Estrelas, 2016, p. 262.
As gerações mais antigas guardam para si a imagem de que a participação política dependia da conscientização. Era comum, então, lá pela passagem para a década de 70, que textos e autores fossem mencionados por se apresentarem como necessários à saída do estado de alienação. Carteirava-se assim, exibindo as credenciais com a pretensão de calar o opositor ou de chamar a atenção do público. Não era incomum se partir para a humilhação, o que no Brasil se faz de uma classe social para outra: da elite para baixo e sem compaixão.
Esse comportamento era aprendido no próprio caldo de cultura, cozido lentamente no interior de dinâmicas familiares do Brasil afora ou no contato propriamente dito com o ensino superior. A iniciação era feita de um modo mais orgânico, no âmbito familiar e, nesse quesito, destacavam-se aqueles cujos sobrenomes vinham de alguns séculos. Já no circuito universitário, mais claramente a partir do século XX, com o aumento das vagas nas universidades públicas, a cultura a que nos referimos, e que distinguia consciência e alienação, era disposta de uma forma mais cruel, mais próxima de uma estética “tropa de elite”. Só as provações eram outras, mas a humilhação era a mesma, se não pior.
Sobrenomes sempre importaram no Brasil, bem como apegos aos cargos e vaidades obtidas por qualquer tipo de dispositivo que venha ilustrar a superioridade atávica de um sobre o outro. Em nosso país, a pessoa educada é a que se lembra do seu lugar na fila. E na prática de aquisição de conhecimento nada poderia se diferenciar. Para muitas das gerações que compartilharam as décadas de 60 e 70, a nostalgia da participação política passa exatamente pelo sentimento de privilégio de classe e pela sensação de exclusividade de acesso ao conhecimento necessário para tanto. Para eles, consciência política era a senha para o acesso a um clube restrito e sempre valorizado, uma vez que para poucos. Esse é o paradoxo dos democratas que de fato desejam uma democracia para poucos e escolhidos. Mas ninguém perde o sono por isso.
Preconceito de classe é algo muito pouco camuflado entre nós. Nos bastidores, e de modo ainda mais restrito, se ri e se ridiculariza a maneira como alguns pegam nos talheres, as roupas que usam, a falta de domínio do português castiço ou a ignorância em relação aos produtos mais sofisticados da indústria cultural. Por aqui, até para se defender, é necessário que os mais pobres saibam ao menos como transitar entre os bacanas.
Vai daí que o aumento expressivo da participação política deve, de fato, incomodar quem se aboletou nos melhores lugares e está frequentando as baladas políticas chiques. Lembrando aqui que arte, literatura e conhecimento sempre tiveram pulseiras de difícil acesso, o que se disputa a tapas e sem compostura num país como o nosso. Tem que se ter algum costado para exclamar é nois em público. Talvez por isso a pobreza não seja um assunto para os pobres, mas sim para os mais ricos. E isso porque eles podem se exibir em meio aos seus pares ou ganhar espaço de mídia entre os pobres. Preocupação genuína com as pessoas marginalizadas, somente nas hostes religiosas mais clássicas.
Acredito que o sentimento de estranhamento com a política no contemporâneo guarde proximidade com essa percepção de usurpação. Enfim, como aceitar que se tenha realizado tanto investimento subjetivo no aprendizado da etiqueta intelectual para ser deixado para trás por neófitos que mimetizam qualquer tipo de trend em política? E se no passado educação era algo que se apontava como produto da ação da família, já faz algum tempo que, quando se fala em educação pública, se está referindo àquela que a elite teve e que vem conduzindo quase as mesmas opiniões de sempre. Ou seja, a educação é uma das credenciais de difícil acesso à maioria e se deseja que isso se mantenha. Mas não exatamente para que as pessoas permaneçam alienadas, como se falava no passado, mas sim para que as coisas se conservem como estão.
O que vemos agora deve de fato ser bastante atormentador. A linha traçada entre quem se percebe como conhecedor de política e aqueles que chegaram há pouco tempo está bem borrada. E essa ausência de contraste afeta especialmente aqueles todos que se sentiam à vontade no domínio de uma linguagem cifrada somente compreendida pelos pares e ensinada aos jovens iniciados. Participação política, para quem não pertencia a esse clube privê, somente se a pessoa fosse ungida pela elite. O seleto grupo dos que julgam entender de política em nosso país não estão lá muito a fim de mais sócios.
Veja a LABÔ Lecture com Fernando Amed:
https://offlattes.com/archives/12447
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