Recentemente, pude revisitar umas das últimas obras de Santo Agostinho, A Predestinação dos Santos, analisada pelo Núcleo de Estudos Agostinianos no primeiro semestre de 2019. Trata-se de uma obra produzida na fase final da polêmica pelagiana, na qual o bispo de Hipona sustenta, contra os chamados semipelagianos, que o início da fé é resultado da graça que Deus concedeu aos que predestinou, por sua própria vontade, a alcançarem a salvação. Os semipelagianos em questão abordavam o tema de outro modo: viam a necessidade da graça e da redenção realizada pelo Verbo eterno de Deus, mas a resposta à fé seria livre e pessoal após ouvir a pregação do Evangelho. Agostinho rechaça a doutrina semipelagiana, arguindo que, segundo ela, a graça não seria gratuita, isto é, pura obra da misericórdia divina, mas meritória, uma vez que Deus concederia e enrobusteceria a fé em resposta ao assentimento humano à Palavra pregada.
Recordo-me com vívida clareza que essa obra causou certa controvérsia nas discussões do grupo, pois Agostinho parece inverter o que nós, cidadãos do terceiro milênio, compreendemos por justiça e misericórdia. Mesmo com formação teológica, nessa releitura, também eu senti certa dificuldade em aceitar os argumentos de Agostinho. O objetivo deste curto texto é esboçar algumas notas sobre o método teológico do Doutor da Graça, para clarear e facilitar a compreensão de sua perspectiva na obra em exame.
Todos os seres humanos estão condenados à perdição pelo pecado dos primeiros pais no Paraíso. A força do pecado pessoal de Adão e Eva é descomunal, uma vez que se transmite de geração em geração. Assim, a iniciativa salvífica de Deus deve ser entendida puramente como misericórdia em relação ao gênero humano. A visão antropologicamente pessimista de Agostinho revela uma contraface mais brilhante: a graça de Deus é fruto de sua bondade. Começam, então, algumas complicações com as quais Agostinho precisa lidar. Se a fé é dom recebido de Deus, por que Deus não a concede a todo o gênero humano? Isso seria indicativo de que Deus não quer salvar a humanidade? Se não a quer salvar, por que salva parte dos seres humanos?
Partindo de uma afirmação bíblica do Apóstolo Paulo (1Cor 4,6-7), Santo Agostinho reforça que tudo o que possuímos recebemos de Deus. De fato, poder ter fé é um dom divino na ordem da criação, mas possuí-la de fato é um dom na ordem da redenção realizada por Cristo. Desse modo, diante do questionamento do porquê Deus concede a fé a apenas parte da humanidade, o bispo de Hipona afirma: “é preciso distinguir o que vem da misericórdia e o que vem da sua justiça. (…) Eis a misericórdia e o juízo; misericórdia para a eleição que alcançou a justiça de Deus; juízo para os demais que ficaram cegos” (A Predestinação dos Santos, VI, 11). Deus é, ao mesmo tempo, justo, ao não reparar uma injustiça feita originalmente contra Ele, e muito misericordioso, ao salvar todos os que quiser salvar.
Por que Deus age com misericórdia com alguns, mas com outros sua justiça em retribuição ao pecado fala mais alto? Mais uma vez, partindo de uma afirmação bíblica (Rom 9,18-23), Agostinho afirma taxativamente: “Quem és tu, ó homem, para discutires com Deus?”. A resposta do Doutor da Graça causa espanto, pois não há espaço para argumentação. No mínimo, seria, em nosso tempo, tido como demasiadamente dogmático.
Ao analisar a fala de Jesus em Jo 6,43-45 (“Está escrito nos Profetas: ‘E todos serão ensinados por Deus.’ Quem escuta o ensinamento do Pai e dele aprende vem a mim”), Agostinho explica quem seriam todos estes que são ensinados por Deus, isto é, os que recebem a fé e por isso podem ir até Cristo. “Assim como, ao nos referir a um único professor de letras da cidade, dizemos corretamente: ‘Ele ensina a todos a literatura’, não porque todos recebem dele o ensinamento, mas porque não aprende a não ser com ele quem em tal cidade aprende literatura, assim digamos também com exatidão: ‘Deus ensina todos a vir a Cristo’, não porque todos venham, mas porque ninguém vem de outro modo.” (A Predestinação dos Santos, VIII, 14) Portanto, “todos” indica não a totalidade, mas a modalidade da oferta da fé, ou seja, não é para todos, mas todos os que são salvos devem receber o dom da fé.
Também Agostinho é questionado acerca do motivo pelo qual Deus não moveria a vontade dos seres humanos para que todos aceitassem e, assim, fossem salvos – ou, ainda, se Deus não faz querer os que não querem, por que se reza pelos perseguidores, conforme o preceito de Jesus? A resposta de Agostinho apoia-se na tradição eclesial. Recorrendo a Cipriano, bispo e mártir de grande autoridade na Igreja norte-africana da época, ele afirma que se reza para que Deus opere neles o querer. Com isso, em última instância, não basta querermos ou não, mas torna-se necessário, principalmente, que Deus queira.
Um leitor com espírito mais crítico percebe que as respostas de Agostinho não estão ancoradas puramente numa argumentação filosófico-racional, mas que há um pressuposto de fé amplamente estabelecido em suas ideias. O ponto de partida da argumentação agostiniana é sempre a Sagrada Escritura, sobretudo o Apóstolo Paulo, e a Tradição eclesial, com Cipriano e as práticas litúrgico-espirituais da época. De fato, ainda hoje o método teológico parte de certas premissas fundamentais. Tomas Rausch constata que as afirmações teológicas devem ser atestadas pela tradição bíblica, respaldadas na tradição oficial da Igreja, consentir com a fé do povo cristão e ser coerentes com o conhecimento científico, ainda que não precise receber sua validação. (cf. Introdução à Teologia, 2004, pp. 25-27).
A teologia, na verdade, é uma explanação e explicação consciente e metodológica da revelação divina recebida e aprendida na fé, afirma Karl Rahner. Nesse sentido, percebe-se que os escritos de Agostinho não querem simplesmente responder a problemas especulativos, nem mesmo orientar-se pelo que é mais lógico. O Doutor da Graça está preocupado em explicar metodologicamente o sentido da própria Revelação divina, contida sobremaneira na Sagrada Escritura.
Os destinatários originais dos textos de Agostinho na querela pelagiana são, então, os cristãos de sua época, pessoas que partem de uma discussão de fé. Por isso, quando Agostinho afirma que Deus é misericordioso ao oferecer a salvação, ainda que não a todos, isso seria motivo de admiração, louvor e adoração por parte das comunidades cristãs, restando estabelecida uma possibilidade de redenção e libertação.
A teologia contemporânea entende que certos tratados teológicos podem ser abordados por duas perspectivas: a econômica (a partir de baixo) e a imanente (a partir de cima). Por econômica entende-se o fazer teológico conforme a Revelação bíblica e a realidade das coisas, com um “método indutivo”. Por imanente entende-se a teologia feita a partir de afirmações especulativamente já estabelecidas, de Deus em si mesmo, com um “método dedutivo”. Nesta disputa que estamos trilhando, Agostinho faz uma análise econômica. Ele não levanta questões do tipo “e se…”, mas parte de afirmações propostas da realidade da fé revelada e experimentada, tais como: há salvação como há condenação e o pecado original arrasta a humanidade inteira, de modo que é possível ver suas consequências em nós. À vista disso, para Agostinho, não importa que Deus não vá, efetivamente, oferecer a fé a todos, nem importa os motivos que O levam a oferecer seus dons a uns e não a outros, dado que este não é um problema verificável na Revelação. Afinal, o trabalho reflexivo do bispo de Hipona é para o crescimento e esclarecimento da fé.
Com efeito, ainda permanece em nós, leitores de Agostinho no século XXI, um certo mal-estar racional, um desconforto antidogmático, posto que suas respostas muitas vezes não respondem criticamente. A todos nós, Agostinho certamente diria, quando interpelado, que caminhamos “ainda às cegas (…), mas se a este respeito pensam de outro modo, têm tudo para poder alcançar que Deus lhes revele a verdade” (A Predestinação dos Santos, I, 2).
Imagem: detalhe de Santo Agostinho (Antonio Rodríguez, 1636-1691)