A antropodiceia surge como uma resposta filosófica ao problema do mal. Essa resposta, em contraposição à teodiceia, não se preocupa em justificar a coexistência de um Deus bom e todo poderoso com a existência do mal no mundo, menos ainda busca encontrar alguma origem do mal. Na verdade, a existência ou não de um Deus, seja ele bom ou ruim, não é sequer levada em consideração, que dirá uma origem metafísica do mal. O problema principal a ser respondido é a respeito do mal no mundo e, mais especificamente, do mal no mundo causado pelo ser humano. A velha questão da teodiceia, “se Deus é bom, por que existe o mal?”, foi substituída pelo paradigma ontológico da antropodiceia.
Há uma ótima maneira de ilustrar o problema: o que diferenciava os nazistas que foram julgados em Nuremberg das pessoas que os julgaram? Eles não possuíam a mesma natureza? Ao identificarmos um nazista como uma não-pessoa, o que nos diferencia de um nazista que entende que um judeu é uma não-pessoa? Se o ser humano pode ser tão bom, então por que ele é tão mau? Como pode, da mesma fonte, vir tanto o bem quanto o mal?
Curiosamente, a antropodiceia surge na mesma época em que Leibniz elabora sua famosa teodiceia: 1755, ano do derradeiro terremoto de Lisboa. As consequências desse terremoto, que foi sucedido por um tsunami e um incêndio, assolou a cidade de Lisboa por pelo menos oito dias. Embora se tratasse de um mal natural, ou seja, sem interferência direta do ser humano ou de alguma divindade, parte importante das consequências foram, sim, fruto de atos humanos, visto que a arquitetura lisboeta fora pensada para ser grandiosa e não necessariamente duradoura. Os debates entre figuras como Kant, Voltaire, Rousseau e o já citado Leibniz foram responsáveis pelo surgimento dessa resposta. Podemos, de algum modo, encontrar a antropodiceia em todos os quatro pensadores, mas é em Kant e em Rousseau que ela ganha notoriedade. Susan Neiman identifica que é nesse período que o debate em torno do problema do mal começa a mudar, trazendo maior responsabilidade à humanidade em detrimento de buscar culpabilizar alguma autoridade metafísica pelos atos humanos. Jean-Pierre Dupuy, em seu livro “A Short Treatise on the Metaphysics of Tsunamis” [1], diz que “se o mal moral está por toda parte e o ser humano deve sempre ser responsabilizado por ele, então o homem toma o lugar do Deus de Leibniz. A teodiceia se transforma em antropodiceia.”
Curioso notarmos que, como observa Neiman [2], essa nova formulação do problema do mal surge à época do terremoto de Lisboa apenas como uma resposta filosófica, um escape ao problema surgido naquele momento. Foi somente com o advento da Segunda Grande Guerra que muitos passam a encarar a antropodiceia não mais como uma mera resposta ou reação a algum problema específico e historicamente localizável, mas como um problema filosófico bem mais abrangente. O escândalo do problema foi captado de modo interessante por Hannah Arendt. Em seu breve ensaio “Nightmare and Flight” a filósofa observa o seguinte:
A realidade é que “os Nazis são seres humanos como nós”; o pesadelo é que eles surgiram, que provaram, para além de qualquer dúvida, aquilo que de que somos capazes. [3]
O que os movimentos totalitários mostraram foi que existia uma forma radical de mal. Arendt observa que os movimentos totalitários desvelaram algo que até então se mantivera oculto: que há um modo de radicalizar o mal, ou seja, há uma forma de ferir a realidade, de tal forma, que qualquer atitude a ser tomada para refrear aquele mal será igualmente um mal. Como observa a filósofa em “Responsibility and Judgment”, “(…) aqueles que apelam à escolha do mal menor se esquecem rapidamente que estão escolhendo o mal.” [4]
O termo mal radical é, por sua vez, curioso. Ao utilizá-lo, Arendt se insere na tradição Kantiana, tendo em vista que o termo é do filósofo alemão e apareceu pela primeira vez em sua obra “A Religião nos Limites da Simples Razão”. No entanto, a maneira como Arendt utiliza o conceito faz com que seja possível falarmos do mal radical segundo Kant e do mal radical segundo Arendt.
Ao falar pela primeira vez desse mal radical, Arendt acaba usando também um termo que soa, para qualquer agostiniano, como um verdadeiro escândalo: mal absoluto. O que a filósofa busca trazer à tona com isso é que, ao atingir certo nível de maldade, ou seja, ao radicalizar o mal, essa manifestação do mal acaba alcançando um patamar de mal absoluto, pois é, até então, a maior manifestação de mal conhecida. Isso, contudo, não aponta para um mal absoluto no sentido literal, apenas analógico. Em “Pensar sem Corrimão”, a filósofa diz que
O fio da nossa tradição, no sentido da continuidade histórica, rompeu-se apenas com a emergência das instituições e políticas totalitárias, que já não podiam ser compreendidas por meio de categorias do pensamento tradicional. Essas instituições e políticas sem precedentes estabeleceram crimes que não podem ser julgados pelos tradicionais parâmetros morais ou punidos dentro da estrutura legal existente de uma civilização cuja pedra angular havia sido o mandamento Não matarás. [5]
Embora não utilize o termo, Arendt é bastante consciente do problema da antropodiceia. Em uma sociedade que declarou o óbito de Deus e tomou para si o fardo do mal, responder a esse problema, segundo os termos da antropodiceia, se faz uma necessidade. Minha hipótese é de que Arendt tentou desenvolver essa resposta e que um início desse desenvolvimento estaria no pensamento de Santo Agostinho. Ao propor uma leitura pós-metafísica da filosofia política e moral do bispo de Hipona, Arendt acaba, aparentemente, desenvolvendo uma resposta: o Amor Mundi [6].
Antes de mais nada, é necessário esclarecer que a maneira como Arendt utiliza o termo agostiniano possui um ethos semelhante ao de quando utiliza o termo kantiano mal radical. Embora existam semelhanças e uma óbvia influência, a forma como Arendt trabalha o termo amor mundi chega a, em alguns pontos, ser oposta a definição de Santo Agostinho [7]. Ao que tudo indica, amor mundi seria um amor intermediário aos amores agostinianos apresentados em “A Cidade de Deus”, a saber, amor sui e amor Dei. O amor sui é o amor a si mesmo, que faz o indivíduo pensar apenas em seus interesses, bastante semelhante ao indivíduo que sucumbe ao que Arendt chama de tempos sombrios. O amor Dei é o amor a Deus, que faz com que o indivíduo, ao direcionar seu amor e sua devoção a um ser superior e receber de volta esse amor, deseje transbordar esse mesmo amor – o que recebe e o que dá – às pessoas ao seu redor. Por fim, o intermediário a esses amores, o amor mundi, é o amor pelo mundo, mas não um amor abstrato. O amor pelo mundo é, para Arendt, aquilo que motiva a ação política, por ser um amor bastante concreto por este mundo comum que nos sustenta. O que Arendt faz é estabelecer um ponto entre a civitas dei e a civitas mundi, trazendo algo do amor sui e algo do amor Dei, pois ao mesmo tempo que a ação política é um impulso egoísta, ele o é tendo em vista aquilo que é nosso e não o que é meramente meu.
O amor mundi, portanto, pode configurar como uma antropodiceia, visto que há uma maldade que pode afetar a todos nós e, de fato, nos afeta direta ou indiretamente, como no caso do mal radical – a influência de Maquiavel no pensamento de Arendt, neste ponto, é claríssima. Contudo, o que faz o conceito de amor mundi adquirir uma força ainda maior é a sua aplicação daquilo que o famoso donatista do século IV, Ticônio, chamou De Domini Corpore Bipartito [8]. Ticônio dizia que a Igreja, o corpo de Cristo, é bipartido e sustenta em si, até o fim dos dias, tanto a Babilônia quanto a Nova Jerusalém; tanto a cidade de Deus quanto a cidade dos homens. O filósofo italiano Giorgio Agamben, se referindo a um trabalho antigo de Joseph Ratzinger, o papa emérito Bento XVI, chama nossa atenção ao fato de que esse conceito é presente também em “A Cidade de Deus”, de Santo Agostinho [9]. Há, na natureza humana, algo ruim e algo bom. Logo, seria por meio da ciência dessa natureza que conseguiríamos refrear essa maldade, canalizando, por meio do ordo amoris agostiniano, nossa natureza para o cultivo do mundo comum a todos nós.
Com isso, podemos elaborar rapidamente uma antropodiceia, trazendo à tona os problemas e as prováveis respostas levantadas pela própria Arendt: o que difere aqueles que julgaram o nazismo dos nazistas jugados? A princípio, nada, principalmente tendo em vista que ambos dividem a mesma natureza. No conto “O Segredo de Padre Brown”, de G. K. Chesterton, o autor narra a conversa de Padre Brown e Flambeau, um ex-vilão arrependido. Nessa conversa, Flambeau questiona o padre, a fim de descobrir como ele sempre conseguia desvendar os crimes que ninguém mais conseguia. Padre Brown, respondendo ao questionamento do ex-vilão, nos traz uma revelação interessantíssima e que trará luz à nossa tentativa de construção de uma antropodiceia arendtiana:
Quero dizer que, de fato, eu me vi, o meu eu real, cometendo os assassinatos. Não é que tenha matado os homens por meios materiais; mas não é esse o ponto. Qualquer tijolo ou maquinaria poderia tê-los matado por meios materiais. Quero dizer que pensei e pensei sobre como um homem poderia vir a ser daquele modo, até descobrir que eu era realmente similar a isso em tudo, exceto no consentimento atual e final para a ação. (…) Coloquei de um modo impróprio, mas é verdade. Nenhum homem é, de fato, bom, enquanto não souber quão mal ele é ou poderia ser; enquanto não tiver se dado conta exatamente de quanto direito tem para todo o seu esnobismo, seu escárnio ao falar ‘criminosos’, como se fossem macacos numa floresta, a dez mil milhas de distância; enquanto não se livrar de toda auto-ilusão suja de falar sobre tipos baixos e crânios deficientes; enquanto não espremer para fora sua última gota de óleo dos Fariseus; enquanto sua única esperança não for, de um modo ou outro, a de ter capturado um criminoso, e mantê-lo são e salvo sob seu próprio chapéu. [10]
Ao entender que o que nos difere do pior de todos os seres humanos não é nossa natureza, mas o que fazemos dela, começamos então a caminhar no rumo de uma resposta à questão antropodiceica: por que o homem pode ser muito bom e muito mau? Ora, porque, como já nos havia alertado Santo Agostinho, nossos amores estão desordenados, e, para alinhá-los, precisamos direcioná-los para um télos, uma finalidade. Para Agostinho, contudo, esse télos se encontrava na finalidade meta-histórica do cristianismo, e, na era da morte de Deus, essa não se apresenta como uma resposta tão forte. Por isso, ao invés de uma busca direta e explícita da civitas dei, cabe, por hora, a intencionalidade de cuidarmos da civitas mundi. Se estamos cientes de que somos dominados pelo amor sui, e de que, devido à cultura contemporânea da morte de Deus, não alcançaremos o amor Dei, podemos ao menos buscar o amor mundi, de modo a cuidar do mundo que é comum a todos nós. Cuidar, no entanto, não diz respeito apenas a questões como o cuidado com o meio ambiente ou algo do gênero, mas também por meio do ato de amar o nosso próximo. Em “Love and Saint Augustine” Arendt diz que
Na perspectiva de Agostinho, o negar a si mesmo (self denial) se expressa na atitude do ser humano diante do mundo. O ser humano ama o mundo enquanto criatura de Deus; no mundo, a criatura ama o mundo do mesmo modo que Deus o faz. Essa é a concretização do negar a si mesmo na qual todo mundo, incluindo a si mesmo, de modo simultâneo, ganha novamente sua importância divina. Essa é a concretização do amar o próximo (neighborly love). [11]
É, portanto, por meio do neighborly love, ou seja, do amor ao próximo, que se faz possível a busca pelo amor mundi e o ordo amoris, nos auxiliando a reordenar nossos amores de modo que possamos amar e cuidar do mundo que nos é comum. Amar o mundo é amar ao nosso próximo como a nós mesmos.
[1] DUPUY, Jean-pierre. A Short Treatise on the Metaphysics of Tsunamis. Michigan: Michigan State University Press, 2005, p. 31.
[2] NEIMAN, Susan. Evil in Modern Thought: an alternative history of philosophy. Princeton, Princeton Press, 2015.
[3] ARENDT, Hannah. Essays in Understanding 1930-1954: formation, exile, and totalitarianism. New York:
Schoken Books, 1994, p. 134.
[4] ARENDT, Hannah. Responsibility and Judgment. New York: Schoken Books, p. 36.
[5] ARENDT, Hannah. Pensar sem Corrimão: compreender 1953-1975. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021, p. 41.
[6] Amor Mundi, inicialmente, era para ser o título do livro que hoje conhecemos como A Condição Humana.
[7] Em Santo Agostinho, não há uma real distinção do amor sui e do amor mundi.
[8] O corpo bipartido do Senhor.
[9] AGAMBEN, Giorgio. O Mistério do Mal. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 17.
[10] CHESTERTON, G. K. O Homem Invisível e outras histórias do padre Brown. Rio de Janeiro: Imago, 1997, pp. 18-20.
[11] ARENDT, Hannah. Love and Saint Augustine. Chicago: The University of Chicago Press, 1996, p. 93.
Imagem: gravura representando o terremoto de Lisboa, 1755 (autor não identificado)