
“… quanto mais consciência há nesse eu passivo, que sofre e quer desesperadamente ser ele próprio, tanto mais o desespero se condensa e tende para o demoníaco, eis a frequente origem do mal.” Soren Kierkegaard
Quem é que vota em B, em M, em pessoas que se tornam candidatas e ganham milhares de apoiadores sendo abertamente violentos, mentirosos contumazes, como que defendendo uma postura grotesca? O cansaço diante de um mundo muito difícil de ser compreendido por seus desequilíbrios e injustiças e a preguiça diante de tantas exigências sem garantia de recompensa massacram a disposição necessária para a tão aclamada vida democrática. Quem vende o almoço para comprar o jantar talvez se volte mais facilmente para quem aparece no cenário público reduzido ao ambiente das redes. Quem tem garantidos almoço e jantar nababescos talvez se sinta atraído por esse tipo de sujeito por total desprezo pela vida pública. Os que estão no meio da escala nutrem alta autoconsideração por terem escapado da necessidade, mas também se ressentem por não usufruírem do que lhes é “de direito”. O conceito nietzschiano de ressentimento é muito útil para entender esse tipo de ódio, mas não é suficiente.
Sem esgotar a avaliação a essas três referências e sem generalizar posicionamentos, lembrando o já conhecido poder da imagem que alcançou outro patamar nocivo com as redes sociais, nós nos perguntamos “O que fazer?” Essa atração que a mixórdia, a baixaria, o jogo de cena de quem se apresenta como destruidor das convenções, mas que quer apenas se dar bem, o que significa para esse sujeito ganhar dinheiro, realmente tem uma influência enorme e parece inatacável. Como argumentar com quem escolhe apenas xingar? A argumentação é instrumento racional das relações, da vida pública, da democracia e exige muito em termos de preparo, disponibilidade e paciência, coisas que a educação formal básica deveria suprir e que já está na BNCC, Base Nacional Comum Curricular. Não é fácil que essas exigências sejam compreendidas, respeitadas e exercitadas. Mas é só isso? O que há de errado? É penoso promover valores, sustentar sentidos num contexto em que a justiça e a liberdade, a ética e a democracia estão longe da realidade da maioria. Por exemplo, citei o massacre da necessidade como um fator que impede a consciência política e a cautela. Contudo, o atual índice de desemprego está baixo, está ótimo. Por que as pessoas estão tão revoltadas a ponto de se deixarem levar por personagens como os “políticos” em questão?
Empregados sim, mas e o poder de compra? Mais de 70% das famílias brasileiras estão endividadas. Que vida é essa inundada de fantasias de consumo, promessas inalcançáveis como corpos dos sonhos e o carro do ano? Quais são os valores? Por outro lado, que concentração de renda é essa que nosso país sustenta sem que se tomem medidas concretas de equilíbrio? E ainda, será que esse cansaço, essa revolta e essa preguiça são conjecturais ou são inescapáveis, ao se considerar o ser humano neste mundo do século XXI? É ingenuidade querer tanto de cada cidadão? É possível se esquivar e deixar de imaginar algo melhor? Claro, não é só educação acerca da complexidade do mundo que falta – lembrando que pululam pseudoespecialistas em educação que insistem em reduzi-la à “preparação para o trabalho” –, mas exemplos de comprometimento de quem comanda e de quem tem privilégio. Privilégio sem poder e sem ação real é uma das coisas mais revoltantes e perigosas. O desestímulo à consciência e à reflexão também sabota a própria ação política e a cobrança por medidas igualitárias. A liberdade política foi historicamente difícil de conquistar, mas parece ser ainda mais difícil de sustentar. Por quê? A premência econômica desestimula a liberdade pública. Ou o ser humano é sempre dependente de uma instância que lhe dê ordens como Deus, um rei, um presidente ou a resposta pronta do algoritmo?
O mal, como nos diz Kierkegaard, vem do desespero. Desespero em “ser” com o que se busca ter, desespero na desatenção à curta vida concreta que se tem. Mesmo para quem não acredita que somos também infinitos, essa falta de mínimo respeito e solidariedade amarga o cotidiano e azeda perspectivas de futuro. Há muito, muito mesmo a realizar para enfrentar a atração que exercem os novos tipos de sabotadores da vida política que têm aparecido nos últimos tempos. Não se trata de uma ou outra eleição somente, mas de um combate constante, apostando e insistindo no que de melhor e possível nós, seres humanos, somos capazes de fazer. Clareza de ideias e leis podem e devem coibir a chancela a esses sabotadores. Já sabemos o que significa ser governado por um.
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