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É idiotice que se fala, né? A vida fácil da inteligência artificial na era dos clichês bobos

Tudo o que é relacionado às tecnologias tem os seus nomes concebidos nos Estados Unidos. Isso é algo importante a ser levado em consideração, uma vez que as nomeações devem ser óbvias para evitar qualquer controvérsia. A linguagem deve ser denotativa. Além disso, os títulos são apreciados através do critério de marketing, ou seja, até a audiência mais desprovida de intelecto tem que compreender. Do contrário, a validação do produto ou serviço correspondente será comprometida.

Temos então uma situação em que um indivíduo deve permanecer no operacional concreto de Piaget, portanto imune às abstrações. Isso tudo, bem entendido, sendo capitaneado nos Estados Unidos, como dissemos. Contudo, países e culturas como a brasileira recebem sem nenhum distanciamento o que costuma vir de lá. Assim, temos uma aceitação plena de títulos e interpretações: aceitamos as modas que vêm de fora, com o mesmo comportamento de quem veste a sua melhor roupa para o domingo no shopping ou nos restaurantes-modinha. Quando esboçamos críticas, mentimos.

Tudo isso envolve alguma complexidade. Simulamos aqui o que transcorre nas narrativas que nos chegam do exterior – e Miami ou NY são logo ali. Algumas áreas, é claro, são mais afetadas, como por exemplo o campo de produção de conteúdo ou de pesquisa. Acostumamo-nos a permanecer à deriva e a fazer alarde sobre os obstáculos que enfrentamos. Lambemos as nossas feridas em público como meio de provocar compaixão nos mais desavisados. Quem se importa com o conhecimento em nosso país, se nem estrutura de legitimação possuímos? A vocação intelectual no Brasil deve vir acompanhada do mecanismo de exposição de baixa estima, sempre com a expectativa de que alguém lhe pague o jantar.

A bola de vez é o tal Chat GPT. Já foi o metaverso e tantos outros gadgets que preenchem o tédio de se descobrir como nativo dos Estados Unidos. Lá, as modas não são para entretenimento, mas para ganhar dinheiro, coisa que as Bigh Techs sabem fazer, dado que têm o domínio hegemônico de quase tudo o que fazemos quando tiramos o celular do bolso. Pois agora é a inteligência artificial, que alguns grafam com maiúsculas ou em inglês, para criar um clima mais solene e respeitoso. Alguém pensa na incoerência desse título? Como pode uma inteligência ser artificial? Um simulador, vá lá, mas inteligência? Aqui começa a minha suspeita, que passa pela equivalência que a pessoa acredita existir entre o que ela faz no seu cotidiano e a inteligência. Não, num mundo tomado pelos clichês, frases e causas feitas, quase nada resta de inteligente.

Acho engraçado o clima de tensão ou de aventura, como se à espera de algum desfecho nos grupos de WhatsApp ou nas redes sociais. Toda uma galera vaidosa, que, como diria Tomás de Aquino, padece da presunção de novidades. Tem até gente kantiana, sem saber, que fica otimista em relação ao futuro.

Num primeiro momento, os neófitos parecem conhecer o assunto por meio do Fantástico ou da revista Superinteressante. Digo isso porque a atmosfera que se estabelece é próxima da murmuração: quem perderá o seu emprego? Nada mais terá autoria? As imagens, narrativas e juízos ou pareceres e diagnósticos serão realizados pelos softwares?

Divirto-me com essa tensão, uma vez que, em geral, textos, pareceres, traduções e avaliações já estão no regime de recorta e cola há um bom tempo, ou desde que esses recursos apareceram. Recursos que pegam porque estão próximos do crime perfeito. O embaralhador de textos copiados da internet é um clássico. O alvoroço nas redes parece então querer passar o seu melhor lado na fita, o de preocupado, ético, defensor da capacidade humana de produzir textos ou imagens com autoria.

Quando isso? As pessoas que demostram autoria, se não são cooptadas, metem medo na mediocridade em geral. Quem convive em paz com quem faz sucesso e não dá a mínima para ele? A conversa sobre a inteligência artificial esconde a pretensão de parecer bonzinho e preocupado com o mundo. Nero, hoje, seria um gestor fofo se jogasse as cartas corretamente.

Mas o que de fato a inteligência artificial pode usurpar de nós? Somos seres tomados pelos clichês e damos de bandeja a possibilidade de sermos substituídos. No título da coluna, eu coloquei uma expressão que tem se repetido e simula afeto. É afeto que se fala, né? Desse jeito mesmo, para simular coloquialidade e um pingo de ingenuidade, ainda que não.

Fulano de tal: presente. Quando se deseja mencionar alguém que morreu por conta de suas ideias ou algo assim. Ecoa uma resposta de alunos na chamada. Fica difícil de entender, mas passa pela autoestima do coletivo. Parece derivar da prática estudantil de assembleias do passado mais distante.

Pronomes neutros de todo tipo e que variam sempre, pois têm uma dificuldade de pegar. A dificuldade está na inexistência de um pronome neutro em português. Para a tristeza dos falantes da nossa língua, não temos algo parecido com o It. Seus usos não dizem respeito ao propósito de sua utilização. Não se pensa no coletivo, mas em si mesmo e no efeito que a utilização desse recurso pode causar nas redes sociais, por exemplo. Não se incorre em risco maior, particularmente, quando se sonda o lugar em que você vai utilizá-lo. Quase nada tem a ver com a causa em si, fazendo parte do ativismo home-office. Novamente, veste-se o pronome neutro como uma roupa para frequentar o restaurante da modinha.

Vida fácil a dos simuladores de falas, juízos e comportamentos no contemporâneo.

Veja a LABÔ Lecture com Fernando Amed:
https://offlattes.com/archives/12447

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Sobre o autor

Fernando Amed

Doutor em História Social pela USP. Historiador pela FFLCH da USP, professor da Faculdade de Comunicação da Faap e do curso de Artes Visuais da Belas Artes de São Paulo, autor de livros e artigos acadêmicos. Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Comportamento Político do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.