A Crise do Amadurecimento na Contemporaneidade

Mulheres e esse feminismo

Em seu livro “A Loucura das massas: Gênero, Raça e Identidade” Douglas Murray empreende uma jornada árdua nos tempos contemporâneos, no sentido de compreender a lógica e as incoerências encontradas nos movimentos de defesa dos direitos de minorias identitárias. Suas observações giram em torno da dificuldade desses movimentos dissociarem certa insanidade de seus apelos. Parece não ser possível desvincular desses discursos uma manifestação agressiva feroz e destrutiva que acaba por perder o fio da meada dos objetivos propostos.

A busca pela justiça social, pela igualdade de gênero e a luta contra a discriminação ou abusos cometidos em qualquer relação de poder parecem deixar um lastro idêntico aos criticados – lembrando a famosa cena do personagem infantil A Pantera Cor de Rosa, que limpa os próprios rastros sem se dar conta de que deixa para trás as mesmas pegadas. Estariam essas lutas sendo sintomáticas, revelando outras feridas ou outros gritos inibidos contra agentes primários? Haveria uma comunicação velada no ódio desferido contra os perseguidores, como que reencenando ou descongelando uma cena traumática e paralisante, impeditiva da Continuidade de Ser? Quem seriam os verdadeiros algozes contra os quais se luta?

Murray faz uma referência às demandas das últimas ondas do feminismo e descreve a progressiva diminuição de suas reivindicações, visto que a maioria de seus apelos já havia sido alcançada nas lutas anteriores. No entanto, inversamente proporcional a essas conquistas é o ódio observado nas últimas ondas, como se a aflição aumentasse à medida que as causas concretas se dissipassem. É necessário manter o inimigo vivo. Se ele não existir, como manter a esperança de desfrutar de um triunfo, seja lá sobre quem for?

Iniciando suas reivindicações a partir do século XVIII, com Mary Wollstonecraft, o movimento Feminista lutava pelo sufrágio feminino, por direitos iguais, pelo divórcio, pela guarda dos filhos e herança de propriedades.

Nos anos 60, a segunda onda tinha como foco alcançar as metas que permaneciam sem solução – direitos básicos, carreira e apoio para isso. Em diversos países, as mulheres lutaram pelo direito à educação, licença-maternidade e apoio nos cuidados infantis para trabalhadoras, contracepção e aborto, segurança dentro e fora do casamento. Sem essa mobilização, teriam sido impossíveis tantos avanços no estabelecimento de direitos fundamentais das mulheres. A figura do homem era invariavelmente tomada como responsável por todos os dissabores vividos pelas mulheres ao longo dos anos e os ataques à figura masculina nunca foram novidade.

Nas últimas ondas, porém, observa-se um estilo retórico marcante. Como as demandas passadas já haviam sido conquistadas, o esforço subsequente baseou-se na ideia da preservação desses direitos. Com o advento das redes sociais e a facilidade de disseminação e fermentação de ideias nem sempre fundamentadas, mas sempre ostensivas, o tom da conversa toma outra dimensão. Os ataques parecem estar carregados de maior destrutividade e violência. Com afirmações como “O homem é lixo”, “Tudo o que é bom é feminino e tudo o que é mal é masculino” ou “Mulheres não são só iguais, são superiores” as feministas da última onda pretendem relegar o homem ao completo descarte. O ideal de mundo feminista parece ser um reino onde a “Partenogênese Humana” seja uma realidade. 

Murray descreve as grandes incongruências existentes entre o discurso e o comportamento das mulheres dentro desse movimento. O autor chama a atenção para o comportamento de mulheres que acusam os homens de oprimi-las, subjugá-las e atribuir-lhes papel de nulidade e inexistência por meio do exercício do poder – para as feministas, todas as relações entre homens e mulheres são pautadas pela dominação autorizada pelo patriarcado. No entanto, agressão, sedução e dominação parecem também ser usadas pelas feministas, apenas invertendo os papéis, com elas agora ocupando o lugar de opressoras. O objetivo final de toda a política de reversão do sistema de dominação masculina não parece ser o estabelecimento de igualdade de gênero ou o restabelecimento da harmonia, respeito e complementaridade de papéis, mas a criação de um novo sistema de dominação, no qual a Mulher ocuparia o lugar do macho alfa – fêmea alfa ou macho-fêmea, como preferem alguns. A crítica parece não recair sobre a organização de um sistema em que um ser humano seja dominado por outro, mas sobre quem ocupa esse papel. Se por um lado acusa-se o homem de exercer seu poder com o uso da força física e autoridade, também pode-se dizer que o poder feminino se concentra na sedução e no uso de atrativos físicos, porém com o ingrediente indispensável da dissimulação e da negação de sua artimanha.

Há de se pensar o quanto essas mesmas mulheres que consideram a masculinidade definitivamente tóxica, e que influenciam seus descendentes com essa visão, também reclamam do fracasso da virilidade destes mesmos homens quando essa lhes falta em assuntos domésticos – a criação dos filhos, o sustento satisfatório da casa, a liderança do lar. “Não existem mais homens nesse mundo” – muitos de nós já ouvimos esse tipo de afirmação em algum lugar. Mas não seria esse o ideal de mundo feminista?

Diante das controvérsias presentes nessa retórica, a psicanálise oferece um outro ponto de vista para essas situações. Segundo a Teoria do Amadurecimento de D. W. Winnicott, há um longo caminho a se percorrer até que relações de qualquer tipo – incluindo as relações entre homens e mulheres – se estabeleçam em bases saudáveis. Segundo ele, o amadurecimento é resultado de um processo percorrido pelo indivíduo a partir de uma dependência absoluta do ambiente – inicialmente a mãe, uma mulher – até uma relativa independência que jamais chegará a ser independência total, pois, na saúde, o ser humano sempre estará em relação com um outro e dele dependerá em certa medida. Se tudo corre bem, a maturidade será alcançada, e como fatores primordiais que a definam encontraremos:

  • A INTEGRAÇÃO DO SI MESMO EM UMA UNIDADE, o que significa a capacidade de estabelecimento de uma identidade, com uma pele limitadora diferenciando o Eu do Não Eu;
  • A capacidade de IDENTIFICAÇÃO CRUZADA, ou seja, a capacidade de colocar-se no lugar de outro indivíduo, e consequentemente permitir que ele se coloque em meu lugar;
  • A INTEGRAÇÃO DA AGRESSIVIDADE, que permite que o indivíduo seja responsável e compadecido em relação as suas ações no mundo; e
  • A POSSIBILIDADE DE CONTRIBUIR com a humanidade de forma CONSTRUTIVA, sem prejuízo para o Si-mesmo.

Dessa forma, a saúde ou a existência de virtudes não estão restritas ao pertencimento a uma categoria específica. Não é atributo inato de uma raça, gênero ou qualquer outra faixa nominal. Ser mulher, homem, branco ou negro, ter nascido em determinado país ou família não garante que o indivíduo consiga realizar as tarefas do amadurecimento, visto que essas conquistas dependem, além de fatores e tendências inatas, de uma provisão adequada do ambiente.

Nas palavras de Winnicott:

A vida de um indivíduo saudável é caracterizada por medos, sentimentos conflitivos, dúvidas, frustrações, tanto quanto por características positivas. O principal é que o homem ou a mulher sintam que estão vivendo sua própria vida, assumindo responsabilidade pela ação ou pela inatividade, e sejam capazes de assumir os aplausos pelo sucesso ou as censuras pelas falhas. Em outras palavras, pode-se dizer que o indivíduo emergiu da dependência para a independência, ou autonomia. (Winnicott, 1967/1999, p. 10)

Por isso, diante de uma falha ambiental nesse longo processo de integrações através de tarefas diversas ao longo da vida, o indivíduo é obrigado a reagir para defender-se. O desenvolvimento pode, então, ficar paralisado. Sua retomada pode ocorrer se o indivíduo encontrar novamente um ambiente onde possa reencenar a falha primeira e agora conseguir sua provisão.

Questiona-se, portanto, o quanto essas confusões provocadas no campo da retomada dos direitos femininos podem estar imiscuídas em um processo de comunicação da raiva e revolta por outras ausências, por outras dores. Embora seja inegável a existência de situações reais de abuso e opressão para homens e mulheres, seria a incapacidade de reconhecer a si mesmo como indivíduo íntegro e valoroso, e ao outro como possuidor das mesmas virtudes, resultado da imaturidade individual? Estaria no cerne da revolta feminina contra a figura masculina e da generalização de uma ação persecutória destrutiva de sua parte uma paranóia originada por invasões sofridas por outros agentes ambientais?

Quando fala sobre isso em seu texto “Este Feminismo”, rascunho de uma palestra proferida em 1964, logo às vésperas da Segunda Onda Feminista, Winnicott já manifesta que está entrando em um terreno minado. De forma divertida, ele inicia a discussão dizendo “Esta é a coisa mais perigosa que eu fiz nos últimos anos.” (Winnicott, 1964, p. 183)

Começa desfazendo o ideal de igualdade, afirmando que há diferenças entre homens e mulheres, e piora a situação afirmando que existe em cada mulher um componente masculino e em cada homem um componente feminino. Isso certamente resultaria em apedrejamento em qualquer congresso feminista na atualidade.

Winnicott afirma, ali, que a saúde consiste na integração desses elementos em cada um, e que cada indivíduo pode beneficiar-se da manifestação de cada uma dessas partes em si. Além disso, o amadurecimento é resultado de todo tipo de intercâmbio dessas partes em si mesmo, entre os pares, entre a criança e os pais e a partir da integração desses elementos ao longo do crescimento.

No entanto, um fenômeno tem relação direta com o feminismo – a realidade da externalidade do órgão genital masculino e as consequências dessa constatação por parte da menina no que Freud denominou de fase fálica.

Para a menina, a constatação de um pênis no menino pode ser sentida como uma falta em si mesma.

Freud inventou o conceito de fase fálica, precedendo a genitalidade plena. Poder-se-ia chamá-la de fase de ostentação e exibicionismo. Não há dúvida de que as meninas sentem certo incômodo quando passam por essa fase, ou por aquilo que corresponde a ela nas meninas. Por um instante, elas se sentem inferiores, ou mutiladas. O trauma disso é variável, de acordo com fatores externos (posição na família, natureza dos irmãos, atitude dos pais, etc.), mas não permite que se negue que, nessa fase, o menino tem e a menina não. A propósito: o menino pode urinar de uma forma que as meninas invejam, tanto quanto invejam a ereção do menino. A inveja do pênis é um fato. Na fase seguinte, da genitalidade plena, a menina se iguala; torna-se importante e invejada pelos meninos, pois ela pode atrair o pai, ter bebês (eventualmente por si mesma ou por procuração) e, na puberdade, ela tem seios e regras, e todos os mistérios são dela. (Winnicott, 1964, p. 186)

Winnicott segue descrevendo os efeitos dos traumas que essa fase pode provocar, caso ambos, meninos e meninas, não consigam sair dela reconhecendo em si não uma falta, ou um senso de inferioridade, mas a potência – e os privilégios próprios de cada sexo.

Pode-se dizer, então, que o feminismo envolve um grau maior ou menor de anormalidade. Num polo, existe o protesto feminino contra uma sociedade masculina dominada pela ostentação da fase fálica masculina; no outro, existe a negação feminina de sua inferioridade real numa certa fase do desenvolvimento físico. Sei que uma afirmação simples como essa é inadequada, mas vocês compreendem que ela pode constituir uma tentativa de agrupar uma grande complexidade no âmbito de poucas palavras… (Winnicott, 1964, p. 189)

Muitos são os sintomas provocados pela falha na integração desses aspectos, e seu sucesso também não nos garantiria uma humanidade harmônica, na qual os conflitos estejam ausentes. Como afirma Winnicott e nós o constatamos, o viver é repleto de agruras.

Outra afirmação fundamental de Winnicott é que todo homem ou mulher tem uma dívida inegável com uma mulher, pois, se estão vivos, vieram de uma. Se ainda têm saúde mental, isso advém do fato de que uma mulher sustentou o processo da integração individual. Talvez o reconhecimento dessa realidade colabore para uma diminuição de muitos conflitos.

Winnicott sugere uma complementaridade entre os sexos, quando afirma que:

Sendo saudável, portanto, a mulher pode encontrar uma vida masculina em experiências imaginativas identificando-se com homens. Na forma mais grosseira de identificação, a mulher pode usar um homem, e assim ganhar o bônus de transferir sua masculinidade e experimentar aquilo que tem em sua experiência enquanto mulher. Pode-se dizer o mesmo em termos do uso que um homem faz de uma mulher… Isso me conduz à seguinte formulação: para avaliar de modo pleno o que significa ser uma mulher, a pessoa tem que ser um homem, e para avaliar plenamente o que é ser um homem é necessário ser mulher. (Winicott, 1964/1999, p. 190)

A discussão é ampla e não pode ser esgotada aqui. Há ainda muita contribuição na teoria do amadurecimento para a psicologia do ditador e para o fator democrático inato – temas que também exigem maturidade e quando não há saúde resvalam no desequilíbrio das relações humanas e com a sociedade. Contudo, a compreensão de que existem muitos outros elementos envolvidos na forma como vêm se desenhando as relações entre os sexos pode contribuir para o desfrute mútuo das diferenças, se estas forem tomadas como enriquecimento e não como motivos de guerra.

Bibliografia

Winnicott, D. W. (1964/1999). Este feminismo. Tudo começa em casa. São Paulo: Martins Fontes.

Winnicott, D.W. (1967/1999) O conceito de indivíduo saudável. Tudo começa em casa. São Paulo: Martins Fontes.

Murray, Douglas (2019) A loucura das Massas: Raça, Gênero e Identidade. Rio de Janeiro. Record.

Imagem: mulher e homem rebitando o cockpit de um bombardeiro B-25 (Alfred T. Palmer, 1942, United States Library of Congress)

Sobre o autor

Telma Molina

Psicóloga Clínica graduada pela Universidade Paulista. Psicanalista Winnicottiana, membro do Instituto Brasileiro de Psicanálise Winnicottiana. Pesquisadora do grupo de pesquisa A Crise do Amadurecimento na Contemporaneidade, do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.