Agradecemos à Liberty Fund, editora de Law and Liberty, por autorizar a publicação deste artigo.
Tradução: Lavínia Pena e Marcos Pena Jr | Revisão: Luiz Bueno e Flávia Sarinho | © Labô
Texto original: “Taking Responsibility for Our Politics” – publicado em lawliberty.org (publicado em 6/10/2021)
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A distinção entre responsabilidade e culpa é importante, ética e jurisprudencialmente, mas parece que tal distinção está se tornando cada vez mais confusa à medida que a lei substitui a religião como árbitro da moralidade. Quantas vezes eu já ouvi alguém acusado de se comportar mal dizer “Não existe lei contra isso!”, como se a ausência de proibição legal resolvesse a questão.
As duas claramente se sobrepõem, e, no geral, não pode haver culpabilidade sem responsabilidade legal. Mas os vários significados da palavra culpa –o veredito de um tribunal de se ter infringido a lei, o sentimento que se tem, ou que se deveria ter, após ter feito algo errado, a atribuição de culpa por outros a alguém que supostamente fez algo errado – estão rapidamente se tornando o tipo de sopa cujos ingredientes foram colocados em um processador de alimentos.
Mesmo a imputação de culpa judicialmente costuma ser repleta de ambiguidades. Um homem pode ter uma justificativa ou circunstâncias atenuantes para o seu ato ilegal. Um sistema que se recusasse a reconhecer isso seria rigoroso ao ponto da crueldade; um sistema que mitigasse todas as ofensas dificilmente manteria a paz. Isso apenas causaria anarquia no mundo.
A distinção entre culpa e responsabilidade é ainda mais difícil no mundo político do que na vida cotidiana. Na França, uma ex-ministra da Saúde, Agnès Buzyn, foi intimada ao tribunal para que os magistrados investigassem se ela era ou não culpada, à primeira vista, de algum crime na sua condução da epidemia de Covid-19, quando esta começou. Não somente ela, mas o atual ministro da Saúde, assim como funcionários do alto escalão, provavelmente também será submetido a tal investigação.
As autoridades do Ministério Público receberam milhares dessas reclamações do público, em grande medida incentivadas por advogados – que, é claro, estavam apenas pensando no bem comum. O resultado provável, depois de milhares de horas de investigação custosa, é de que nenhuma acusação será feita, ou, se forem feitas, o acusado será absolvido. No entanto, isso não é certo; o ex-ministro está sob investigação por uma de duas acusações, ou possivelmente das duas, de “expor diretamente uma outra pessoa a um risco imediato de morte, ou de lesão que a resulte em mutilação ou deficiência permanente, por negligência manifestamente deliberada de uma obrigação privada de diligência…,” ou de “abster-se deiberadamente de tomar ou promover medidas, sem nenhum risco a si mesmo, para combater um desastre, criando assim um perigo para a segurança de terceiros.” A punição para o primeiro crime é de até um ano de prisão e uma multa de 15.000 Euros, e para o segundo é de até dois anos de prisão e uma multa de 30.000 Euros.
Obviamente há dificuldades enormes e provavelmente insuperáveis no caso, mesmo em seus próprios termos. É fácil dizer que as medidas tomadas ou não pela ministra foram aquém do ideal e levaram a mais mortes do que aconteceria de outra forma; mas precisa estar provado que ela não só fez o que não deveria ter feito, ou não fez o que deveria ter feito, mas que ela fez ou não fez deliberadamente e, além disso, que suas ações ou omissões realmente levaram ao denunciado aumento das mortes. Dado o caótico estado de conhecimento, mesmo após tantos meses, isso não seria fácil: e o fato de não ser fácil sugere a inocência, ou ao menos a não culpabilidade, da pessoa investigada.
Além disso, é necessário provar que a maior parte da responsabilidade pela política fatal foi dela, que ela não estava simplesmente seguindo a recomendação de pessoas que conheciam o assunto melhor do que ela. Mesmo em casos relativamente simples, envolvendo um paciente em um hospital, muitas vezes se descobre que nenhuma pessoa é responsável por um desfecho catastrófico – pelo contrário, há uma cascata de pequenos erros que levam a isso. Pode-se encontrar um bode expiatório ou exonerar todos, com nenhuma dessas opções sendo inteiramente satisfatória – muito embora encontrar um bode expiatório seja sempre divertido e muito satisfatório.
As esperanças dos acusadores aumentaram com a perspectiva de um ex-ministro atrás das grades, mas provavelmente serão frustradas ao final, encorajando-os, e outros também, a concluir que o “sistema” sempre cuida dos seus, e com isso afastando de si ainda mais as pessoas, o que é perigoso. A ex-ministra terá sido submetida (já foi submetida) a horas de interrogatório. Eu não a conheço, e, presumivelmente, para ter alcançado a posição em primeiro lugar exigia que ele tivesse uma carapaça bem forte, mais forte que a média; no entanto, até mesmo políticos estão sujeitos ao sofrimento.
Não sou um grande admirador de políticos, especialmente daqueles que não fizeram outra coisa em suas vidas além de politicagem. No entanto, responsabilizá-los criminalmente por seus erros me parece um ótimo jeito de garantir que eles se tornem piores do que já são. A falta de atrativos da vida política já é grande o suficiente sendo como ela é. Sua natureza de tempo integral, como se fosse uma profissão como, digamos, a de um cirurgião, já é ruim o suficiente – assim como o fato dessa vigilância perpétua, significando que uma mera piada pode levar a destruição de uma carreira, uma vez veiculada nas redes sociais. Agora um político vive sua vida pisando em ovos. Mas se, além disso, políticos tiverem que enfrentar acusações criminais por terem adotado políticas equivocadas ao chegarem ao poder, apenas as pessoas mais psicopatas, narcisistas ou impiedosas se envolveriam nisso. A punição correta para os políticos certamente está nas urnas e nos jornais, etc.
Sem dúvida, chega um ponto em que uma política é o que Talleyrand pensava ser menos que um erro, ou seja, um crime. Uma política como o genocídio obviamente é um crime, assim como também é uma política. Mas esse é um caso muito extremo, do qual a maioria dos políticos, por mais repreensíveis que os consideremos, fica muito aquém.
O ex-presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, cuja característica mais atraente era a tendência para a bebida, uma vez disse algo sábio. Referindo-se aos políticos eleitos, ele disse: “Todos sabemos o que deve ser feito, só não sabemos como ser eleitos depois.”
Então, os culpados são os políticos ou o eleitorado?
* Lançado originalmente em maio de 2020; ainda sem tradução para o português. Numa tradução livre, o título do livro é “Embargo e outras histórias”.