Núcleo de Filosofia Política

Edmund Burke e a Crise no Direito Natural Moderno

Na última parte do livro intitulado Direito Natural e História[1], o autor e filósofo judeu-teutônico Leo Strauss separa duas seções para tratar do período que denomina a “Crise do Direito Natural Moderno”. Por meio de duas figuras centrais – Jean-Jacques Rousseau e Edmund Burke – o professor Strauss intenta explicar que certos pilares e princípios regentes da modernidade foram severamente modificados graças às críticas e denúncias feitas pelos filósofos citados. Com base nas considerações feitas por Leo Strauss sobre Burke na obra em referência, o presente texto discutirá, brevemente, como foi desenvolvida essa análise. Para isso, haverá três partes subsequentes: a primeira abordará a visão sobre o homem em si; depois, a discussão segue para a natureza da sociedade política; no terceiro segmento serão explanados os desdobramentos desse processo. Essas questões serão apreciadas sob os prismas do Direito Natural e da Tradição Política de cunho historicista, à qual pertence Burke conforme juízo de Leo Strauss.

1) A visão de Edmund Burke sobre o ser humano

Em sua pesquisa sobre a obra do filósofo britânico do século XVIII, Leo Strauss identificou que a noção de Burke acerca do que significa o ser humano foi afetada pela perspectiva da causalidade acidental[2]. A vida humana, assim, seria mais um somatório de experiências das gerações em meio ao ambiente contingencial que rege a realidade, em detrimento de algo mais refinado ou lógico, como era advogado pelos revolucionários racionalistas. Para estes, toda a natureza (como sinônimo de realidade) seria um grande sistema mecânico que funciona a partir de engrenagens e regramentos logicistas, compreendidos epistemologicamente. Para Burke, a natureza humana extrapolaria todos esses fatores limitantes, apesar de desenvolver-se sob o peso da contingência e, sim, haver o fardo das forças impessoais.

Ainda nesse tópico, Burke reconhece certas qualidades típicas dos homens quando do estágio prévio ao de formação da sociedade[3]. São três os elementos constitutivos; todos eles sendo derivações da autonomia individual. Cada pessoa é dotada de um ímpeto específico: autodefesa. Esta corresponde ao ato de agir com vistas a salvaguarda-se de ameaças à integridade física, seja por obra de agentes próximos, seja em decorrência de transtornos ambientais, porque o único bem básico disponível ao sujeito é a própria vida e suas faculdades. Conjuntamente a isso temos o autogoverno, por meio do qual se executa a administração dos atos pessoais segundo o exercício livre da volição em favor da própria felicidade, a despeito dos limites gerados pelas circunstâncias e a providência divina (um tema peculiar para Burke dado o poder insuficiente dos homens para decifrar toda a ação de Deus no mundo). Quaisquer refreamentos morais, por sua vez, causarão impacto apenas se houver a anuência do indivíduo, que foi dotado da liberdade de dominar a si mesmo ao lidar com os fatos. Como elemento derradeiro na composição dos homens em estado de simplicidade, há o julgamento autônomo e racional de eventos. O juízo a ser elaborado para discernir os episódios dos quais esteja a participar ou tenha conhecimento advém das suas faculdades mentais. Desse modo, existe uma autonomia de apreciação pela razão que dá fundamento à essência humana, mas os afetos também interferirão no ato, normalmente; pois o homem não subsiste enquanto uma espécie de máquina racional pura.

Os direitos naturais, na visão burkeana, não correspondem somente ao arcabouço de benesses imaginados por teóricos racionalistas. De maneira oposta ao reconhecimento dos planeados direitos, Strauss indica que Burke conjuga as perspectivas filosóficas aristotélica e tomista com a valorização da sabedoria prática. Dentre as habilidades necessárias para viver em busca da autorrealização, os indivíduos deverão colocar freios em paixões e afetos; caso isto deixe de ocorrer, os objetivos firmados não serão concretizados. Logo, a fórmula burkeana da natureza dos homens equaciona direitos inerentes básicos com as virtudes, comumente anunciadas pela filosofia clássica, como o apego à razão, à prudência; e a busca do domínio próprio e o bom senso[4] na realização das ações em busca da felicidade plena.

2) A sociedade civil como o verdadeiro estado de natureza

Na idealização de Edmund Burke, o estado de natureza real é vislumbrado na sociedade civil[5]. O motivo para isto baseia-se na sua interpretação da história. Ele observa ser viável apenas no ajuntamento dos homens em sociedade a efetiva possibilidade de ocorrer o fim das necessidades básicas da espécie. Mediante um contrato, ou pacto, racional e com o imprescindível respeito às virtudes antigas, os sujeitos podem criar a organização apta a lhes prover os bens cruciais para as duas condições que sustentam a vida: sobrevivência (com segurança) e liberdade para se alcançar a felicidade pessoal.

O governo fruto da celebração contratual que dá sentido à associação tem por alicerce, além de ser um eficiente provedor dos bens substanciais, a sua competência de articular com os direitos sociais (os antigos direitos naturais inseridos no pacto) a conformação dos cidadãos aos hábitos virtuosos que os eduquem e guiem a preservar, manter os compromissos que sustentam o vínculo público. Tamanha é a importância da virtude neste aspecto que o filósofo advoga serem a razão e a prudência qualidades indispensáveis tanto no seio da sociedade, haja vista o papel crucial na formação da pessoa, quanto no reconhecimento da legitimidade que a autoridade pública deve ter para executar suas tarefas oficiais.

2.1) A participação dos cidadãos na vida política

Sobre a atuação dos agentes livres numa associação política burkeana, o professor Strauss admite que há, sim, chances de alguém interferir no andamento das deliberações burocráticas. Porém, a concepção de Burke tem características singulares, as quais convém observar em detalhes[6].

A participação dos indivíduos no círculo ou âmbito das decisões não decorreria do direito natural em si. O estado humano anterior à sociedade confere somente o direito ao governo justo, reto e prudente, cujas finalidades são certificadas pelos frutos dos atos decisórios. Ou seja, cada indivíduo tem o poder de confrontar os dirigentes, quiçá lançar dúvidas, acerca dos resultados das atividades públicas. No entanto, o direito natural não traz como preceito basilar o direito ao quinhão político, nem mesmo avaliza quaisquer modelos de governo representativo democrático. Assim, o sujeito em hipótese alguma poderia invocar seja a tradição, seja a razão como fiadores da pretensão de acessar a uma parcela do poder governamental. Esse tipo de ambição estava restrita aos integrantes da classe mais habilidosa dos cidadãos: a aristocracia[7].

2.2) Uma aristocracia natural

Pela interpretação adotada por Leo Strauss, o modo de serem coordenadas as incumbências oficiais pressupõe a existência de um grupo apto a congregar as virtudes antigas com as prerrogativas sociais da elite local, como propriedades, herança e integração na história daquela sociedade.

O colégio de líderes constituído por aristocratas saberia conciliar os deveres de tipo moral, que restrigem as paixões e desejos pessoais em favor do bem comum; e intelectual, as escolhas sendo subordinadas aos ditames da razão; com o apego à tradição e aos velhos costumes que dão forma à natureza e identidade do ajuntamento. Essa aristocracia deve, pois, gozar de prestígio entre os pares, podendo dirimir conflitos, nortear as medidas futuras e preservar o legado das práticas políticas e religiosas adotadas no correr dos séculos. Seria um tipo de guardião das liturgias sociais e mestre das deliberações necessárias. Ressalte-se que o adjetivo “natural” utilizado por Strauss para qualificar a aristocracia consiste no fato de a tradição ser a gênese desse segmento, e não por haver alguma autoridade externa e imaterial.

2.3) A Constituição da Sociedade e do Povo

Levados pelo desejo livre de constituir um vínculo público entre si com o objetivo de auxiliar na superação das mazelas humanas e atingir a felicidade e a segurança para a própria vida, qual seria o procedimento adotado pelos agentes para consumar a intenção? Segundo Edmund Burke prescreve, os homens podem acordar, ou pactuar, as obrigações morais praticadas por eles ao longo dos anos e os bens da vida que deverão ser protegidos, e promovidos, pelos participantes, conforme as normas convencionadas.

Será ainda no pacto que Edmund Burke observará a real origem do povo[8]. As pessoas, que seguiam dispersas pelas regiões a levar consigo hábitos e crenças, terão no acordo político a união que os tornará próximos, com laços concomitantes aos compromissos familiares. O pacto guiará os parâmetros para julgamentos públicos, e, também, exercerá o domínio sobre as opções individuais; porém, o objetivo da governança pactual não inclui determinar aquilo a ser perseguido pelos agentes no âmbito particular, mas sim, assegurar que a liberdade de ação seja equalizada com o respeito às propriedades, instituições criadas e reconhecidas e à história do ajuntamento. A noção de povo, por isso, foi atada ao pacto, definitivamente.

O professor Leo Strauss, em suas averiguações nas obras de Burke, demonstrou que o antigo filósofo irlandês amparava essas teses sobre a transição da vida humana errante para a sociedade civil, expostas pelo teórico nas muitas discussões com as quais se envolvia, no documento mais importante do seu universo histórico: a constituição do império britânico. Foi a carta magna do governo imperial quem melhor fundamentou as ideias propaladas na carreira política de Burke. Dessa constituição vem o alicerce na tradição, o item que constrói o liame entre os cidadãos; os fatos morais dos quais advém as normas regentes da vida pública e a história de sucessão das gerações; como também a relevância das virtudes no exercício de julgar e dar ordem às vidas privada e pública; e os papéis concernentes ao governo e demais instituições. Graças a essa ênfase dada pelo professor Strauss, torna-se menos complexo verificar que Burke rompeu com o racionalismo moderno defendido pelos humanistas revolucionários, os quais menosprezaram as ações práticas por causa da crença no poder superior da razão. Malgrado o pacto ou acordo esteja na gênese da formação social, o professor Strauss aponta um detalhe na visão de Edmund Burke: os hábitos virtuosos, os comportamentos moldados pela prudência, controle de paixões e emprego do bom senso e da razão – formando a sabedoria prática -, são mais importantes do que o acordo originário[9].

2.4) O valor público da Sociedade [10]

O ponto áureo da revolução social que a humanidade experimenta é vislumbrado no momento de composição das sociedades civis. De acordo com as teorizações de Burke, essa sociedade dos homens pautada nas virtudes antigas reveste-se de sacralidade, inclusive. Porque o ajuntamento tem o poder de consumar as práticas morais formativas com as liturgias, civis e religiosas, e as memórias dos eventos ímpares na história moral do povo, criando o bem mais precioso da população: a identidade nacional. Conquanto tenha havido pessoas de grande vulto na história dos povos, quiçá dignos da designação de heróis nacionais, nenhum gozará de prestígio equivalente ao concedido à sociedade. Postos em comparação direta, e tendo por regra de avaliação o bem geral proporcionado, simplesmente o ajuntamento é o único a gerar o bem em grau máximo, ou ter o potencial de atingi-lo no futuro.

3) Desdobramentos teóricos das teses de Edmund Burke no campo da Filosofia Política

Na análise sobre os escritos de Burke realizada pelo filósofo Leo Strauss, há implicações que afetam o arcabouço teórico da filosofia política típica da era moderna, haja vista a ruptura com a primazia do racionalismo sobre as demais matérias. O professor Strauss alega que a revolução francesa, sendo a primeira de natureza eminentemente filosófica[11], foi um marco histórico contra o qual a insurgência de Burke evidencia o conflito pela sobreposição do conhecimento prático ao racionalista. Burke julga que a revolução na França era dogmática e ateísta[12], tendo certa semelhança até mesmo com a Reforma Protestante, por causa dos traços religiosos presentes nela, conquanto a religião fosse malvista pelos teóricos rebeldes.

Leo Strauss apregoa que o núcleo da perspectiva política do ativista irlandês estaria na relação que as ações práticas dos agentes têm com as teorias engendradas por estudiosos. Conforme Burke deixaria evidente nas suas elocubrações, as teorias não têm poder em si de guiar as medidas práticas[13], mas a criação de explicações e a busca de aperfeiçoamento do saber acumulado na experiência cotidiana deve ocorrer segundo o melhor uso da razão e obedecer à prudência. Pois Burke reconhece que os direitos naturais (benefícios e obrigações) têm prevalência sobre a sabedoria prática, inclusive[14].

No arcabouço filosófico que advoga, Burke apresenta dois aspectos distintivos da ação prática, ou prudência, quando comparada às teorizações. A teoria volta-se aos casos universais, reversíveis e originais, bem como, atenta para os princípios morais visados e os meios de implementá-los. Em vez disso, a prática tem por escopo circunstâncias mutáveis, situações fáticas e basilares nas quais os preceitos morais irão ser aplicados. A Teoria Política, então, alude aos casos simples cuja ocorrência na vida comum sequer é algo imprescindível. Ademais, essa matéria refina o conhecimento experiencial, favorecendo as resoluções de novos imbróglios de ordem política. Enquanto a experiência, e com a ela a História, podem auxiliar a lidar com demandas antigas[15].

Edmund Burke promove também outra diferenciação em termos utilizados por ele nas suas dissertações públicas envolvendo o campo jurídico: legal (especulativa/metafísica) e prudência. As normas, ou leis, tratam de comportamentos genéricos que foram apenas assimilados pelos sujeitos; a prudência auxilia no enfrentamento de casos novos.

Destarte, haverá dois agentes típicos que encarnam aquelas propostas aventadas por Burke. O teórico busca medidas amplas, genéricas em favor de casos hipotéticos, com o objetivo de aperfeiçoar o conhecimento sobre os deveres da vida pública. Nada em específico gera nele algum tipo de interesse que module sua vontade, antes, os juízos tendem ao que é de natureza elementar, supracotidiano. O sujeito prático, contudo, age porque há objetos que tomam sua atenção ou criam vínculos consigo, levando-o a tomar medidas que favoreçam ao bem visado. Ademais, os juízos teórico e prático não são vinculados, pelo que existem sentenças teóricas que consideram algo correto à luz dos princípios fundamentais, mas seria admitível que tal prescrição seja incorreta na vida regular[16].

4) Conclusão

Segundo Strauss, os textos de Burke demonstram certo desdém com a proposta aristotélica de compreensão e exercício das virtudes na vida política. Por vezes, ainda de acordo com Strauss, os termos usados por Burke têm sentido diverso daquele utilizado por Aristóteles. Isto ocorreria já pela influência da visão cética e empírica compartilhada por contemporâneos do pensador britânico[17].

Edmund Burke, de forma inovadora para Strauss, depreciava parcialmente a razão devido a identificar nela limites para seu poder de interpretação da realidade. Por outro lado, os sentidos e o instinto seriam mais confiáveis do que a tradição racionalista apregoava[18]. Acrescente-se mais um elemento inovador presente na crítica de Burke sobre a razão: a ordem social não pode ser fruto da sabedoria de legisladores ou fundador único.

A Constituição correta para Burke, e nesse sentido a sociedade, será aquela forjada historicamente por um processo de natureza acidental e ocorrido em local específico; ou seja, o documento não foi objeto de planejamento por intelectuais notáveis, mas sim, algo típico das interações regulares dos agentes imersos num horizonte contingencial[19]. A ordem social boa ou racional será aquela regida por forças ou fatores os quais não tendam ao bem comum, propositadamente. Ainda segundo Strauss, o contraponto burkeano ao modelo propagado pela Revolução Francesa é a “jurisprudência histórica” – que consiste em extrair dos episódios antigos precedentes a partir dos quais serão formulados conceitos e promovidos análises e juízos que sirvam ao exercício político no tempo presente.

Bibliografia

  • STRAUSS, Leo. Direito Natural e História. Lisboa, Portugal: Edições 70, 2009

Notas

[1] STRAUSS, Leo. Direito Natural e História. Lisboa, Portugal: Edições 70, 2009.

[2] Ibid., p. 268

[3] Ibid., p. 252

[4] Ibid., p. 253

[5] Ibid., p. 252

[6] Ibid., p. 253

[7] Ibid., p. 253

[8] Ibid., p. 254

[9] Ibid., p. 254

[10] Ibid., p. 256

[11] Ibid., p. 257

[12] Ibid., p. 257

[13] Ibid., p. 259

[14] Ibid., p. 258

[15] Ibid., pp. 260, 262, 263

[16] Ibid., p. 264

[17] Ibid., p. 265

[18] Ibid., p. 266

[19] Ibid., p. 267

Imagem: montagem com Edmund Burke e Leo Strauss (autores não identificados)

Sobre o autor

Pedro Henrique S. Braga

Graduado em direito pela UNESA/RJ. Pesquisador do Núcleo de Filosofia Política do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ