
Intelectual que fala contra o fundamentalismo islâmico abre evento em Oxford dedicado ao legado de Michael Oakeshott1
No universo acadêmico existe aquele tipo de intelectual que ganha fama além das universidades. Geralmente alguém que consegue trazer fatos cotidianos para exemplificar os debates que ocorrem no campo teórico. Aqui no Brasil podemos dizer que Luiz Felipe Pondé é um desses intelectuais. Uma de suas muitas atividades é ser diretor acadêmico do LABÔ, na Fundação São Paulo/PUC-São Paulo, onde, por conta de sua influência, o grupo de Filosofia Política vem estudando um filósofo inglês chamado Michael Oakeshott 2 (1901-1990). Diferente de Pondé, o nome de Oakeshott não é muito conhecido fora da academia, no Brasil ele é pouco debatido até mesmo nas universidades. Por isso, não é incomum que os pesquisadores do LABÔ tenham de explicar a colegas quem foi e qual a importância desse autor.
Mas agora o esforço desses brasileiros ganhou um aliado de peso: a Universidade de Oxford, onde o filósofo lecionou entre 1949 e 1951, resolveu lhe dar maior destaque. A partir de 2024, a série de palestras anuais que a Universidade organiza para debater temas ligados à corrente conservadora passa a se chamar “Oakeshott Lectures”. Até então, o evento homenageava Sir Roger Scruton (1944-2020), outro expoente do conservadorismo inglês em sua feição contemporânea, e o qual, devemos notar, é muito mais conhecido (e polêmico) do que Oakeshott.
Talvez seja possível dizer que Roger Scruton se propôs a entrar mais em temas do dia a dia da sociedade britânica, enquanto Oakeshott evitou fazê-lo, atendo-se mais ao campo denominado “Filosofia Política”. O olhar de Oakeshott é mais panorâmico, mas suas proposições não são menos relevantes para pensarmos a situação do mundo atual. Aliás, como os pesquisadores do Labô já haviam notado, são mesmo muito pertinentes.
O evento em Oxford indica justamente isso, com os temas das quatro palestras tratando exclusivamente de dilemas pulsantes de nosso tempo. Em termos de notoriedade, é possível argumentar que Ayaan Hirsi Ali seja a mais conhecida dos quatro palestrantes. Ela ganhou destaque internacional no início dos anos 2000, quando lançou seu livro “Infiel” e atuou junto do movimento dos “Novos Ateus” na luta contra o abuso de poder e violência cometidas em nome de religiões. Liderando o movimento estavam outros nomes de peso: Richard Dawkins, Christopher Hitchens, Daniel Dennett e Sam Harris.
Relativismo moral e a realidade feminina
Ayaan é uma das principais vozes denunciando práticas religiosas tidas como inaceitáveis no Ocidente, como o casamento forçado, casamento infantil, mutilação genitália feminina e o assassinato por honra. Nascida na Somália em uma família muçulmana, ela viveu na pele algumas dessas práticas. Ao longo da juventude morou em países da África e do Oriente Médio, e aos 23 anos conseguiu asilo na Holanda, onde, alguns anos depois, passou a atuar como membro do Parlamento após deixar de professar a fé islâmica.
Além de ter o dom da palavra, a experiência de vida de Ayaan a possibilita tratar dos problemas relacionados ao fundamentalismo islâmico sem cair numa visão xenofóbica. Sua trajetória é, afinal, exemplo da importância do acolhimento de imigrantes refugiados.
A palestra que deu para a Oakeshott Lectures de Oxford tem como título: ‘Valores irreconciliáveis: imigração, Islamismo e o Ocidente’ (Irreconcilable Values: immigration, Islamism and the West). Assim como fez em outras oportunidades, ela deixou claro que vê o aumento do número de mulçumanos na Europa como uma ameaça existencial, isso porque a maior parte deles segue defendendo o modelo fundamentalista da religião e se recusa a assimilar os valores liberais e seculares do Ocidente.
Ela descreve que sua missão é alertar o Ocidente para que não se deixe levar pela ilusão do discurso da tolerância quando está lidando com um adversário que não pensa da mesma forma. Ayaan explica que o islamismo político trabalha para avançar o “Dawah”, definido como a conquista ideológica do islã. O termo está associado à prática de pregar a religião para angariar novos convertidos, mas essa conversão não se limita a uma crença de ordem pessoal, busca, além disso, avançar com alterações na legislação dos países para que coincidam mais com a conduta tida como correta pela religião islâmica – ou seja, buscando normalizar justamente alguns dos costumes e práticas dos quais Ayaan fugiu quando conseguiu asilo na Holanda.
Entender a origem do que hoje chamamos de sociedade ocidental moderna foi um tema caro a Oakeshott, nesse sentido ele e Ayaan estão tratando de algo em comum. Em diversos de seus textos, o inglês apresenta os elementos formativos desse tipo de sociedade, e evidencia também o porquê ele entende que esse seja o modelo que mais garante a liberdade e dignidade dos indivíduos. Por outro lado, o filósofo também mostrou aquilo que lhe é desfavorável e concluiu que o dogmatismo seja uma das principais ameaças.
Vale notar que nem Ayaan nem Oakeshott defendem que a tradição ocidental seja perfeita ou livre de passagens negativas em sua história, mas, como o inglês coloca, isso não deveria “nos deter de reconhecer que muito do que temos não é um fardo a ser carregado ou um pesadelo que devemos dispensar, mas uma herança a ser aproveitada. E que um certo grau de desarranjo faz parte de toda conveniência real” (Political Education, 1951).
Talvez seja a dificuldade de lidar com a imperfeição do seu passado (principalmente os capítulos mais recentes ligados à Segunda Guerra Mundial, mas não só) que leve muitos políticos e intelectuais ocidentais a preferir se desvincular dele e a adotar um discurso de relativismo cultural e moral, no qual talvez possam se redimir ao atestar que não é possível dizer que uma cultura seja pior ou melhor do que outra, nem de forma geral nem mesmo em aspectos específicos, como os direitos das mulheres, por exemplo.
Assim, o Ocidente se acostumou a bradar uma visão unicamente positiva do multiculturalismo, mas na prática esse discurso não condiz com a experiência de Ayaan: sua condição de vida só melhorou quando ela passou a viver em sociedades onde havia prevalência da cultura ocidental, e por isso ela alerta para os perigos de que este modelo de sociedade chegue ao fim caso suas características culturais não sejam ativamente preservadas.
Para ela, a visão negativa do Ocidente que tantos intelectuais e ativistas sociais nutrem é um dos principais fatores que estão contribuindo para sua fragilização. Em suas palavras se trata de um “autodesprezo suicida”. Essa leitura não é particular de Ayaan, e para ilustrar isso, ela citou na apresentação o conceito “oikophobe”, cunhado por Roger Scruton para se referir ao aumento no Ocidente de um tipo de pessoa que repudia o legado dos antepassados, a herança que recebeu de sua cultura. A história de vida de Ayaan Hirsi Ali atesta o valor superior do modelo de sociedade ocidental moderna, portanto, para ela, não há lugar para o argumento relativista.
O dogma racionalista
Após anos em uma jornada que busca preservar o ambiente que a acolheu e onde ela pode prosperar, Ayaan concluiu que a única forma de fazer isto é através da valorização da cultura ocidental. Essa colocação é muito importante para distanciá-la de um outro grupo de intelectuais que deposita todas as suas esperanças na racionalidade humana e crê que se todos tiverem acesso a certos conhecimentos, naturalmente irão adotar valores liberais e seculares, uma vez que essa seria a única conclusão lógica possível.
Tanto Ayaan como Oakeshott notam que não apenas o dogmatismo religioso é uma ameaça às sociedades ocidentais, mas também o dogma racionalista. Para o filósofo, os Racionalistas “acham difícil acreditar que alguém que possa pensar honestamente e de forma clara vá chegar a conclusões diferentes da dele”, para eles, “todas as preferências racionais necessariamente coincidem” (Rationalism in Politics, 1947); para eles a racionalidade leva necessariamente à perfeição e à uniformidade.
A falha dessa crença que Oakeshott apontava no campo teórico é justamente o que Ayaan vê acontecer na prática: ao afirmar que as pessoas sejam principalmente um produto de suas circunstâncias materiais, o racionalista deixa em segundo plano o papel de forças como a religião e a cultura. Nesse ponto, Ayaan faz uma autocrítica e assume que ela mesma chegou a nutrir essas esperanças racionalistas, achando que seria possível que o modelo ocidental fosse “exportado” para outros países. Mas, a seu ver, a história recente provou o contrário. Nem o modelo ocidental pode ser facilmente exportado para outras regiões, nem devemos nutrir esperanças de assimilação de imigrantes que seguem afiliados a bases culturais diametralmente opostas aos valores ocidentais. O otimismo do racionalista se provou ingênuo.
Ayaan não está falando contra a racionalidade, mas apenas destacando que os valores liberais ocidentais possuem raízes não apenas em argumentos lógicos ou que sejam um resultado apenas de avanços nas condições de vida, mas também refletem os valores culturais e tradições históricas do Ocidente. Em outras palavras, a mentalidade que produziu as sociedades ocidentais não pode ser ensinada apenas como uma técnica, pois também tem um lado prático que está intimamente ligado à cultura ocidental.
Segundo essa lógica, a não valorização da tradição cultural sempre vai ameaçar a manutenção do tipo de sociedade que se constituiu a partir dela; ou, colocando de forma inversa, a valorização das bases culturais garante que certas características sociais se conservem. O grande erro da crença racionalista seria negar que a tradição cultural tenha um papel relevante nessa equação.
Para Ayaan, juntando “a indiferença que os liberais têm com a cultura, com o autodesprezo que ensinam às novas gerações é o que está nos tornando incapazes de barrar o domínio islâmico no Ocidente”. Sua fala para a Oakeshott Lectures mostra que somando a visão relativista com a crença na racionalidade, temos que a tradição cultural do Ocidente ou é desvalorizada, ou dispensada: por um lado o relativismo moral impossibilita dizer que a cultura ocidental seja superior em certos aspectos, por outro lado o racionalismo nega o papel de sustentáculo que a tradição cultural do Ocidente tem para produzir um tipo de sociedade que garante liberdades inexistentes em outros lugares.
Em suas colocações mais atuais, depois que deixou o movimento dos Novos Ateus e se converteu ao cristianismo, Ayaan indica que a chave para a preservação das sociedades ocidentais esteja na elevação dos valores morais e culturais que fundaram o Ocidente, destacando, dentre eles, os valores judaico-cristãos, ou seja, algo oposto tanto à proposição relativista quanto à racionalista. Tais colocações foram recebidas com certo desgosto por ex-colegas de ateísmo, como Richard Dawkins, as quais ela rebate dizendo que o discurso de desvalorização da tradição ocidental contribui para a fragilização desse modelo, o que pode acarretar consequências graves. As proposições de Oakeshott parecem assentir com Ayaan quando ele diz que “Ideais morais são sedimentos; eles só têm significância se estiverem sustentados em tradições sociais ou religiosas” (Rationalism in Politics, 1947), ou seja, se houver a intenção de preservar esse modelo de sociedade, será preciso nutrir as tradições que deram origem a ele.
Como dito no início, intelectuais que ganham notoriedade pública geralmente conseguem ilustrar os debates acadêmicos com situações da vida cotidiana, e penso que é isso que Ayaan faz, ao mostrar que a ameaça à sociedade ocidental moderna que Oakeshott tratou em termos mais abstratos, possui consequências palpáveis na vida de mulheres como ela. Quanto à resposta sobre como lidar com isso, Ayaan possui algumas sugestões, mas como se evidenciou, não há consenso.
Notas
- Palestra de Ayaan Hirsi Ali para a Oakeshott Lectures de 2024: https://www.youtube.com/watch?v=KLfwL2zyGnU ↩︎
- A proposta de estudar Michael Oakeshott dentro do Grupo de Filosofia Política veio do coordenador do núcleo, o Prof. Dr. Luiz Bueno, que entrou em contato com a obra do inglês por meio de Pondé. ↩︎

