
Agradecemos ao City Journal por autorizar a publicação deste artigo.
Tradução: Wodan Grambyel | Revisão: Renata Koraicho | © Labô
Texto Original: Decencies for Skpetics – publicado em City Journal (primavera de 1996)
Por trás do triunfo republicano no Congresso em 1994 estava o anseio por valores morais absolutos. Para a consciência conservadora, as virtudes elogiadas por nossas elites liberais são os vícios que minam a sociedade. O que o liberal vê como tolerância, o conservador vê como cumplicidade na transgressão; o que o liberal enxerga como compaixão pelos fracos e necessitados, o conservador enxerga como recompensa pelo comportamento irresponsável. Ilegitimidade, dependência do assistencialismo, divórcio e colapso conjugal – até mesmo o aumento do abuso de drogas e do crime –para o conservador parece ser exatamente aquilo que você deve esperar quando a rígida moralidade do dever dá lugar à moralidade sentimental do “cuidar”. Quando toda a tentativa de impor padrões é recebida como uma forma de discriminação, quando a única resposta ao fracasso social é multiplicar os direitos e reduzir as responsabilidades daqueles cujas ações são a causa dele, e quando o maior pecado é o pecado da desaprovação, então há alguma surpresa caso a sociedade comece a desmoronar? Liberais podem bem lamentar a catástrofe social dos centros urbanos. Mas se toda a tentativa de dizer a verdade sobre isso é condenada como racista, sexista ou simplesmente crítica, como a situação pode ser modificada?
Há uma tendência entre os conservadores americanos de culpar não apenas os liberais pela nossa condição atual, mas também a filosofia cética e secular do Iluminismo, da qual o liberalismo moderno descende. Na visão deles, o problema surge de duas fontes: primeiro, o questionamento constante das crenças e autoridades estabelecidas, até o ponto em que nada faz sentido – nem mesmo o próprio questionar. Segundo, a ênfase nos direitos: como se a grande tarefa da vida social se resumisse a reivindicações contra os outros, pelos quais nenhum pagamento precisa ser feito. A combinação dessas ideias leva a um tipo de niilismo. Se a vida social é uma questão de direitos, então deve haver alguma autoridade cuja função seja impô-los. Mas se toda autoridade é digna de suspeita, então esta também é. Nos foi colocado um caminho que tem a anarquia como seu único destino.
Muitos conservadores, portanto, sugerem que devemos repudiar o Iluminismo e reafirmar aquilo contra o que ele se levantou: a religião organizada. Este é o fardo dos novos jornais conservadores, como Crisis e First Things; e a mensagem é ecoada por publicações antigas e outrora céticas como Commentary e The Public Interest. Não é difícil simpatizar. A crença religiosa preenche nosso mundo com uma autoridade que não pode ser questionada e dela fluem todos os nossos deveres. Nenhum outro dispositivo jamais ocorreu a raça humana para melhor reprimir os apetites egoístas e a transmissão de ideias morais.
A razão humana, na qual o Iluminismo depositou todas as suas esperanças, mostrou-se singularmente confusa em suas tentativas de encontrar uma substituta. Kant tentou derivar toda a moralidade do Imperativo Categórico, o qual me diz para agir apenas pela máxima que eu posso querer como lei universal. Mas o magnífico sistema de Kant eleva o dever moral a tal ponto de abstração que parece libertar-se do mundo das tentações reais e flutuar serenamente na estratosfera intelectual. Mesmo que seja verdade que eu deva obedecer ao Imperativo Categórico, isso não me fornece o pão de cada dia que revigora o sentimento moral enquanto abro caminho em meio a uma multidão de estranhos egoístas. A moral kantiana é muito fria, muito racional, muito desligada das emoções conflitantes sobre as quais pretende legislar. De fato, pode haver quem viva por ela, mas não são as pessoas que costumam causar a desordem social da qual os conservadores se queixam. Para a massa da humanidade, os impulsos ruins devem ser bloqueados por algum medo compensatório. E de onde vem esse medo, senão de uma religião?
Ainda assim, há algo de desanimador na busca de uma solução religiosa para os problemas de uma sociedade secular. Com muita frequência, a busca é conduzida em um espírito de desespero por pessoas que estão tão infectadas pelo niilismo circundante quanto aquelas cujo comportamento desejam corrigir. A mensagem delas é simples: “Deus está morto – mas não espalhe por aí”. Tais palavras podem ser sussurradas entre amigos, mas não transmitidas à multidão. É verdade que Disraeli, como muitos conservadores do século XIX, combinaram ceticismo pessoal com o endosso público da igreja estabelecida. Mas ele viveu em um tempo em que a religião tinha tal vitalidade que a opinião pública ainda se chocava com aqueles, como Nietszche, que protestavam contra seu poder. Desde aquela época, muitas pessoas ouviram falar da morte de Deus, e muitas pessoas construíram um império de desejos sobre esse rumor infundado. O gênio do ceticismo não pode ser reaprisionado na lâmpada.
Além disso, como todos os conservadores sabem, o instinto religioso é uma força muito vasta e profunda para ser invocada das profundezas para onde se retirou sem, ao mesmo tempo, comprometer uma série de conquistas preciosas – a própria liberdade religiosa sendo uma delas. Aqueles que clamam por um renascimento religioso não são, via de regra, galvanizados por imagens das Cruzadas, da Inquisição ou da queima de hereges. O único renascimento religioso que remodela a sociedade moderna – o fundamentalismo islâmico – tem tanto apelo para um conservador ocidental quanto uma visita de Gengis Khan. De fato, a religião estimada pela consciência conservadora é precisamente uma religião que perdeu sua força vital e se tornou algo mais silencioso, mais rotineiro, menos abrangente em suas exigências do que seria típico de uma fé nova, recém-descoberta. É uma religião tipificada pelo Cristianismo e pelo Judaísmo em seus últimos dias, temperada pela necessária tolerância da vida urbana e nutrida pelas decências ordinárias de uma comunidade cumpridora da lei.
Como muitos conservadores ingleses, olho para trás com nostalgia da herança cristã que me foi passada através da igreja e da escola. A religião que absorvi fazia pouca distinção entre a lei de Deus e a lei da Inglaterra. Ela se referia à paixão de Cristo apenas para lembrar que o lábio superior rígido[1] tem um precedente impecável. Preenchia meus pensamentos com histórias e parábolas do evangelho, cuja interpretação padrão coincidia com o código de honra dos escoteiros. Ensinou-me que a fé era uma aquisição útil, mas não para se exibir ou com a qual envergonhar os vizinhos. A religião é boa em seu lugar, mas não deve ser imposta aos outros. Além disso, a fé é honesta apenas quando escolhida livremente, e para um inglês a honestidade é a melhor política.
Foram 2.000 anos de história que reduziram o cristianismo a esse gentil complemento da ordem legal – uma história na qual o Iluminismo desempenhou seu papel especial. Imperceptivelmente, embora não sem convulsões públicas, a religião recuou para a esfera privada. Como a monarquia inglesa, tornara-se um assunto de família, a ser mencionado em público apenas em termos vagos e cuidadosos – como os pais de alguém. Era estimada como uma marca de respeitabilidade, em vez de uma expressão de fé. Você se sentia seguro com outros cristãos, não porque vocês permanecessem juntos na luz do esplendor de Deus (embora você estivesse preparado para admitir que algo tão embaraçoso poderia ser verdade), mas porque os cristãos adotaram um conjunto comum de diretrizes, cujo princípio governante era a decência. Os judeus também se saiam bem – ao menos, você poderia fazer negócios com eles, embora às vezes com uma consciência pesada sobre o passado. Como o cristianismo inglês, a religião judaica parecia ser um assunto de família e traduzia-se nos mesmos padrões de comportamento público. Uma sociedade judaico-cristã era aquela em que a boa conduta dos outros podia ser dada como certa, em que ninguém se intrometeria na sua vida privada a não ser por convite, e na qual aqueles que não participavam do jogo eram tratados com discrição, mas firmeza, pelo Diretor Invisível.
A filosofia política do Iluminismo fez um grande espetáculo de suas origens antigas. Para pensadores como Montesquieu e Rousseau, como para Maquiavel, a tarefa era redescobrir as virtudes romanas e resgatar a sociedade das garras da Igreja Cristã. Mas este mesmo projeto é cristão. Os medievais também se engajaram nisso, tentando encapsular em um código civil a injunção uma vez expressa por Cristo, de que deveríamos dar a Deus o que é de Deus, mas a César o que é de César. De fato, o cristianismo é uma exceção entre as religiões, ao impor o dever religioso de construir uma ordem civil na qual a religião não intervém: uma ordem na qual a consciência é livre e a segurança pública é confiada a uma lei imparcial e secular.
O resultado inevitável disso é que a religião, sem o sonoro endosso público de sua juventude, gradualmente diminuiu. E então, tarde demais, percebemos que, depois de tudo, o Estado puramente secular é impraticável; que a religião, acuada para a esfera privada, se recolhe e morre; e que sem religião, a lei e a moralidade perdem sua autoridade.
Como devemos reagir a essa reviravolta potencialmente trágica? A invocação conservadora da religião é em si uma reação iluminista. Pois o que é invocado não é a religião, em todo o seu absoluto cru e abrangente, mas a imagem da religião, preservada em um aspic[2] de um Estado governado por leis. Nos grandes anos da expansão ocidental, a religião foi uma influência civilizatória pela razão de ter se aliado à civilização e reconhecido o Estado de Direito secular como uma de suas próprias conquistas. Essa era sua força e também sua fraqueza. O homem civilizado havia construído uma casa que não precisava de fogo ardente para aquecê-la.
Mas é difícil abafar as chamas da fé e ainda mantê-las acesas. Em vez de tremer de frio, o homem moderno preferiu incendiar a casa e dançar por um instante na conflagração final. Isso explica, acredito, a grande tragédia que se seguiu quando a Europa despertou para sua perda de fé. Pois a vida moderna – a vida entre estranhos – é uma questão solitária e dificilmente sustentável na ausência de fé. Em tais condições, aqueles que oferecem substitutos, em que a negação de Deus substitui a crença nele, ganham uma audiência que não tem relação com a razoabilidade de sua mensagem. Olhe para os dois grandes crimes de nosso século – nazismo e comunismo – e você verá o que acontece quando uma religião substituta irrompe no mundo, destemperada pela crença no julgamento de Deus. Nunca antes tal destruição, ou tal desprezo pela vida humana, visitou nosso planeta.
O Iluminismo lançou dúvidas sobre todas as doutrinas da Igreja, e a ciência moderna deu continuidade ao trabalho de desencantamento. O Cristianismo tem sido especialmente vulnerável nesse confronto, por conta de sua ambição metafísica. A maioria das religiões sufoca nossas questões metafísicas com mitos – tais como a maravilhosa história da criação e queda que abre a Bíblia Hebraica. O Cristianismo responde com as palavras inaugurais de São João: no princípio era o verbo, o Logos, a suprema explicação que encerra toda indagação e destrói todos os mitos. A nova religião era fruto do monoteísmo judaico e da filosofia grega. Ofereceu-se para explicar o mundo, seu criador, o curso da história e o fim último do homem, em termos de uma teologia completamente abrangente. Estava fadada a se ver, com o tempo, competindo com a ciência, e perdeu a disputa.
Mas a atitude religiosa pode existir na ausência do suporte doutrinário e ao mesmo tempo fazer apenas as mais vagas reivindicações metafísicas. Escritores judeus como Leon Kass apontaram que sua religião tradicional é encapsulada mais pela execução precisa do ritual sagrado do que o endosso consciente de uma doutrina. E há outros exemplos mais reveladores. A religião tradicional chinesa dá grande ênfase aos rituais, de cuja performance exata supostamente beneficia nossos ancestrais. Mas faz poucas ou nenhuma reivindicação doutrinária e praticamente não possui teologia. Sua concepção fundamental não é fé ou doutrina, mas o “decoro” – usam o termo li, cujo caractere escrito é composto de dois sinais separados, um significando “ser espiritual” e o outro “um vaso de sacrifício”. O chinês antigo não continha nenhuma palavra para religião, mas falava, no lugar disso, em “ensinamentos”, dos quais havia três: budismo, confucionismo e taoísmo, nenhum dos quais oferece qualquer crença clara em uma divindade transcendental. Em vez de se aventurar no reino da teologia, os chineses se contentaram com uma piedade despretensiosa, na qual o respeito pelos ancestrais era a ideia central.
O termo “piedade” nos foi legado pelos romanos, que ao reconhecer uma multidão de deuses, insinuavam que não era de grande importância que você realmente acreditasse neles. Naqueles dias, você poderia até se tornar um deus, por meios tão tortuosos quanto os empregados para obter um título mundano. É difícil acreditar que o romano médio olhasse os deuses com muita seriedade quando seu imperador poderia arbitrariamente declarar-se a si próprio como um deles. Mas isso não removia o respeito pelas coisas sagradas das quais, para a mente romana, a ordem civil dependia. Ele ainda era necessário para invocar os lares et penates (deuses domésticos), para tratar a idade avançada com reverência e a nova vida com admiração. Ainda era necessário para consagrar os acontecimentos mais importantes – nascimento, casamento, morte e pertencimento a uma comunidade – como algo mais elevado que o próprio desejo individual. As obrigações sociais emergiam não apenas de contratos, mas de votos solenes, e um tipo de jurisdição eterna estava implícita nisso – como no destino do “piedoso Enéias”, quando ele partiu para sempre das chamas de Tróia. O herói de Virgílio havia jurado perpetuar sua raça e cultura fundando a cidade de Roma; e sua piedade consiste na incapacidade de esquecer esse voto, que o acompanha em suas viagens, anulando todo desejo que guerreia contra ele.
Se eu fosse arriscar uma definição dessa piedade humana, a descreveria como uma atitude que leva a geração presente a se submeter à última e a assumir a responsabilidade pela próxima. A verdadeira atitude religiosa é revelada menos pela busca de crenças e doutrinas do que pela rotina diária do dever, na qual o ritual e a cerimônia desempenham um papel real, mas pouco exigente. Revela-se no hábito de emoldurar os acontecimentos importantes, de erguê-los acima de nós mesmos e descobrir o aval oculto das gerações que já se foram, e a promessa oculta das que virão.
O exemplo romano é relevante para nós, que estamos rodeados da mesma multiplicidade de ídolos e sujeitos à mesma descrença em sua divindade. Ainda é possível para nós, nas condições modernas, cultivar o hábito da piedade, embora sejamos céticos em relação a doutrina religiosa. A mudança na educação que deveríamos lamentar mais do que qualquer outra não é a destruição da instrução religiosa, das orações nas escolas, ou do canto de hinos – ainda que essa destruição tenha sido um triunfo singular do míope dogmatismo liberal. Deveríamos muito mais lamentar pela quase total abolição das línguas e literatura clássicas. Pois foram Horácio, Virgílio, Cícero e Homero quem ensinaram aos nossos ancestrais o que a piedade significa e o que ainda pode significar para aqueles que vivem sem os pronunciamentos claros de uma fé comum.
Como os chineses e os romanos reconheceram, a piedade envolve o respeito pelos mortos. A pessoa piedosa é aquela que reconhece as gerações que vieram antes, que não pisa em seus restos mortais nem destrói suas conquistas. É esse respeito pelos mortos que inspira a reverência com a qual adentramos os lugares sagrados ou celebramos momentos sagrados. Ele se manifesta nas pequenas coisas – no costume e na cerimônia. Também se manifesta nas grandes coisas: no senso de que certas ações não devem ser feitas, não devem ser pensadas, não devem ser faladas, sem perigo espiritual. Jamais poderíamos compreender a proibição à obscenidade e à indecência, por exemplo, se pensássemos nelas em termos meramente liberais – como exercícios do direito à liberdade de expressão, a ser elogiado ou condenado de acordo com os bons ou maus efeitos sobre aqueles expostos a eles. O objetivo da pornografia é dessacralizar o ato sexual, desvinculá-lo do amor e do compromisso, e colocá-lo à venda como uma mercadoria. A continuidade da sociedade humana não pode mais ser garantida quando as pessoas veem o sexo dessa maneira. A proibição surge do fato de notarmos na pornografia uma ameaça ao mais profundo interesse das outras gerações. E tal ameaça é o que entendemos, ou deveríamos entender, como sacrilégio. É a piedade que nos causa aversão quando, nos filmes repugnantes de Quentin Tarantino, uma pessoa leva um tiro no rosto enquanto os culpados desprezíveis conversam ociosamente. Pois o propósito de uma tal imagem é aniquilar o rosto, profanar aquilo que sempre deve se destacar da ordem material, se quisermos saber seu significado.
O principal dano causado pelo liberalismo não foi intelectual – pois a perda da crença religiosa dificilmente poderia ser evitada, uma vez que o hábito de questionar crescesse entre nós. O principal dano veio do escárnio implacável das proibições e decências comuns e da defesa estridente de “alternativas” que pessoas comuns são incapazes de reconhecer em seus corações. O legado moral do liberalismo é tipificado pelo satanismo da Margem Esquerda de Paris[3], pelo egoísmo do grupo recreativo do campus californiano e pela complacência aristocrática da New York Review of Books. Esse legado moral poderia ser descartado amanhã se não houvesse tal vasto interesse em preservá-lo. O sarcasmo liberal é a ideologia de uma classe dominante – a classe dos “conselheiros” que habitam as universidades, as comissões governamentais e as burocracias estatais, e cujo controle sobre os canais de comunicação garante que sua futilidade nunca será publicamente conhecida.
Seria um grande erro supor que a crença religiosa provê o único antídoto para essa ideologia. Seja lá qual for o estado de nossas convicções religiosas, as pessoas estão inconscientemente cientes de que os costumes da sociedade contêm mais sabedoria do que poderia emergir em uma única geração. Elas podem lutar contra essa consciência, como fazem os liberais. Mas é muito mais razoável, muito mais agradável, aceitá-la. A decência e as hesitações que antes cercavam o sexo, por exemplo, não são determinações arbitrárias de uma classe dominante que partiu. Elas são a voz coletiva dos mortos, alertando-nos para um dever que nunca poderíamos esperar entender apenas por meio de nossa própria existência, e cujo questionamento é o cúmulo da loucura. A América moderna questionou esse dever e agora está pagando um alto preço por sua presunção. Mesmo que o gênio tenha saído da lâmpada e ninguém tenha uma ideia clara de como ele poderá ser persuadido a entrar outra vez, é certamente apenas uma fé ingênua na engenhosidade humana que levaria alguém a pensar que a liberação sexual foi algo além de um desastre.
Aqueles que esperam salvaguardar a “piedade natural” por meio de um retorno à fé religiosa põem em risco aquilo que valorizam. Pois eles tornam a piedade tão irracional quanto as crenças às quais a atribuem. Mas a piedade não é irracional de forma alguma. É a voz que nos diz que os bens da sociedade são herdados e jamais poderiam ser redescobertos pela geração que os rejeita totalmente. O verdadeiro conservador deve estar preparado para reconhecer que seu público vive em tempos modernos. A crença religiosa é um bônus que não podemos assumir. Mas a piedade é uma necessidade social; fala de deveres que estão acima e além de nossos desejos e contratos. Se as pessoas deixarem de reconhecer tais deveres, a sociedade desmoronará no “pó e na poeira da individualidade”, como Burke a descreveu.
Conservadores deveriam, portanto, ser gentis com seus colegas descrentes. Pode ser certo esperar por um reavivamento religioso, mas não trabalhar por isso. A tarefa conservadora no mundo moderno é fazer escárnio dos escarnecedores, ridicularizar o preconceito contra tudo aquilo que Burke prometeu sobre a rubrica de “preconceito” e apoiar as instituições nas quais a piedade nasce. O que, na vida moderna, carrega o espírito da história? A que escola, clube ou colégio devem pertencer os nossos filhos, para que adquiram a profunda consciência de que o mundo não nasceu com eles e que a sua felicidade depende da aprovação dos que já não vivem?
Os conservadores na América estão começando a enfrentar essas questões, quer as concebam em termos religiosos, quer não. Eles estão começando a reconhecer o dano causado ao seu país pelo preconceito liberal em favor dos vivos e de seus “direitos”. Eles sabem que o crime, as drogas, a ilegitimidade e o divórcio têm uma causa: a incapacidade de reconhecer obrigações mais fortes do que o desejo.
Mas eles também sabem que as velhas religiões não tomarão uma posição efetiva contra essas coisas. Em vez de recuar face ao Iluminismo, portanto, os conservadores deveriam enfrentar as ideias liberais em seu próprio terreno. A questão real não é “como você justifica a autoridade?” mas “como você justifica os direitos?”. Talvez não haja direitos; e talvez toda a ideia de igualdade seja uma ilusão. Se for assim, então a suposição liberal de superioridade moral e intelectual é falsa. Estamos diante de um confronto não entre esclarecimento e preconceito, mas entre dois tipos de preconceito. A política conservadora neste encontro deve ser apoiar o preconceito das pessoas comuns. Os liberais desprezarão tal política, uma vez que os preconceitos das pessoas esclarecidas nunca parecem preconceito para aquelas que os sustentam. Mas o desprezo dos liberais é algo que os conservadores devem aprender a suportar.
Notas
[1] A expressão “lábio superior rígido” (stiff upper lip no original) é comumente usada entre os britânicos para se referir a uma postura resoluta e corajosa diante da adversidade, ameaça ou desafio. O tremor do lábio superior é uma reação humana natural ao medo intenso ou ao pânico; por essa razão, o seu oposto denota o controle das emoções. (N.T.).
[2] Aspic ou geleia de carne é um tipo de gelatina geralmente colocada em um molde e que envolve outros ingredientes que parecem flutuar em seu interior. O termo gastronômico é usado como figura de linguagem para se referir a algo do passado que foi preservado com a mesma aparência, porém que se tornou ultrapassado, sem sentido. (N.T.).
[3] A chamada Margem Esquerda é uma região que corresponde à parte sul da cidade de Paris, dividida pelo Rio Sena em duas partes: a margem norte, à direita (Rive Droit), e a sul, à esquerda (Rive Gauche). Célebre por sua reputação literária e boêmia, tornou-se um ícone dos movimentos artísticos e intelectuais vanguardistas da França.
Foto: Pete Helme (rogerscruton.com)
