Teologia Cristã e Religião Contemporânea

Evangélicos progressistas e desigrejados no evangelicalismo brasileiro

Alguns dos fenômenos religiosos que vêm chamando atenção de pesquisadores que se debruçam sobre o tema “evangelicalismo brasileiro” são os evangélicos progressistas – com ênfase para o grupo dos desigrejados, também conhecidos pela denominação de igrejas orgânicas. Vale destacar que alguns desigrejados podem se considerar parte do segmento “evangelicalismo progressista”, entretanto, nem todo evangélico que segue a linha progressista se considera parte dos desigrejados/igrejas orgânicas. Ao analisar esse grupo em especial, não dá para deixar de lado o meio digital, com as redes sociais sendo o ambiente mais fértil de comunicação, difusão de conhecimentos e interações. As figuras do líder e dos coletivos são também algumas das características marcantes desse grupo. E esse é um tema que vem sendo estudado pelo grupo de pesquisa Teologia Cristã e Religião Contemporânea no LABÔ.

Quem são os evangélicos progressistas? 

O papel dos evangélicos na sociedade brasileira pode variar bastante, por serem um grupo de muitas facetas. Entre eles, os chamados progressistas – nosso objeto de pesquisa – são um dos menos comentados, por não terem presença nas grandes mídias. Uma das lideranças desse movimento mais notável na atualidade é o pastor Henrique Vieira, hoje deputado federal pelo Rio de Janeiro, filiado ao PSOL. 

“Nem todo evangélico é conservador”, tema de um vídeo feito por Vieira há quase 5 anos na Mídia NINJA, teve boa repercussão nas redes sociais. A seguir um pequeno trecho do texto de Vieira:

Existem por aí uns coronéis da fé, mercadores da religião, que lucram e enriquecem às custas do sofrimento do povo. Existem por aí uns fiscalizadores dos corpos. Mais apegados a uma doutrina, do que ao amor e à dignidade humana.

Os evangélicos progressistas buscam ressignificar sua religiosidade e leitura do Evangelho, tirando toda a roupagem fundamentalista impregnada nas interpretações de grupos conservadores que são maioria no meio político.

Além do pastor Henrique Vieira, temos também o pastor Ed René Kivitz, que, especialmente durante o governo Bolsonaro, concedeu muitas entrevistas para jornais e participou de podcasts criticando o discurso de ódio e negacionismo, sobretudo quando esse discurso é vinculado à Bíblia. Atualmente, tem um quadro em seu canal no YouTube chamado Conversas Pastorais, com a proposta de desconstruir a visão de um pastor detentor da verdade, ou mesmo visto como uma figura autoritária, para uma imagem humanitária, de uma pessoa comum, com vulnerabilidades e que nem sempre terá todas as respostas. Essa também é umas das características das lideranças da linha progressista.

Espiritualidade como experiência humana: Diálogos com pautas sociais. 

No que diz respeito ao que é pregado, permanece no “lugar comum da comunidade cristã”: Jesus defendia os pobres e oprimidos, andava ao lado das mulheres e daqueles que nada possuem, era contra a violência e qualquer manifestação de ódio, até com aqueles que eram seus inimigos. 

A fundamentação teológica dos evangélicos progressistas está ligada à teologia da libertação e a teologias contextuais. A contribuição crítica dessas teologias implica sinalizar não apenas a libertação espiritual, mas também a libertação social, política e econômica. Sentem a necessidade de debater pautas sociais ligadas ao gênero, racismo e meio ambiente. Procuram tratar de temas que são considerados tabus como sexo e sexualidade.

A visão que possuem do ser humano é a de um ser integral, contendo várias camadas. Não debater pautas sociais, na visão desse grupo, é ser omisso com aqueles que sofrem agressões ou morrem por conta da interpretação que alguns segmentos têm do Evangelho. 

Questionam a ideia de pecado, de um Deus punitivo e que até mesmo justifica a violência em nome do Evangelho. Defendem a imagem de um Jesus negro e não branco. Uma Bíblia negra embranquecida ao longo da história. Se consideram próximos das teorias defendidas pelo protestantismo histórico ligado a Martinho Lutero e incluindo figuras célebres como Martin Luther King e Dietrich Bonhoeffer. 

Existem coletivos ligados aos evangélicos progressistas que são muito ativos nas redes sociais, como o Esperançar e o O reino em pessoa [2], que fazem debates de pautas sociais, produzem materiais no combate às fake news e também rebateram as falas do ex-presidente que promoviam o discurso de ódio e o negacionismo.

Os desigrejados/Igrejas orgânicas 

Desigrejado é um neologismo criado para nomear aqueles que abandonaram suas igrejas, mas não deixaram de crer em Cristo, continuaram com as práticas do Evangelho. Esse grupo começou a chamar atenção das comunidades evangélicas, principalmente após uma pesquisa feita pelo IBGE em meados de 2010, na qual quatro milhões de evangélicos se declararam “evangélicos sem vínculos institucionais”. Desde então, começaram a surgir artigos e pesquisas sobre o tema para buscar compreender as razões que fizeram e ainda fazem as pessoas abandonarem suas igrejas.

Esses grupos de desigrejados são contra a forma de articulação do cristianismo institucional, defendendo um cristianismo “primitivo”. Para eles, a Bíblia e a figura de Jesus não impõem locais de adoração, não há templos e nem hierarquias. O cristianismo é uma religião que surge no Império Romano sem vínculos institucionais. Além dessas motivações, temos também denúncias de traumas religiosos, ligados a abuso sexual, promessas não cumpridas em nome de Deus e imposições de altas ofertas.

Os desigrejados costumam utilizar a passagem bíblica do Evangelho de Mateus 18.20: “Pois onde se reunirem dois ou três em meu nome, ali eu estou no meio deles.” Esse versículo é usado como uma das formas de legitimar o movimento. Para esse grupo, a igreja está em todo lugar, com uma frase bastante falada pelo Pastor Caio Fábio: “A igreja sou eu, é você, somos nós”. 

Caio Fábio: Caminho da Graça

Uma das principais lideranças dos desigrejados/igrejas orgânicas no Brasil é o pastor Caio Fábio, que possui uma longa trajetória na história do evangelicalismo brasileiro. O capítulo III da dissertação de mestrado de Livan Chiroma contém a jornada de Caio Fábio antes e depois do Caminho da Graça. Leitura recomendada para quem tiver interesse no tema.

O Caminho da Graça surge mais ou menos em meados de 2002, em formato de blog, e depois vai para as redes sociais, principalmente YouTube e Facebook. O Papo da Graça acontece diariamente, com a proposta de estudar o Evangelho, sem estar ligado a uma instituição. Na atualidade, o canal do YouTube de Caio Fábio conta com um bom número de visualizações diariamente. A seguir, duas das falas do pastor que elucidam a essência do Caminho da Graça: “Aqui ninguém se mete na vida de ninguém”; e “crer sem pertencer”. 

Além do “Papo da Graça”, o grupo tem encontros presenciais para os interessados, que acontecem dentro de clubes, salões ou escolas com o nome de “Estações”. Tem a proposta de um modelo alternativo, “uma igreja sem cara de igreja”, com licença poética para tocar MPB e até mesmo rock. Nesses encontros, é proposto um estudo sobre o Evangelho que pode dialogar com uma teologia mais existencialista.

Principais desafios enfrentados pelos evangélicos progressistas na atualidade

Nos grupos de direita, os evangélicos progressistas e desigrejados são vistos como ativistas políticos, principalmente a figura de seus líderes. Já os grupos de esquerda, em geral, possuem uma certa hostilidade e preconceito contra os evangélicos, mesmo aqueles que se declaram progressistas. Um dos episódios do podcast “O reino em pessoa” conta com a participação do pastor Henrique Vieira, que afirma que a maioria da população brasileira é evangélica e que excluir os evangélicos é deixar de dialogar com o povo. Em sua fala, Vieira traz o questionamento sobre o que é ser evangélico no Brasil. 

Os evangélicos progressistas trazem à tona uma visão que ainda é pouco conhecida pelas pessoas. Não existe apenas um cristianismo e sim vários cristianismos coexistindo. E todas essas facetas do cristianismo devem ser levadas em consideração.  

Referências

ALENCAR, de Gustav. Grupos protestantes e engajamento social: Uma análise dos discursos e ações de coletivos e evangélicos progressistas.Rio de Janeiro: Religião e sociedade, 2019.

CAMPOS, Idauro. Desigrejados – Teoria, história e contradições do niilismo eclesiástico. Rio de Janeiro: bvbooks, 2017.

CHIROMA, Livan.Igrejas orgânicas – Mobilidade e reconfiguração religiosa: O caso do “caminho da graça”. São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo, 2014.

TETZNER, Welmer, Gerson e NERBAS, Moisés, Paulo. Os desigrejados: Um estudo do fenômeno e da influência da igreja no aumento de cristões sem vínculo institucional. Revista da Igreja Luterana, Volume 82, 2021

Henrique Vieira – Evangélicos progressistas #44. [Locução de]: Pamela Campos, Fillipe Gibran, Walter Pinheiro. Reino em pessoa, 10 jan.2022. Podcast. Disponível em: https://open.spotify.com/episode/2irVjVE8eGs9kfDfsP54tE?si=5b46519a6aa948ee

Henrique Vieira | NEM TODO EVANGÉLICO É CONSERVADOR. 1 vídeo (3 min e 31 seg). Publicado pelo canal Mídia NINJA. Português. Disponível em: https://youtu.be/Nn7ZPUKn3mI

[1] Conteúdos produzidos pelo coletivo Esperançar nas mídias sociais. Disponível em: https://linktr.ee/coletivoesperancar
Canal no Youtube: O reino em pessoa. Disponível em: https://www.youtube.com/c/OReinoemPessoa/featured

Imagem: fotograma extraído de vídeo do canal “O Reino em Pessoa”, com Walter Pinheiro e Filipe Gibran

Sobre o autor

Maria Larissa Lima Silva

Licenciada em História, Pós-graduanda em Psicopedagogia Institucional e Clínica pela Universidade Cruzeiro do Sul, polo de São Miguel Paulista. Pesquisadora do grupo de Teologia Cristã e Contemporânea, do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.