Presidente Luiz Inácio Lula da Silva após subir a rampa do Palácio do Planalto com representantes da sociedade civil
Crédito: Daniel Teixeira / Estadão Conteúdo
Imagem original: https://tinyurl.com/2b68ymab
A crise é, sobretudo, estética. Segundo o Museu de Memes [1], a origem desse meme remete à postagem de André Dahmer no Twitter em março de 2016. O autor à época se manifestava, inconformado com a notícia de que um artista holandês teria acusado a Fiesp de plágio em razão do pato amarelo gigante exibido na Avenida Paulista. A postagem dá início a uma série de outras que têm como alvo principal a crítica ao mau gosto estético presente sobretudo nos elementos constitutivos da política desenvolvida ao longo dos anos do governo Bolsonaro. Segundo a definição oferecida pelo museu, isso inclui “exagero nas cores, a combinação deslocada de elementos diferentes, as montagens de qualidade secundária, a cópia mal feita, imagens pixeladas, o exagero emocional e o sensacionalismo”. (A CRISE, sem data).
Quando então achávamos que a alternância de poder definida nas últimas eleições presidenciais resultaria no fim de um período extremamente polarizado na política, assistimos, já nos primeiros dias de 2023, à invasão do Palácio do Planalto e uma sucessão de cenas de vandalismo. Com essas imagens, tivemos a exibição heroica e patriótica de uma estética exagerada e ruidosa que investia contra o patrimônio público, representado pelos elementos arquitetônicos, obras de arte e objetos históricos que foram danificados.
O que a sucessão desses eventos nos vem comunicar? Que o está em evidência é uma disputa política que passa pela estetização orquestrada de elementos on e offline. E, além disso, que em torno dessas imagens estão em destaque identidades que vêm sendo construídas também com o apoio do visual. Não à toa, o meme “a crise é estética” nasce dentro desse campo da política em que o (mau) gosto é utilizado como estratégia de crítica e ironia contra o lado que está sendo atacado, fundamentalmente de orientação de direita. O julgamento entre o bom e o mau gosto contribui, nesse sentido, para destacar a diferença (o “nós” e os “outros”) que, como lembra Woodward (2014), é um dos marcadores da identidade.
A simbólica subida da rampa do Palácio do Planalto em 1º de janeiro de 2023, com representes de diversos segmentos da sociedade – entre reconhecidas lideranças e anônimos, mulheres, negros, indígenas, pessoas com deficiência – indicava que o atual governo seria também um governo pautado pela reivindicação das identidades progressistas. Isso veio a se concretizar, por exemplo, com a criação dos ministérios da Igualdade Racial, das Mulheres e dos Povos Indígenas.
A discussão sobre as identidades é historicamente significativa. Ganhou força com o surgimento dos novos movimentos sociais nos anos 1960, quando foi dada amplitude para questões que atravessavam o sujeito em sua constituição, para além das metanarrativas que prevaleceram no mundo até a primeira parte do século XX, tais como o iluminismo e o marxismo. Já em 1977, o coletivo norte-americano de mulheres negras e lésbicas Combahee River (CCR) cunha a expressão “política identitária”, com o intuito de demonstrar as limitações do socialismo revolucionário, que não levava em consideração diferenças de raça e sexo, uma vez que a “classe” seria mais importante. E, ainda, os movimentos negro e feminista também não reconheciam as particularidades das demandas das mulheres negras. Com isso, o coletivo apontava as limitações de categorias sociais totalizantes que não davam conta de determinadas demandas.
Haider (2019) mostra que o momento de surgimento do CCR é importante para compreendermos a identidade a partir das pressões liberais que a condicionam segundo seus valores individualistas, deixando de lado o princípio da coletividade. O empreendedor de si discutido por Foucault (2008) tem origem nos dispositivos de poder que separam e individualizam os sujeitos, seja na fábrica, na escola ou nos hospitais. Assim, o discurso liberal dá ênfase à politização de demandas pessoais em detrimento das coletividades. Se em princípio seria possível pensar as políticas de identidade sob a vertente plural, o que se observa é que “as identidades se tornam cada vez mais totalizantes e reducionistas” (HAIDER, 2019, p. 35). Daí, fazendo menção ao título do livro do autor, a identidade se torna uma armadilha, pois pode funcionar para minar o princípio coletivo em prol de individualidades.
Essa predominância dos valores liberais sobre as identidades ganha um elemento adicional com as plataformas digitais e o funcionamento dos algoritmos. Han (2018) aponta que o digital tem criado indivíduos que não conseguem partilhar o comum, e assim a fragmentação identitária acaba sendo um fenômeno do mundo contemporâneo. Mesmo nos discursos em que se sugere uma preocupação coletiva, há o interesse na capitalização das pautas com o uso de uma série de recursos como a simplificação de conceitos, a estetização das identidades e o “sequestro” de estéticas que geram maior tráfego digital. Um exemplo é a prática do blackfishing, em que mulheres brancas se apropriam da estética negra por meio de transformações corporais envolvendo bronzeamento, volume dos cabelos, preenchimento labial e outras técnicas a fim de ficarem mais parecidas com mulheres negras. Com isso, aproveitariam o impulsionamento existente nas redes sociais. Um dos muitos exemplos das “vulnerabilidades digitais” a que estão susceptíveis pessoas negras (JUNQUEIRA e BOTELHO-FRANCISCO, 2021).
Apontamos, então, aproximações que envolvem a permanência da relevância da discussão sobre as identidades políticas no mundo contemporâneo, tendo em vista elementos estéticos e ambientes midiáticos digitais. Com isso, pensamos que a crise é sim estética, mas também política e tecnológica.
No intuito de compartilhar os resultados da pesquisa de pós-doutorado em andamento no LABÔ, a proposta é seguirmos aqui no off-lattes com uma série de textos abordando identidades particulares dentro da perspectiva apresentada.
Referências
A CRISE é estética. Museu de memes, sem data. Disponível em: https://museudememes.com.br/collection/a-crise-e-estetica. Acesso em 05 mai. 2023.
FOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica (1979). São Paulo: Martins Fontes, 2008.
HAIDER, Asad. A armadilha da identidade: raça e classe nos dias de hoje. São Paulo: Veneta, 2019.
HAN, Byung-Chul. No enxame. Petrópolis: Vozes, 2018.
JUNQUEIRA, Antônio H.; BOTELHO-FRANCISCO, Rodrigo. Raça: dimensão interseccional das vulnerabilidades digitais. Contemporânea, v.19, n.3, 2021.
WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: SILVA, Tomaz Tadeuda. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. 15ª ed. Petrópolis RJ: Vozes, 2014.
[1] Projeto desenvolvido por uma equipe de pesquisadores em Comunicação (docentes, graduandos e pós-graduandos) da Universidade Federal Fluminense (UFF). Até maio de 2023, possuía 285 coleções de memes e 1320 pesquisas catalogadas. https://museudememes.com.br/