Núcleo de Filosofia Política

Falando bobagens sobre a pobreza global

Agradecemos à Liberty Fund, editora de Law and Liberty, por autorizar a publicação deste artigo.

Tradução: Lavínia Pena e Marcos Pena Jr | Revisão: Luiz Bueno e Flávia Sarinho | © Labô
Texto original: “Talking Bilge About Global Poverty” – publicado em lawliberty.org  (publicado em 17/11/2021)

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Nota do editor: Este artigo é parte de um simpósio sobre a oferta de Elon Musk para financiar o Programa Mundial de Alimentos da ONU.

O Império Britânico já foi descrito como uma assistência ao ar livre [1] para os filhos da aristocracia. O setor de ajuda é a contraparte moderna?

Segundo David Beasley, diretor do Programa Mundial de Alimentos da ONU, 42 milhões de pessoas irão morrer de fome “se não as alcançarmos” com US$ 6 bilhões da fortuna de Elon Musk que ele desafiou o bilionário a doar. “Não é complicado,” disse o Sr. Beasley.

Não é complicado alcançar 42 milhões de pessoas? Eu acho bastante complicado contatar alguém do meu banco, quanto mais 42 milhões de pessoas, e meus esforços nem sempre são bem-sucedidos. Obviamente, existe um tipo de pessoa que acredita que, quando você puxa uma alavanca econômica do alto, o resultado é exatamente o que você espera e deseja. Essas pessoas devem viver em um mundo sem consequências indesejadas, no qual seres humanos são vetores de forças cujas trajetórias podem ser calculadas com antecedência e, depois, deslocadas precisamente na direção desejada. Essas pessoas sofrem do que se pode chamar de ilusão tecnocrática.

Para começar, a cifra de 42 milhões de pessoas parece estranhamente exata. Como foi aferida e por que não é de 40 ou de 44 milhões? A falsa exatidão é tão ruim quanto qualquer outro tipo de erro e geralmente indica uma certa arrogância. US$ 143 por cabeça não me parece muito, de toda forma, mesmo na suposição absurda de que nenhum centavo desse valor seja despendido em custos administrativos, perdido para a burocracia corrupta, ou que nenhum erro honesto, mas sério, seja cometido em seu desembolso. Não há dúvida de que caridade privada é, ou pelo menos pode ser, menos ineficiente do que a ajuda governamental, mas o exame das contas de grandes instituições de caridade como a Oxfam sugere que o desperdício e a busca de renda pelos funcionários são endêmicos nelas – na verdade, essas organizações atraem caçadores de renda. O Império Britânico já foi descrito como uma assistência ao ar livre (isto é, previdência social antiquada) para os jovens filhos da aristocracia, e o setor de ajuda muitas vezes me parece a forma pela qual os jovens educados podem ver o mundo, ter salários livres de impostos e sentir que estão fazendo o bem ao mesmo tempo. Eles são falsos messias em série, que vão de uma situação péssima para outra e se tornam viciados na emoção de tudo isso.

Qual é a causa da fome? À parte as catástrofes de curto prazo, em que o alívio imediato claramente salva vidas, a fome de longo prazo geralmente tem causas políticas remediáveis (remediáveis, isto é, em abstrato, não necessariamente na prática). Essas causas podem, na verdade, ser agravadas pela ajuda externa, na medida em que reforçam as próprias políticas que tornaram essa assistência supostamente necessária em primeiro lugar.

Um homem que pensa que reduzir a fome em partes remotas do mundo evitará de alguma forma a insegurança global tem um entendimento da história e da natureza humanas que surpreende por sua ingenuidade.

O Sr. Beasley nos diz que, seja o que for que os US$ 6 bilhões possam fazer, vão (nem mesmo poderiam, ele enfatiza a palavra vão) evitar a instabilidade política mundial e a migração em massa. Esse é o absurdo mais abjeto. O conflito emergente entre a China e os Estados Unidos é causado pela fome? Os Palestinos podem ser miseráveis, mas não estão morrendo de fome. Existe a possibilidade concreta de um recrudescimento do conflito na Irlanda do Norte, onde o principal problema nutricional, um bem severo, é a obesidade. (Tão grande é a prevalência da obesidade na Grã-Bretanha que deu origem a algo chamado de a indústria da obesidade). É desnecessário enumerar todos os conflitos em andamento ou potenciais no mundo que nada têm a ver com fome. Um homem que pensa que reduzir a fome em partes remotas do mundo evitará de alguma forma a insegurança global tem um entendimento da história e da natureza humanas que surpreende por sua ingenuidade.

Nem mesmo é verdade que a fome ao ponto de causar mortes por inanição seja uma causa necessária ou suficiente da migração em massa e, portanto, que aliviá-la (o que, é claro, seria um bem inequívoco) terá qualquer efeito perceptível na migração em massa, ao menos naquela que agora preocupa os Estados Unidos, a União Europeia e a Grã-Bretanha. 

Os Latino-americanos que estão invadindo os Estados Unidos em números sem precedentes, sem dúvida, não são ricos, mas não estão passando fome. Eles estão fugindo da criminalidade em suas terras, na esperança de uma existência melhor nos Estados Unidos. As milhares de pessoas que se amontoam na Bielorrússia vieram do Oriente Médio e também não estão morrendo de fome. Os migrantes que cruzam o Canal da Mancha para chegar à Grã-Bretanha não estão desnutridos quando chegam. Na verdade, eles nem são os mais pobres dos pobres de seu próprio país pobre, pois frequentemente pagam somas consideráveis a traficantes de pessoas para ajudá-los em sua migração. 

Logo, o aumento da prosperidade na África poderia tanto aumentar a migração quanto diminuí-la, uma vez que mais indivíduos poderiam pagar contrabandistas de pessoas, pelo menos até que a África e a Europa se tornem economicamente mais iguais. Mas apenas Pollyanna esperaria estabilidade global como resultado quando isso acontecesse.

É muito bom que o Sr. Musk doe parte de sua imensa riqueza, se ela não for desperdiçada. Mas não vamos falar bobagem.

[1] O termo original em inglês é “Outdoor relief”, aqui traduzido como “assistência ao ar livre”. Dentre os diversos desdobramentos da “Poor law” (que objetivava prover bem-estar social à população britânica) de 1601 na Grã-Bretanha está o fenômeno “Outdoor relief” (assistência ao ar livre). Essa era uma forma de assistência concedida aos necessitados na forma de dinheiro, comida, roupas ou outros bens sem que os beneficiários precisassem entrar em alguma instituição, diferentemente de outras assistências que assim o exigiam (os destinatários das chamadas “ajudas internas” deviam entrar em um asilo, orfanato ou abrigo para poderem receber os benefícios).

Sobre o autor

Theodore Dalrymple

Theodore Dalrymple é médico prisional e psiquiatra aposentado, editor colaborador do City Journal e Dietrich Weissman Fellow do Manhattan Institute. Seu mais recente livro é Embargo and other stories (Mirabeau Press, 2020).