Nelson Rodrigues: Literatura, Filosofia e Religião

Não é tara, é amor

Luiz Felipe Pondé, certa feita, considerou Nelson Rodrigues um filósofo selvagem. Foi justamente quando se debruçou sobre o seu universo para criar “A Filosofia da Adúltera”, oportunidade em que escreveu “sob o espírito da adúltera. A mulher que representa a condição humana como escrava do desejo, que experimenta o tédio miserável da carne”. Nada mais correto e ponderado. 

A obra de Nelson é popular, sem ser banal ou popularesca, é visceral. É um universo de antíteses muito bem empregadas. Escancara para todos a “vida como ela é”. Como então esse filósofo, que nos engole com tanta ferocidade em seus pensamentos, não seria capaz de transmutar algo como “asfalto”, palavra dura, escura, abjeta e concreta, em uma coisa tão vívida, tão sensual, tão selvagem quanto os amores e os pecados de uma personagem que nunca se fez anônima, Engraçadinha?

Em “Asfalto Selvagem”, Nelson Rodrigues trabalha mais uma vez “o homem de bem”, o popular e o sofisticado, a tragédia e o folhetim. Trabalha, sobretudo, a hipocrisia humana, a antítese do que se pensa e do que se faz, revelando que nossa psique nem sempre condiz com as nossas atitudes.

A tensão entre desejo e morte é uma constante em “Asfalto Selvagem”. Está lá quase sempre, em várias relações, entre Sílvio e Engraçadinha, entre Silene e Leleco, entre Leleco e Cadelão, entre Letícia e Engraçadinha. 

No mais clássico dos esquemas Freudianos, é possível compreender que, por ser um animal racional com consciência da sua finitude, o ser humano vive em angústia. Para suavizar essa sensação sufocante, temos o desejo, em suas mais diversas formas, representando um alívio, um escape necessário para um sentimento tão brutal.

Quando nos debruçamos sobre esse aparente conflito entre desejo e morte na obra do Nelson Rodrigues, precisamos fazer um recorte. Aqui, o recorte escolhido é a tensão existente entre duas personagens, talvez as verdadeiras protagonistas do folhetim. Tudo começa e tudo termina com elas: Letícia e Engraçadinha.

Para resumir, duas primas, criadas como verdadeiras irmãs gêmeas, uma magrela sem graça e a outra corpulenta e espevitada. Antíteses de uma mesma mulher. Ambas buscando amor. O mesmo autor que diz que “O lar é o mais cretino dos túmulos” (p. 269) defende o amor, pois para ele “não amar é apodrecer” (p. 133).

De uma coisa não podemos acusar nem Letícia e nem a Engraçadinha: falta de amor. Elas amam intensamente. Amam tanto que poderiam matar e morrer pelo ser amado. Não é incomum, na obra de Nelson Rodrigues, que os amantes desejem morrer juntos, mas não a pura e simples morte, a morte que permita até mesmo dividir o mesmo caixão, o mesmo sepulcro. Dividir até o fim, as últimas secreções, a mesma terra e a mesma madeira. Amar ao infinito.

Nesse contexto, Letícia não é diferente. Amou a prima a vida inteira, parte dela em silêncio, um silêncio que, para ela, era um calvário. Quando tem a primeira oportunidade, grita o seu amor para a sua amada:

Súbito, o rosto de Letícia tornou-se uma máscara de loucura. Enlaça Engraçadinha, com selvagem energia, e a derruba na cama. Depois, sorve-lhe a boca num beijo sem fim (…)
(…)
– Isso é Tara!
Soluça:
– Amor!
– Tara! (…)
– Não se zangue, Engraçadinha – pausa e completa: – soubesse do meu amor.
Fez uma boca de nojo: – “Amor de mulher?”. Ao mesmo tempo, diz para si mesma: – “Está louca!”. E pergunta: – Você não se enxerga? Está pensando que eu sou uma tarada como você?. A outra enfureceu-se:
– Engraçadinha! Não chama meu amor de tara! (…) [1]

Letícia estava certa. Não era tara. Era amor. O desejo singelo de menina cresce e explode voluptuosamente em lascívia adolescente, até que se aninha e se acalma em um sentimento mais profundo, serenado, mas ao mesmo tempo latente, na mulher madura e irresignada por não ter vivido aquele sentimento de uma vida toda.

Nelson Rodrigues, tradicionalmente e academicamente, não é considerado um autor feminista, o que é verdade até certo ponto. No entanto, é um dos primeiros a retratar, sem tabus, o desejo feminino e a homoafetividade sem vergonhas e amarras, e o amor, seja ele de que forma for: entre iguais, entre irmãos, entre pais e filhos. Amor. Amor sem complemento, do mais puro ao mais egoístico. O anjo pornográfico não poupa suas personagens de amar, de desejar, de pulsar. Como o pop, Nelson não poupa ninguém, nem o leitor. Daí, talvez, a repulsa de muitos, o descrédito de alguns por sua obra genial e atemporal. A sociedade não gosta de espelhos.

Letícia teima em refletir um amor tão forte, um desejo tão sublime, que se pode arriscar ser a verdadeira narrativa central romântica da personagem título. Ela é descrita pela própria Engraçadinha como uma menina sem graça, de coxas finas, horrorosas, joelho ossudo e com uma barriguinha ridícula.

Mas é ela, em nome do amor – e não tara – que sente pela prima, que é a peça principal para o caminhar dos acontecimentos. Letícia aceita ser traída, oferece o noivo, se passa na cama por Engraçadinha. Qualquer palavra da prima ela entende como carícia, como atenção e interesse. Letícia sonha em morrer com Engraçadinha e deseja ser enterrada com a prima lado a lado, “unidas na mesma eternidade nupcial” (p. 120).

Em um ponto do texto deseja ser médica, só para examinar Engraçadinha. Mas seu amor não é correspondido, não como ela deseja, o que não impede os fatos e atos em nome desse sentimento. Sentimento Rodriguiano, ou seja, à flor da pele, às escâncaras, tão forte que Letícia deseja morrer, sacrificar-se pela prima.

Anos se passaram e com eles vemos uma Engraçadinha, fugitiva de seu passado trágico, tentando escapar do amor da prima e da culpa pela morte do pai e do irmão. Da vida não se escapa, nem se foge. Eis que, anos depois, os fantasmas de ontem voltam a atormentar Engraçadinha, com direito ao regresso da prima, agora viúva, rica, poderosa e sedutora.

“Asfalto Selvagem”, publicado originalmente como folhetim, um capítulo por dia entre 1959 e 1960, no jornal “Última Hora”, é dividido em dois livros distintos: um que retrata a vida da personagem título dos 12 aos 18 anos, fase de descobertas, na qual ela era sensual, sexual, vívida e, até mesmo, devassa; e um segundo livro que acompanha sua história após a fuga do Espírito Santo, transformando-se em uma mulher recatada, do lar, mãe de muitos filhos e terrivelmente protestante.

É na segunda parte da narrativa que os fantasmas da primeira fase voltam para perseguir Engraçadinha. Se em um primeiro momento víamos uma mulher capaz de guiar seus próprios passos e tramar a sua própria estória, depois encontramos um animal acuado por muitos predadores que insistem em persegui-lo – seja a própria Letícia com seu amor desmedido (ou seria Tara?), o marido que tudo assumiu, mas nunca foi correspondido e/ou valorizado pela esposa amantíssima, ou pela epopeia romântica do Dr. Odorico, personagem representante do Poder Judiciário, que em um de seus arroubos e reflexões chega a questionar “para que serve o Judiciário?”, e, para nosso espanto, conclui, diferente de tudo o que se possa imaginar: “para arranjar empregos” (p. 191).

É neste contexto, que temos o retorno triunfal da então esquecida prima magrela para a chegada de uma Letícia decidida, rica e poderosa, com força para se impor, impor seu amor, seu dinheiro e seduzir a todos que ousem atravessar seu caminho.

A obra de Nelson, sobretudo, é espelho da vida, prega muitas peças no leitor e nas personagens, como já vimos aqui. A imortal Fernanda Montenegro, no prefácio que escreveu para “Nelson Rodrigues por ele mesmo”, de Sônia Rodrigues, uma das filhas do autor, resume muito claramente o estranhamento que ele consegue causar em todos em suas saborosas linhas:

Na obra de Nelson Rodrigues, nós nos reconhecemos no nosso pior e no nosso melhor. E nos aceitamos numa total e trágica inquietação existencial. 

Como ela diz, (re)dizendo ele próprio, devemos buscar e humanizar o nosso existir e aprender a ser o máximo de possível de si mesmo.

Letícia fez isso. Voltou para conquistar o ser amado, para integrar a vida daquela que verdadeiramente amou. Chegou a se deparar com Silene, filha da mulher amada, espelho da mãe de outrora, curiosa, rebelde e destemida, características típicas da juventude, e mesmo advertida acaba por se enredar nas artimanhas da prima da mãe:

A própria Letícia abriu a porta:
– Que alegria! Entra, entra!
E Silene:
– Vim chispada. Mamãe não sabe.
Febril de felicidade, Letícia pergunta:
– Está calor, não está? Não prefere tirar a roupa? Tira! Fica à vontade! Eu tiro também. [2]

O breve envolvimento de Letícia e Silene movimenta o enredo, mas não é capaz de ocultar a verdadeira obsessão amorosa da prima, que se sente trocada pelo amante inesperado da mulher amada, e até mesmo pelo primogênito, fruto do amor proibido de Engraçadinha e Sílvio, criado como filho legítimo por Zózimo, como mais pura prova de sentimento, e que sente por Silene uma grande conexão e uma paixão Rodriguiana pela mãe.

Ávida por amor, ou por qualquer pulsão que dele se aproxime, Letícia observa tudo, sendo capaz, até mesmo de chantagear a amada por uma migalha de carinho, e consegue ao menos à distância, ver um seio. Um seio de virgem, na visão ofuscada da mulher que ama demais.

Letícia prova seu amor com dinheiro, com bonança e com boas intenções, escrevendo com seu sangue um futuro mais calmo para a mulher amada, legando a ela um conforto que não tinha.

Engraçadinha: – Quem te fala é uma morta. Eu já morri. Quando leres esta carta, estarei entre os mortos. Vai parecer desastre e tu dirás que foi desastre. Ninguém desconfiará de um atropelamento. Darling: – só te peço uma coisa: – acredita no meu amor. É amor e não tara. Para sempre. Já morri e é amor. I love you, I love you, I love you – Letícia. [3]

Definitivamente não poderia ser tara. Letícia deu a última palavra: amava Engraçadinha. Amar, verbo intransitivo. Não precisava de complemento, como a obra de Mário de Andrade.

Pode parecer loucura refletir e querer dominar o imaginário de uma personagem, tarefa que por si só já não é nada fácil, sobretudo quando ela emerge do universo tão grandioso e complexo do nosso Nelson Rodrigues.

Letícia estava certa. Nunca foi tara. Tara nenhuma suporta tantas reviravoltas, tantas humilhações, tantos encontros e desencontros, tantas buscas e tantas súplicas. Era amor. Esse dos mais rasgados e que Nelson, de sua forma selvagem, é mestre em nos contar.

Renato Russo filosofou sobre o amor e (en)cantou multidões com o seu poema parafraseando Coríntios, um dos livros Bíblicos[4]:

Ainda que eu falasse
A língua dos homens
E falasse a língua dos anjos
Sem amor eu nada seria
É só o amor! É só o amor
Que conhece o que é verdade [5] (…)

Carlos Drumond de Andrade, mineiro que conquistou um país, também conceituou com exatidão o verbo amar: 

Que pode uma criatura senão
Entre criaturas, amar?
Amar e esquecer, amar e malamar
Amar, desamar, amar?
Sempre, e até de olhos vidrados, amar?
(…)
Este o nosso destino: Amar sem conta
Distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas
Doação ilimitada a uma completa ingratidão
E na concha vazia do amor à procura medrosa
Paciente, de mais e mais amor
Amar a nossa falta mesma de amor
E na secura nossa, amar a água implícita
E o beijo tácito, e a sede infinita [6]

Mas o amor de Letícia por Engraçadinha se aproxima mesmo é das doces e inolvidáveis palavras do músico brasileiro Osvaldo Montenegro, quando pede, em sua “Metades” [7], que toda loucura seja perdoada “porque metade de mim é amor, e a outra metade também”.

É certo que o leitor apaixonado, nas mais vastas acepções dessa palavra, perdoou Letícia. Engraçadinha também. É amor. Ela sabe disso! Definitivamente, amor!

[1] in “Asfato Selvagem” (pp. 95; 97-98).

[2] In “Asfalto Selvagem” p. 431.

[3] In “Asfalto Selvagem” p. 493

[4] Versículos de 1 Coríntios 13 do livro de 1 Coríntios da Bíblia.

[5] Monte Castelo – Legião Urbana – Renato Russo

[6] Disponível em https://www.letras.mus.br/carlos-drummond-de-andrade/1005569/

[7] Disponível em https://www.letras.mus.br/oswaldo-montenegro/72954/

Imagem: Thelma Reston e Jece Valadão no filme Asfalto Selvagem, de J.B. Tanko,1964 (foto de Nelson Di Rago)

Sobre o autor

Ivo Salvador Guimarães Mendes Filho

Bacharel em Direito pela Universidade Católica do Salvador, Especialista em Direito Criminal, Violência e Segurança Pública, Especialista em Direito Constitucional pela Estácio, Analista Técnico das Carreiras do Ministério Público da Bahia, Assessor Jurídico das Procuradorias de Justiça Criminais do MPBA, Pesquisador em Segurança Pública e Criminalidade do MPBA. Membro do grupo de pesquisa Nelson Rodrigues: Filosofia, Literatura e Religião do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.