Musa, reconta-me os feitos do herói astucioso que muito Peregrinou, dês que esfez as muralhas sagradas de Troia; Muitas cidades dos homens viajou, conheceu seus costumes, Como no mar padeceu sofrimentos inúmeros na alma, Para que a vida salvasse e de seus companheiros a voltar.
Esses são os primeiros versos da Odisseia de Homero, aqui traduzida (recriada) nas palavras de Carlos Alberto Nunes. A célebre epopeia canta sobre o regresso, nóstos em grego antigo, de Odisseu para Ítaca, após sua participação na guerra de Troia. Ao longo do poema, somos testemunhas de todas as agruras vividas pelo herói até este conseguir voltar para seu reino e retomar seu poder.
Essa história de aventura não se resumia aos gregos como um mero drama de um guerreiro corroído pela saudade, desesperado para voltar a sua família após dez anos de guerra e dez anos perdido no mar. Para seus primeiros ouvintes, a jornada homérica tratava da necessidade do cosmos se fazer justo, isto é, uma verdade profundamente ontológica de que cada ente tem um sentido de existir, uma função a desempenhar e um lugar para habitar. O de Ulysses (seu nome latino) é de ser um herói que governa Ítaca.
Isso significa que, na perspectiva antiga (ao menos no seu mainstream), a essência precede a existência dos entes – eles não estão livres para criarem o seu próprio destino, dado que o cosmos (o Ser) já predeterminou o seu viver. Portanto, o nóstos se torna um valor inabalável para o protagonista da Odisseia, pois ele certamente tem um lugar ao qual retornar, diferentemente de nós, que estamos relegados à angústia de sermos livres – liberdade esta que se funda na desorientação de uma existência que primeiro existe pura e simplesmente, antes de ser condicionada por forças metafísicas ordenadoras. Nesse sentido, as ofertas de luxúria e imortalidade da deusa Calipso para seduzir Odisseu se fazem inúteis, haja vista que o herói não pode ser feliz habitando um lugar que não esteja de acordo com o seu alinhamento cosmológico justo. Sua parceira verdadeira é a envelhecida Penélope, que o aguarda há vinte anos, e não a bela, eternamente jovem e fogosa Calipso.
Assim como nós, viventes do século XXI, Odisseu também é tomado pelo sentimento de nostalgia, derivado do termo grego que se faz tema central da Odisseia, mas seu retorno é certo, e o nosso? Para onde iremos retornar? Seria a nostalgia um sentimento enganoso fruto de uma memória fantasiosa? Teria a sociedade da simulação e do simulacro nos enganado ao transformar o passado em mero escapismo? Deveríamos ignorar este sentimento romântico que cada vez mais se converte em capital financeiro e político? Há alguma resposta? Resposta sempre haverá, resta saber sua qualidade. Este artigo traz a solução da nova propaganda institucional da Volkswagen, para melhor examiná-la.
O comercial se mostra um tanto extenso para os padrões comuns. Nele, vemos Elis Regina (IA) e Maria Rita cantando trechos (importante ressaltar isso) da música Como nossos pais, composta por Belchior e lançada pela primeira vez na interpretação do próprio cantor, no brilhante álbum Alucinação,de 1976. Interessante notarmos que a presença do compositor cearense se limita ao seu rosto estampado em uma camiseta em preto e branco (nem para ser uma velha roupa colorida…), algo um tanto problemático se pensarmos na complexa relação entre memória e indústria cultural, uma vez que o consumo se faz de modo veloz, alienado e fetichista, apagando por vezes os verdadeiros autores e colaboradores do produto cultural em questão. Contudo, isso seria tema para outro ensaio.
Enquanto mãe e filha cantam, sucessivas imagens percorrem a tela, trazendo momentos universais da vida humana que se alternam entre as últimas cinco décadas. O fio condutor ligando todas essas experiências comuns aos espectadores do comercial, naturalmente, são os carros produzidos pela Volkswagen. O automóvel e a marca se convertem em elementos ordinários da existência, tal qual o sexo, a criação de filhos, a diversão entre amigos, viagens, entre outros. O consumo da marca é exibido como a materialização da nostalgia e do saudosismo: para sermos como nossos pais, basta ir até a concessionária.
No entanto, a propaganda não se limita a este simbolismo sentimentalista. Ela também anuncia que dentro da “tradição” há espaço para a renovação, pois “o novo sempre vem”. Então, o novo carro elétrico é anunciado e nossas duas protagonistas seguem juntas rumo ao horizonte, cada uma em seu carro, é claro – quanto mais carros forem vendidos melhor, nada de dividir o mesmo automóvel.
Até aqui não tivemos nada de muito novo no front. A nostalgia, que por vezes deveria aparecer como um sentimento de falta e perda de algo que ficou para trás e que nunca mais voltará, é metamorfoseada em um saudosismo plenamente atingível, sem que ninguém questione que “nossos ídolos ainda são os mesmos e as aparências não enganam não, você diz que depois deles não apareceu mais ninguém” (trecho da canção retirada do comercial). Afinal, se o mundo moderno é essa máquina que atropela tudo em prol da conservação do poder de poucos, como grandes indústrias automobilísticas, isso se deve ao fato do novo não conseguir se concretizar plenamente em detrimento dos antigos ídolos. Belchior denuncia que o sonho moderno de poder conceber o mundo de um modo diferente de como ele se apresenta para nós não tem espaço na sociedade burguesa corrosiva.
O trecho “o novo sempre vem” não encerra a canção de modo triunfante e otimista. Logo após essa passagem, o eu-lírico caracteriza a geração dos pais como um grupo de pessoas que instruiu a juventude a ter uma nova consciência e mesmo assim se converteram em pessoas extremamente conservadoras, que ficam “em casa guardados com Deus contando o vil metal”. O compositor encerra a belíssima música declarando a dor que é perceber que toda a luta política-estética de uma vida se torna em vão, pois no seu horizonte está a inevitável conversão em um estilo de vida burguês vazio e perpetuador do status quo.
Mas o sucesso, embora polêmico, da recente propaganda da Volkswagen demonstra que Belchior tinha razão – embora sua letra tenha sido deturpada para uma mensagem otimista, pois o “american way” à brasileira prossegue com toda a força e a indústria automobilística prefere continuar a inundar as ruas de carro com a tal panaceia do carro elétrico, ao invés de tentar repensar a mobilidade urbana de um modo que não polua tanto o meio ambiente e a cidade (do ponto de vista sonoro e visual).
Na modernidade o aperfeiçoamento tecnológico se torna algo comum, nosso mundo é desfeito e refeito na medida em que nossas noções de tempo e espaço são ressignificados por condições materiais-históricas que se reinventam desenfreadamente. Não pertencemos a um mundo estável como o de Odisseu, nossa “estabilidade” é a mutabilidade contínua. Nesse sentido, as marcas tentam se converter em mitos que retornam eternamente em rituais de consumo para serem nossa “Ítaca”, seus produtos tentam se valer do romantismo nostálgico para atender a crise da identidade pós-moderna. Em meio a tanta retórica, fetichismo, simulacro e distorção histórica, podemos ter uma certeza: Quem somos nós? Consumidores.
Bibliografia
BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e simulação. Lisboa: Relógio d`Água, 1991
BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor Ltda., 2012.
HOMERO, Odisseia. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.
Discografia: BELCHIOR. Alucinação. Rio de Janeiro: Poly Gram: 1976. 1 LP (37:25).
Imagem: divulgação/VW