A Crise do Amadurecimento na Contemporaneidade

O ambiente como conceito médio entre o individual e o social

Parece haver um apelo a que o sentido das situações sociais venha das disciplinas “psi”. Em parte porque os assuntos psicológicos sejam, na era do “eu”, assuntos populares; em parte porque os fenômenos sociais estejam sendo configurados, enquanto objetos de conhecimento, como assuntos psicológicos.

Os títulos das publicações sobre acontecimentos políticos, morais e identitários sugerem isso. Douglas Murray escreveu A Loucura das Massas: gênero, ração e identidade (2020); Edgar Cabanas, Happycracia: fabricando cidadãos felizes (2022); Barbara Ehrenreich, Sorria: como a promoção incansável do pensamento positivo enfraqueceu a América (2013).

O conteúdo das obras também. Ernest Becker, em A Negação da Morte (1974), usa o conceito de psicanalítico de negação para propor que nossa sobrevivência se deve à nossa surdez às batidas que a morte faz às nossas portas: quando saímos de casa rumo ao trabalho, temos certeza de voltarmos com o pão e o leite embaixo do braço. Christopher Lasch usa o conceito de narcisismo para compreender a cultura norte-americana: sua análise da política como técnica para alcançar – não efeitos na sociedade, mas na corporalidade do militante –, é premonitória. O filósofo germano-coreano Byung-Chul Han dá ao apagamento da alteridade o status de fenômeno sociológico, e o faz tendo por base o mesmo conceito de narcisismo. Disse ele, grosso modo, que Narciso é alérgico ao que não é espelho.

Os fenômenos sociais atuais parecem mesmo pedir que sejam conhecidos psicologicamente. Possível que seja assim porque a modernidade introduziu uma des-ordem nas esferas (SLOTERDIJK, 2016) humanas, de modo a desarticular as experiências individuais e coletivas. A modernidade é um chão instável. Frank Furedi fala da perpétua crise de identidade (2021) como resultado da queda do lugar da autoridade, eflúvio de uma velha ordem. Passamos a entender que o pecado está em aceitar as determinações advindas da tradição; com isso, a noção orgânica de identidade, inextrincavelmente amarrada às formações sociais pré-modernas, é desalojada das condições que lhe dão eficácia. O que era jovem e novo, hoje é antigo, como cantaram Elis Regina e Belchior, eles próprios já mortos. Robert Castel (2003) nos faz ler, na certidão de nascimento da modernidade, junto com a filiação e a cor dos olhos, a palavra “insegurança” para descrever sua incapacidade de dar estabilidade, segurança e proteção aos indivíduos.

Ao mesmo tempo que promovemos o indivíduo, o tornamos vulnerável. Para fazer a sociedade dos indivíduos, foi necessário que as amarras sociais caíssem. Em que pesem a opressão e a paralisação das possibilidades de realização individual (vistos de longe pelos nossos olhos modernos), em razão das obrigações que impunham – obrigações fundadas em pertencimentos coletivos legitimados pelo tempo –, eram as instâncias de autoridade das formações tradicionais que costuravam as redes de proteção sem as quais o trapezista tende, gravidade abaixo, a se esborrachar no chão duro do picadeiro sob os olhos atônitos e impotentes da plateia. Vamos celebrar a costela que vai se quebrar, no trapézio é bobagem a miséria pouca, cantou Milton Nascimento. Problema é que os processos de amadurecimento se desenrolam, como dramas relacionais humanos, no chão instável da modernidade, e nossos narizes tendem a bater contra o chão duro porque as redes inventadas na modernidade foram trançadas com especulares agulhas de vidro e “buracos” bem largos.

Como entender a afetação dos indivíduos modernos pelos efeitos de nossa era sem recorrer seja à socialização da psicologia seja à psicologização da sociologia, da política, da moral ou de qualquer outra expressão da sociabilidade? Dunker diz que entre indivíduo e sociedade “não há uma relação de inclusão, ao modo gênero e espécie, ou de oposição simples, entre abstrato e concreto, mas de contradição real, entre particular e universal” (p. 29). Importa haver um conceito mediador entre o coletivo e o individual. Para Adorno, o que está em causa no método são as mediações, algo que mostre melhor a passagem dos problemas sociais para a constituição dos indivíduos, e vice-versa. Diz o filósofo da Escola de Frankfurt que “neurose política” é maneira de falar. (pp. 196-97).

O conceito de ambiente de D. W. Winnicott, contudo, parece escapar dessa armadilha por ser ele, o conceito, efeito da própria descrição dos processos de vir-a-ser da natureza humana em sua amostra temporal, que é cada humano nascente para cuja realização concorrem tanto o herdado inato[1] quanto, e principalmente para o que interessa aqui, o ambiente – conceito que, assim nos parece, consegue fazer a medição entre o individual e o social. Para Winnicott (1968), somado aos “genes que determinam padrões e tendências hereditárias para crescimento e para alcance da maturidade, todo crescimento emocional ocorre em relação com a provisão ambiental, que precisa ser suficientemente boa”. A função do marsúpio é fornecer condições para que se complete o desenvolvimento inicial do filhote dos marsupiais. Caso o canguru expulse o filhote da bolsa antes do tempo certo (determinado biologicamente), o desenvolvimento não se completa, e a morte é certa.

Embora haja humanos tão fofinhos quanto o coala, minha analogia (grosseira, diga-se de passagem) entre o conceito winnicottiano de ambiente com a função do marsúpio restringe-se ao tempo (não determinado biologicamente) em que o filhote do humano precisa estagiar na bolsa de seu cuidador para a ocorrência daquilo “que se torna, gradativamente, no bebê, a experiência de si mesmo” cujas repetições estabelecem “a capacidade do bebê sentir-se real” (WINNICOTT, 1966). Tempo, aqui, é a incalculável medida X+Y que todo cuidador dedicado sabe qual é. No entanto, um bebê pode ser despejado da bolsa de seu cuidador antes ou depois do X+Y suficientemente adequados – resultando, não em amadurecimento, senão em apodrecimento, como ocorre com os frutos bicados por pássaros antes do tempo da colheita.

A razão do despejo pode ser alguma dificuldade do cuidador em cuidar, como na situação de um cuidador deprimido – sendo essa a seara de atuação do clínico de “consultório”: entender e intervir naquilo que falhou no interior da família, da pequena comitiva. Isso porque o ambiente, em especial nos momentos iniciais, é o conjunto de sorrisos, abraços, colos, vozes, palavras, lugares atribuídos, afetos usados para dar as provisões requeridas pelas necessidades desenvolvimentais do recém-chegado membro da família.

No entanto, os envolvidos na operacionalização da incubadora pós-uterina vivem, por sua vez a vida real e material de suas respectivas existências, vidas organizadas por um determinado modo de sociabilidade, que pode ser mais ou menos apto a oferecer o suporte para o cuidador cuidar. Aí é que se lança o desafio para uma clínica extra consultório, para a clínica das grandes comitivas: ser capaz de pensar as razões coletivas, a partir da instabilidade do solo em que pisam os adultos, para o desalojamento dos bebês de seus marsúpios antes do tempo, com efeitos de imaturidade (em algum grau) coletiva observada nos bebês de todas as idades cujos remédios parecem ser buscar refúgio em marsúpios políticos e identitários massificados.

À quais determinações sociais obedecem os redatores dos leoninos contratos de permanência nas pós-incubadoras útero-afetivas? Em 1966, Winnicott escreveu que “a mãe – se amparada de forma adequada por seu companheiro, pelo Estado de bem-estar social ou por ambos – está preparada para essa experiência em que ela sabe extremamente bem quais as necessidades do bebê”. Dizer que o Estado de bem-estar social é uma prótese para a fissura que a modernidade cravou nas formas tradicionais de sustentar a experiência introspectiva requerida ao longo dos cuidados iniciais pode soar otimista para alguns; para outros, é o sinal do apocalipse. O filósofo da trilogia Esferas disse que tanto o Estado de bem-estar social quanto o mercado global, a tecnologia e a mídia seriam tentativas de “emular a imaginária segurança das esferas, tornada impossível” (SLOTERDIJK, 2016) por uma modernidade que “separa cada vez mais suas estruturas de segurança das tradicionais criações literárias e cosmológicas” (Ibidem), que tinham por função fornecer camadas de proteção inscritas na experiência coletiva partilhada.

Com o desmonte das estruturas coletivas de organização da experiência comum, para dar lugar a uma organização que privilegia o indivíduo – e seus corolários: derrubada da tradição, da autoridade e das identidades fundadas na objetividade –, a modernidade colheu, entre outros frutos, junto com as juras de independência, a dessacralização dos cuidados, falta de confiança e insegurança. Por exemplo, a insegurança relativa ao próprio lugar no mundo do trabalho pode ser o item contratual definidor do tempo de permanência do imaturo inquilino pós-embrionário na bolsa protetiva (familiar ou escolar), porque naquela ambicionada promoção profissional não cabe uma pessoa dividida entre o projeto da empresa e o choro do bebê. O problema não está, exclusivamente, na insegurança inerente à volatilidade dos empregos na economia global. Está na promessa moderna implicada na sensação de que devemos fazer parte da comunidade dos que têm sucesso e assim honrarmos nossa dívida com o projeto do indivíduo moderno, que é ser aquele que extrai de si mesmo, do âmago de sua razão (OAKESHOTT, 2016), as direções de seu desenvolvimento – expressão do usufruto do gozo à propriedade[2].

Ambiente não é um conceito individual, é relacional, e sua concretização depende do estabelecimento de relações baseadas em identificações que, por sua vez, exigem um tipo de atenção que não é mentalizável, é vivencial, experiencial, empática. Condições que precisam de um macro ambiente estável, que, por definição, está fora do âmbito da chamada modernidade, instável por constituição.

Referências

ADORNO, Theodor W. Ensaios sobre Psicologia Social e Psicanálise. São Paulo: Editora Unesp, 2015. BECKER, Ernest. A Negação da Morte. Rio de Janeiro: Editora Record, 1974.

CABANAS, Edgar & ILLOUZ, Eva. Happycracia – Fabricando cidadãos felizes. São Paulo: Ubu, 2022.

CASTEL, Robert. La Inseguridad Social ¿Qué es estar protegido? Barcelona: Titivillus, 2003.

DUNKER, Christian Ingo Lenz. Apresentação à Edição Brasileira, in Ensaios sobre Psicologia Social e Psicanálise de Theodor W. Adorno. São Paulo: Editora Unesp, 2015.

EHRENREICH, Barbara. Sorria: Como a promoção incansável do pensamento positivo enfraqueceu a América. Trad. Maria Lúcia de Oliveira. Rio de janeiro: Record, 2013.

FREUD, S. Doutrina das Pulsões, in Compêndio de Psicanálise e Outros Escritos Inacabados. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014.

FUREDI, Frank. 100 Years of Identity Crisis – Culture war over socialization. Berlim/Boston: De Gruyter, 2021.

HAN, Byung-Chul. A Expulsão do Outro: sociedade, percepção e comunicação hoje. Rio de Janeiro: Vozes, 2022.

LASCH. Christopher. A Cultura do Narcisismo – A Vida Americana numa era de esperanças em declínio. Rio de Janeiro: Imago, 1983.

MOSSE, George L. La Cultura Europea del Siglo XX. Ariel: Barcelona, 1997.

MURRAY, Douglas. A Loucura das Massas. Rio de Janeiro: Editora Record, 2020

OAKESHOTT, Michael. Conservadorismo. Belo horizonte: Ayiné, 2016.

SLOTERDIJK, Peter. Bolhas. São Paulo: Estação Liberdade, 2016.

WINNICOTT, Donald W. A Imaturidade do Adolescente (1968), in Tudo Começa em Casa. Trad. Paulo César Sandler. São Paulo: Ubu Editora, 2020

_____________________. A Mãe Dedicada Comum (1966), in Bebês e suas Mães. Trad. Breno Longhi. São Paulo: Ubu Editora, 2020.

[1] Incluam-se, em que pesem as discussões conceituais e etimológicas, o patrimônio biológico e os instintos, e as pulsões (trieb,drives). Nas palavras de Freud (1940) “representam as exigências corporais feitas à vida anímica”. Considerando os acréscimos feitos pelos pós-freudianos, desde a perspectiva tanto das relações de objeto quanto das perspectivas relacionais e desenvolvimentais, pode-se dizer que se refere, no pulsional, tanto ao solilóquio das exigências do Isso, no limite entre o somático e psíquico, entre Eros e destruição, quanto às exigências do mercado da sociabilidade.

[2] Diz Robert Castel que “no começo da modernidade a propriedade privada adquire uma significação antropológica profunda porque aparece – Locke foi um dos primeiros a perceber – como a base a partir da qual o indivíduo que se emancipa das proteções e sujeições tradicionais pode encontrar as condições de sua independência”.

Imagem: Calvert Lithographic Company, Detroit, Michigan, 1890

Sobre o autor

Ricardo Rodolfo de Rezende Prado

Psicanalista e consultor em escolas da rede particular de ensino. Graduado em Filosofia pela PUC-Minas, com formação e especialização em Psicanálise (Cinpp-Vale/Univap). Pesquisador do Grupo A Crise do Amadurecimento na Contemporaneidade, do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo /PUC-SP – LABÔ.