Núcleo de Filosofia Política

Sobre o conceito de religião política

Com a emergência dos regimes totalitários na primeira metade do século XX, intelectuais buscaram compreender como foi possível que tais horrores tivessem sido cometidos. Na análise especialmente dos regimes nazista na Alemanha e bolchevista na Rússia, grandes pensadores do século passado propuseram variações do conceito de ‘religião política’ para explicar as duas formas de totalitarismo que chocaram o mundo.

De uma maneira geral, religião política se refere ao entusiasmo religioso que indivíduos passam a ter pela política em um mundo secularizado. Na falta de Deus ou de uma dimensão transcendente, a fé é direcionada para assuntos humanos que no cristianismo não seriam dotados de sacralidade.

Derrotados os regimes, o conceito de religião política ainda pode guardar importância para explicar fenômenos políticos mais recentes. Mas para indagar sobre a possível validade dessa abordagem, será necessário expor algumas formulações de teóricos que, sob distintas perspectivas, procuraram examinar a mesma manifestação.            

Proponho explorar três concepções que, a meu ver, se complementam. São elas as de Raymond Aron, Eric Voegelin e Michael Oakeshott – um francês, um alemão e um inglês respectivamente –, deixando de abordar outras importantes como as de Waldemar Gurian (no artigo “Religiões Totalitárias”), de Jacob Talmon (em “Messianismo Político”), e de Jacques Ellul (em seu livro Os Novos Demônios).

A Religião Secular em Raymond Aron

Comecemos por Aron, que formulou o conceito de “religião secular” em seu livro O Ópio dos Intelectuais, publicado em 1955. Apesar do conceito geral de religião política ter como preocupação tanto o regime de Hitler quanto o de Stalin, o pensador francês tem como foco a esquerda. No entanto, a esquerda, ou mais especificamente o marxismo, é apenas uma face do problema a ser analisado, que de maneira mais geral é antes um racionalismo e um otimismo histórico, calcado na ideia de progresso. No livro de Aron, são denunciados todos os que dividem esquerda e direita em bem e mal ou entre futuro e passado, dentre outras reduções simplistas.

Aron vai analisar três mitos: o mito da esquerda, o mito da revolução e o mito do proletariado; com intuito de demonstrar uma estrutura religiosa e mítica de movimentos de esquerda. O que os três mitos têm em comum é a crença de que há um progresso ao longo da história. Ou seja, há uma melhora dentro do processo histórico. Assim, a revolução, por exemplo, seria o meio pelo qual um estado de coisas ruins dará lugar a um mundo melhor. (Aron, 1962).

Aron chega à conclusão de que o comunismo e o marxismo são “religiões seculares” e chega a organizar os dogmas e dividir os membros entre os homens da igreja ou clérigos e os fiéis, e diferenças entre esses grupos, no capítulo 4 do livro. Não cabe aqui explorar a sistematização de Aron. O mais importante é identificar a base na perfectibilidade humana, no progresso do processo histórico, e a guerra dos santos contra os maus, os infiéis. Os santos são os membros da própria esquerda, já que no mito da Esquerda esta é vista como a favor da liberdade, da igualdade e da racionalidade. (Idem)

O mito da esquerda depende do mito do progresso, já que pressupõe que o futuro é melhor do que o presente. A base comum para esses três mitos analisados por Aron é um otimismo visionário, apontado para o futuro, e um pessimismo sobre a realidade, sobre o atual estado das coisas. Porque têm certeza do futuro, interpretam o passado e o presente como bem querem, inclusive legitimando terror e violência contra o que e quem estiver no caminho. Para Aron, então, apesar do ateísmo dos comunistas, estes são imbuídos de uma fé. Suas pretensões não são apenas políticas e econômicas, querem controlar a totalidade da sociedade e suas forças cósmicas (Idem).

Gnosticismo em Eric Voegelin

Eric Voegelin foi um dos primeiros autores a usar o termo “religiões políticas” em livro homônimo, lançado em 1938. A ideia central da obra era a de que, ao recusarem a dimensão religiosa existente no ser humano e rejeitar o transcendente, regimes como o Nacional-Socialismo acabaram erigindo novas divindades, como o Estado, o Partido ou a Raça. (Voegelin, 2000).

Na década de 1950, Voegelin revisita essa concepção e a abandona em favor de um conceito menos vago: gnosticismo, em referência às seitas do cristianismo primitivo que foram consideradas heresias. No entanto, o filósofo germânico irá além das definições do gnosticismo histórico para enquadrar regimes e ideologias totalitárias, assim como diversos outros fenômenos da modernidade.

Em ensaio de 1959, intitulado “Ciência, Política e Gnosticismo”, Voegelin elenca seis características do Gnosticismo Político Moderno, que tem por objetivo instaurar o Reino de Deus na Terra: 1. Insatisfação com o atual estado de coisas, com sua própria situação; 2. A culpa desse estado de coisas está sempre no mundo e nunca no indivíduo; 3. A salvação é possível; 4. Há um processo histórico que mudará a ordem para melhor; 5. A mudança deve acontecer através do esforço e da ação humanas; 6. Da possibilidade da salvação por meio da ação humana deriva a elaboração de um método para mudar o estado de coisas. (Voegelin, 1997).

Como se torna claro, a perda da dimensão transcendente se mantém como preocupação de Voegelin desde sua primeira formulação em Religiões Políticas. Ademais, a busca pela instauração de um Paraíso Terreno a partir do esforço humano (leia-se revolução) e o foco no progresso histórico são características que Aron percebe em sua própria exposição. Apesar do foco central de Voegelin ser o nazismo e o de Aron o comunismo, suas interpretações sobre essas ideologias são próximas.

A Política de Fé em Michael Oakeshott

Por fim, indico uma terceira formulação, a de Michael Oakeshott, contida no livro Políticas da Fé e Políticas do Ceticismo, que se afasta do termo genericamente de “religião política” devido a uma sutileza do pensador britânico. A política da fé, que será considerada presentemente, não corresponde a nenhum movimento ou partido, é apenas um dos lados de uma mesma atividade política, que pode, dependendo das circunstâncias, tombar para algum dos polos. Ao contrário de Voegelin e Aron, Oakeshott é relutante em encaixar qualquer regime político existente ou histórico em seus conceitos. Mesmo assim, como veremos, a descrição da política fideísta guarda similaridades com as religiões seculares de Aron e com o gnosticismo de Voegelin.

As políticas da fé e as políticas do ceticismo surgiram como respostas ao crescimento de técnicas e de possibilidades governamentais. A primeira tinha uma visão otimista de progresso; já a segunda era representada por aqueles que observaram as mudanças com apreensão. Um dos exemplos que Oakeshott dá de política da fé é Francis Bacon, que tinha essa visão otimista de progresso na história, e para quem a busca pelo progresso era uma “redenção da humanidade na história” (Oakeshott, 1996, p. 52).

A visão do progresso aparece não apenas na história, mas no próprio desenvolvimento humano. O futuro melhor será atingido pelo esforço humano que também se aperfeiçoará. Há, portanto, na política da fé, um elemento de perfectibilidade, isto é, os seres humanos são capazes de se aprimorar e o governo deve ajudar os homens a serem melhores ou fazê-los conformar às normas impostas. No extremo da política da fé, os que não se adaptam às imposições de suas práticas são devidamente eliminados. De qualquer forma, o governo precisa de grande poder (Idem).

Nas palavras de Oakeshott:

In the politics of faith, the activity of government is understood to be in the service of human perfection; perfection itself is understood to be a mundane condition of human circumstances; and the achievement of perfection is understood to depend upon human effort. The office of government is to direct the activities of its subjects, either so that they contribute to the improvements which in turn converge into perfection, or (in another version) so that they conform to the pattern imposed. And since this office can be sustained only be a minute and zealous control of human activities, the first need of government in the politics of faith is power to match its task. (Idem, p. 45)

Conclusão

Não obstante a diferença entre os autores, o que eles buscaram criticar é uma forma de fazer política que almeje uma perfeição, ou um mundo sem mazelas. Nas diferentes formas da categoria de “religiões políticas”, o que seus proponentes pregam é uma ação no mundo para conduzir ao progresso que culminaria em um verdadeiro Reino de Deus na Terra. De maneiras distintas, Aron, Voegelin e Oakeshott vão defender a imperfeição da esfera da conduta humana política. Não que o mundo não possa e não deva melhorar via ação política, mas, como a perfeição nos assuntos humanos é inatingível, qualquer promessa de um estado futuro perfeito se torna apenas uma justificativa de coerção e violência.

Em um tempo no qual muitos eleitores mais parecem fiéis e candidatos são tratados por seus seguidores como messias e por seus detratores como representante do mal, as diferentes formulações da religião política podem nos ser importantes. E, mais que isso, nos revelam que a política não pode ser o lugar da Utopia e da perfeição, mas da prudência.    

Referências

Aron, Raymond. The Opium of the Intellectuals. New York: The Norton Library, 1962.

Oakeshott, Michael. The Politics of Faith and the Politics of Scepticism. Avon: The Bath Press, 1996.

Voegelin, Eric. Science, Politics and Gnosticism: Two Essays. Washington, D.C.: Regnery Publishing, Inc., 1997.

Voegelin, Eric. The Collected Works of Eric Voegelin: Volume 5: Modernity without Restraint. Columbia: University of Missouri Press, 2000.

Imagem: Lenin discursa na fábrica Putilov em maio de 1917 (Isaak Brodsky)

Sobre o autor

Theo Villaça

Mestre em Filosofia Política pela PUC-Rio, com pesquisa em Hannah Arendt e Eric Voegelin e pesquisador do Núcleo de Filosofia Política do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.