A Primavera em Jerusalém
Um dia de primavera que ficou na história de Jerusalém, durante o julgamento de Adolf Eichmann, tenente-coronel nazista e um dos principais organizadores do Holocausto: 7 de junho de 1961. No púlpito, de pé, um homem magro, de 52 anos, cabelo castanho escuro, de óculos, trajando calças compridas, camisa, gravata e paletó de cores neutras. Ao colocar sua quipá na cabeça e a mão direita na Bíblia, disse diante do juiz:
— Eu juro, em nome de Deus, que meu testemunho neste julgamento será a verdade, toda a verdade e nada mais do que a verdade.
— Qual o seu nome Senhor? Perguntou o juiz.
Ele então revelou a sua identidade civil que se mesclava com identidades em outros tempos e espaços.
— Yehiel De-Nur.
O Nome De-Nur, que em aramaico significa “de fogo”, substituiu o seu sobrenome original polonês Feiner; havia estudado em Yeshiva em Lublin, sua cidade natal, onde assumiu o judaísmo religioso e também o sionismo. Era um sobrevivente das atrocidades do Campo de Extermínio de Auschwitz, e a Palestina ainda sob o mandato britânico foi o destino que se confirmou como seu lar, em 1945 – posteriormente Estado de Israel, em 1948. Ele utilizou também o nome Ka-Tzetnik, ou Ka-Tezetnik 135633, em referência a seu número de deportado, tatuado no braço. Karl Zetinski (novamente a derivação de “KZ”) foi outra denominação com que se intitulou como refugiado, o que acabou até gerando confusão sobre seu nome verdadeiro quando seus trabalhos foram publicados pela primeira vez.
Após se identificar, tirou a quipá, se acomodou na cadeira e teve o microfone ajustado para a nova postura.
O juiz confirmou algumas informações.
— O Sr. fala hebraico? Nasceu na Polônia? Mora em Tel Aviv? É escritor?
De-Nur disse, repetidas vezes:
— Sim, sim, sim.
O juiz deu continuidade perguntando se ele era o autor dos livros Salamandra e Casa de Bonecas.
— Sim, Piepel, entre outros, respondeu De-Nur demonstrando um desconforto ao olhar para o alto e suspirar inquietamente.
O juiz questionou:
— Qual a razão para a escolha do pseudônimo Ka-Tzetnik, Sr. De-Nur, na sua literatura?
Ele então respondeu:
— Este não é um pseudônimo. Não me considero um escritor de literatura e sim de crônicas. Esta é uma crônica do planeta Auschwitz. Eu estive lá por mais ou menos dois anos.
A intérprete que estava realizando a tradução simultânea tossiu, como se tivesse engasgado subitamente com a revelação.
Enquanto De-Nur falava compassadamente, a câmera delatou o semblante plácido indiferente do réu Eichmann, que se encontrava entre dois guardas, em uma cabine com vidros transparentes, ouvindo a tradução simultânea por meio de fones de ouvido. Ele retorcia a boca, como se pudesse sorver o seu próprio veneno.
De-Nur embarcou no universo das suas memórias.
— O tempo lá era diferente do que é aqui no nosso planeta Terra. Cada fração de segundo transcorria em um ciclo de tempo diferente. E os habitantes daquele planeta não tinham nomes. Eles não tinham pais nem filhos.
A câmera apontou para a face do juiz nessa hora, e em seguida voltou para De-Nur, que prosseguia pausadamente.
— Eles não ficavam próximos como nos encontramos aqui. Eles não nasciam lá e ninguém dava à luz lá.
O cameramen selecionou três pessoas sentadas atrás da tribuna e permaneceu filmando, enquanto De-Nur continuava sua dolorosa narração, de quando em vez colocando a mão direita no queixo, como se quisesse sustentar melhor a cabeça no pescoço.
— Até mesmo a nossa respiração era regulada por leis de outra natureza. Não se vivia nem se morria de acordo com as leis deste mundo. E lá, eles não morriam.
De-Nur olhou ao redor e falou enquanto arregaçava levemente o paletó a fim de mostrar o número que havia sido violentamente tatuado no braço pelos nazistas do campo:
— Os nomes eram os números K-Zetnik tal e tal… as vestes eram listradas.
O outro intérprete traduziu, então, a cena de um homem mostrando um uniforme listrado azul e branco e entregando para o guarda auxiliar, que se dirigiu até a vítima.
O juiz perguntou:
— Era isso que costumava vestir lá em Auschwitz?
De-Nur respondeu:
— Sim. Este era o trapo daqueles que habitavam o planeta denominado Auschwitz.
À medida que Sr. De-Nur narrava, o trapo parecia ganhar vida com algum tipo de anima alada naquele entrelace das suas mãos com as do guarda auxiliar, que por sua vez mostrava um nítido pesar em sua feição cabisbaixa. E como companheiro de uma jornada empática, permaneceu ao lado do Sr. De-Nur, que acrescentou:
— Eu acredito do fundo do meu coração que tenho que levar este nome enquanto o mundo não despertar.
O guarda levou o “trapo” listrado consigo, dirigiu-se à mesa e depois subiu um lance de escada, alcançando o patamar mais alto do tribunal, deixando o uniforme lá.
A testemunha falou:
— Para entender este mal, eu acredito, do fundo do meu coração, que, assim como na astrologia, as estrelas influenciam nosso destino, da mesma forma, a estrela de Auschwitz está lá nos encarando, irradiando e influenciando o nosso planeta.
A essa altura, a câmara mostrou o juiz de pé, ouvindo atentamente. De-Nur continuou divagando, como se estivesse orbitando no limbo entre os dois planetas.
— Se eu estiver em condições de permanecer de pé neste tribunal e recontar a história deste planeta… Se eu estou fora deste planeta Auschwitz com condições de estar diante de vocês por inteiro, é por conta da obrigação, da força, do poder sobrenatural além da natureza, depois do período de Auschwitz, dois anos em Auschwitz, quando me transformei em Musselmann [1]. Eu então pude entender. Eles me deixaram, continuaram me deixando para trás…por quase dois anos eles me deixaram e sempre me deixaram para trás. Eu os vejo, eles estão me observando, eu os vejo.
Nesse ponto, o promotor o interrompeu gentilmente:
— Sr. De-Nur, eu poderia talvez fazer algumas perguntas ao senhor, se o senhor consentir?
Mas o Sr. De-Nur estava psiquicamente ausente para ouvi-lo. Parecia estar lá naquele planeta Auschwitz, como se tivesse sido abduzido. Ele não parava de falar e até se levantou para dar vazão àquela força da natureza que o mantinha aparentemente levitando no recinto.
— Eu os vejo… Eu os vejo em pé, na fila…
A câmera focou exclusivamente na face de Eichmann, flagrando mais uma vez a sua indiferença glacial e o hábito de entortar a boca.
O juiz-presidente buscou formas de interação:
— Sr. De-Nur, por favor, por favor, ouça o sr. Hausner; espere um minuto, agora me ouça!
A testemunha, já sem forças, tentou ficar novamente de pé, mas repentina e abruptamente tombou como uma árvore exaurida e sem mais força para resistir aos vendavais constantes da sua assombrosa lembrança. O guarda auxiliar foi socorrê-lo, e depois chegou outro mais jovem, e mais outro. Os três o colocaram na cadeira, próximo do púlpito testemunhal.
A interpretação simultânea parou e o intérprete se desculpou por não poder traduzir mais o que estava acontecendo a partir do local em que se encontrava na sua cabine.
Mas a câmera registou todo o alvoroço desconcertante, e diria até consternador, diante daquela cena inusitada. A Sra. Nina De-Nur foi ao encontro do seu marido desfalecido sem saber exatamente como agir. Todos se levantaram incertos de que direção deveriam seguir.
O juiz então decidiu que a sessão deveria ser suspensa diante daquele evento inesperado que impossibilitou a vítima de se recuperar prontamente. O recesso foi anunciado, mas o profissional por detrás da câmera se manteve a postos e focou no trapo listrado azul e branco encardido, colocado na mesa do juiz. Era a testemunha sem vida do terror que insistia em não repousar. Uma maca chegou, De-Nur foi colocado gentilmente nela pelos três guardas. A esposa seguiu estoica e silenciosamente, parecia resistir aos efeitos da influência da estrela daquele planeta Auschwitz.
Todos os presentes deixaram à mostra uma solidão, um desamparo coletivo. Como quebrar definitivamente o cerco daquele mal-estar que pairava no ar desde a cruel revelação da Shoah [2]?
O que se sabe é que Sr. De-Nur permaneceu duas semanas no hospital entre a vida e a morte, paralisado, e não mais voltou a assumir seu papel de testemunha, mas sim de sobrevivente, mais uma vez.
O tempo passou, alguns livros foram escritos, com o apoio incansável da sua mulher Nina, tanto nas publicações quanto nas traduções. O encontro do casal só foi possível graças ao livro Salamandra. Casaram-se e juntos tiveram o filho Lior e a filha Daniella, em homenagem reparadora à menina Daniela, personagem real do livro “Casa de Bonecas”, que retratou sem retoques a casa dos horrores e o divertimento sádico dos nazistas com crianças e jovens judias, escravas do sexo.
O estresse pós-traumático deixou sequelas inconciliáveis com recorrentes pesadelos e depressão, o que levou De-Nur a aderir ao tratamento psicodélico do psiquiatra holandês Jan Bastiaans, destinado exclusivamente a sobreviventes de campos de concentração. O tratamento incluía o uso do alucinógeno LSD. As visões experimentadas durante a terapia o inspiraram para a criação do livro com título Shivit, derivado do Salmo de Davi 16:8, “Shiviti YHVH le-negdi amid (שיויתי ה’ לנגדי תמיד)”, literalmente, “Eu coloquei Hashem diante de mim para sempre.”
Durante uma entrevista exibida em 6 de fevereiro de 1983, no programa jornalístico “60 Minutes”, veiculado pela rede norte-americana CBS, De-Nur contou para o apresentador Mike Wallace o incidente de seu desmaio no julgamento de Eichmann. Teria ele sido vencido pelo ódio? Pelo medo? Pelas Memórias horrendas? Afinal, o que aconteceu naquele dia?
O que aconteceu de fato, segundo De-Nur, foi a percepção real de que Eichmann não era o oficial do exército que havia enviado tantos para a morte. Eichmann era um homem comum, fato este percebido também pela escritora Hannah Arendt, que estava no julgamento a serviço da revista The New Yorker. Tal experiência e estudos aprofundados sobre a biografia do réu a levaram a escrever, dois anos depois, a obra literária Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. De-Nur então confessou:
— Eu estava com medo de mim mesmo. Eu vi que poderia ser capaz de fazer isso. Eu poderia vir a ser exatamente como ele.
Adolph Eichmann, 56 anos, considerado culpado de muitas das acusações, foi enforcado à meia-noite, entre 31 de maio e 1º de junho de 1962, sendo aquela a única vez em que o sistema penal do Estado de Israel impôs a alguém a pena de morte.
Yehiel De-Nur morreu em Tel Aviv, em 17 de julho de 2001, aos 92 anos.
A primavera em Jerusalém, em tempos e espaços diversos, traduz eventos que sempre ressurgirão das suas próprias cinzas, entre memórias e lembranças. E assim são as sagas e a esperança. Sempre renascerão.
Entre a Civilidade e a Barbárie
O testemunho de Yehiel De-Nur ecoa forte no Planeta Terra, assim como no Planeta Auschwitz, por conta da sua constatação fatalista e determinista de que o mal é endêmico da condição humana. Ele reforçou a tese de que qualquer um de nós pode cometer as mesmas atrocidades. Eichmann está em todos nós!
E quem são os algozes do século XXI? São inúmeros. O antissemitismo e a xenofobia ganham contornos e paradoxos colossais. Ao mesmo tempo que nos deixam estarrecidos e em alerta constante, anestesiam os mais distraídos que não conseguem decodificar os sinais que pulsam da órbita do Planeta Auschwitz. A banalidade do mal se faz presente no apagamento histórico-cultural que se mescla com o negacionismo e teorias conspiratórias com o intuito de forjar uma nova realidade. A ciência está sob ataque, assim como as reservas institucionais e o Estado democrático de direito. A “pátria, família e Deus acima de todos” força a barra para invadir o lugar da cidadania. Os bordões nacionalistas e as pautas de costumes irradiam preconceitos e discriminações crescentes.
A entropia de uma sociedade neoliberal, heterossexual, cristã pentecostal, propensa a ser fanática, armada, afeita à liberdade de expressão sem respeitar e realidade dos fatos, sem movimentos sociais vibrantes e com minorias sitiadas, torna o ambiente perfeitamente hostil para eclodir um ovo da serpente, dia após dia. E como constatou De-Nur, Eichmann está em todos nós!
O século XX, dentre tantas descobertas e mazelas, deixou como insanável passivo a barbárie do Holocausto, marco atroz a toda prova, como também o reflexo sombrio do antissemitismo renascido dos escombros da Primeira Guerra Mundial. O ano de 1933 emite até hoje sinais de perigo que precisam ser revisitados e transformados em comunicados antecipatórios. A Shoah e a visão nefasta da “solução final” foram o desfecho de tragédias anunciadas e lamentavelmente negligenciadas por governos, por sua neutralidade e acordos convenientes.
A manipulação, a desinformação, a perseguição de “inimigos” na luta do “bem contra o mal” e a lavagem cerebral nazista propagada pelo ódio, com alvo nas comunidades judaicas, estimulou o fanatismo e a cegueira coletiva, provocando a maior hecatombe: a Segunda Guerra Mundial, que ceifou um total estimado entre 70 e 85 milhões de vidas, representando cerca de 3% da população mundial de 1940. As minorias compostas por ciganos, oponentes políticos, comunistas, homossexuais e pessoas com deficiências e consideradas como inadequadas sociais foram vítimas de perseguições, trabalhos forçados e execuções sumárias. Seis milhões de judeus foram dizimados com requintes de crueldade, e os rastros desse massacre deixaram pegadas dolorosas na humanidade, que jamais devem ser apagadas.
A frase “nunca mais” precisa ser literalmente “sempre lembrada” por meio da palavra escrita e falada em diferentes linguagens e culturas. E como advertiu De-Nur, o Planeta Auschwitz ainda pulsa e influencia o destino do Planeta Terra. Como judeus e judias, não temos o direito de desmerecer e muito menos ignorar as ameaças travestidas de filossemitismo e antissionismo. Assim como o farol aponta os perigos e obstáculos para os viajantes dos mares e oceanos, temos que servir de rosas dos ventos para antever tempestades que estão por vir e nos preparar para arrefecer seus estragos, no mínimo.
Educação Transformadora, nossa Rosa dos Ventos
Evitarei fazer uso da palavra religião, por ser ela, no meu entender histórico, a grande responsável pelas guerras, cisões e discriminações. A inexistência da imagem de Deus tem nos deixado em apuros desde sempre, assim como a pluralidade da sua deidade.
Utilizarei como ponte a palavra religare, que em latim significa ligar novamente, reconectar e reexperimentar o Divino dentro do Homem. A Educação transformadora, sim, é o fio condutor que nos aproxima do papel de cocriadores e cocriadoras do universo envolto em mistérios. A educação como rosa dos ventos, que nos conecta e nos adverte sobre as circunstâncias do tempo sem fronteiras de passado, presente e futuro.
E assim como o religare tem seus pântanos e areias movediças, a educação, em mentes malditas, provoca tsunamis de proporções imensuráveis. O caminho da “salvação” está no manejo dos artefatos mais refinados da nossa humanidade e servirá de antídoto contra o “Efeito Eichmann”. O pensamento crítico no lugar do fanatismo, a reflexão e percepção no lugar do reducionismo simplista, a curiosidade no lugar do prejulgamento, a empatia no lugar do individualismo, o ecocentrismo no lugar do egocentrismo, a diversidade no lugar da uniformidade, a pluralidade no lugar da unicidade, a inclusão no lugar da exclusão, o silvestre no lugar do domesticado, a liberdade de expressão com responsabilidade no lugar de qualquer liberdade invasiva e desrespeitosa e que falta com a realidade dos fatos. A ciência aliada a expansão da consciência e o antirracismo como ponto de convergência para a apreciação e combate ao antissemitismo. Assim, a influência do Planeta Auschwitz pode ter seus efeitos deletérios identificados e mitigados. Essa é uma utopia para realistas.
O Tikum Olam, expressão em hebraico que significa a reparação do mundo com justiça social, responde aos anseios dos necessários cuidados com o Planeta Terra a ser deixado como legado para as próximas gerações. Nós humanos somos os únicos seres vivos com esta capacidade de livre arbítrio e está nas nossas mãos a decisão de construir e de destruir. Somos poderosos e numerosos para o feito e a história coleciona muitas páginas e capítulos de repetições de cenas demoníacas que deixam ainda mais em evidência a nossa incompetência para aprender com os erros – e, pior, ainda os reinventamos com inimaginados níveis de crueldade. Por isso a urgência da construção do conhecimento por meio da inteligência coletiva em redes de cooperação conectadas e alinhadas, como bem fazem os planetas. Assim deixaremos mais pegadas do bem viver a serem seguidas.
Storytelling
Na tradição judaica, em especial, contar histórias faz parte do estado de resiliência constante e é um dos costumes responsáveis pela perpetuidade de ritos e tradições até hoje passadas de geração em geração. Somos reconhecidos como o “povo do livro” e também o “povo das sagas”. O storytelling, arte de contar histórias inspirada em roteiristas e diversos estilos literários, é uma força motriz educacional poderosa para impulsionar a “rosa dos ventos eeventos” que merecem ser contados e relembrados.
Com o storytelling, fatos históricos e contemporâneos ganham forma e conteúdo por meio da liberdade de expressão, com delicadeza e respeito às fontes e ao fluxo da arte de contar histórias para todas as idades – ainda mais porque utilizaremos um valioso artefato, a imaginação, como companheira de destino da jornada. E como cada acontecimento tem interpretações artísticas diversas, recomenda-se que o diálogo seja aproveitado ao máximo. O importante é ter o propósito estabelecido para vicejar o melhor da nossa humanidade. O leitor e a leitora são protagonistas das suas reflexões, pensamentos, sentimentos e sensações, quando em contato com as narrativas testemunhais que, sempre que necessário ou se solicitadas pelas fontes, terão suas identidades preservadas. O conteúdo histórico real é fiel ao tempo e ao espaço dos desdobramentos. A licença poética será dada com o intuito de envolver cada leitor, cada leitora no ambiente, preservando o aroma, o cheiro, o sabor, a luz, os contrastes e as sombras.
Ter começado o artigo com um fato histórico inesquecível, por exemplo, foi a forma encontrada para explicitar o propósito do projeto literário “Vidas em Versos e Prosas. A Narrativa Testemunhal pelo Estilo Storytelling”. Sensibilizar trazendo de pronto o ser divino que habita em nós é uma utopia para realistas. Resgatar o ser humano com seus artefatos mais preciosos é uma possibilidade a ser alcançada. Uma forma de nos surpreender com os nossos perdidos e achados.
Eu mesma me surpreendi com meus próprios achados ao utilizar mais um artefato poderoso: o poder de escuta. Tive conhecimento do Sr. De-Nur ao ouvir virtualmente Francisco Moreno, médico e professor, doutor em Língua Hebraica, Literatura e Cultura Judaica pela Universidade de São Paulo, durante a apresentação do Relatório sobre o Crescimento do Antissemitismo durante o governo Bolsonaro, no dia 16 de agosto de 2022, na Câmara Municipal de São Paulo. Foi o professor Moreno que me apresentou o personagem Sr. Yehiel De-Nur e me informou da existência do Planeta Auschwitz. Minha curiosidade natural me fez pesquisar a fundo sobre Sr. De-Nur e, ao encontrar a gravação do seu testemunho no Youtube, resolvi contar a história sobre o fato, apresentada na introdução deste artigo. Nos tornamos velhos conhecidos desde então. A rosa dos ventos se apresentou para mim na fala do professor e médico Francisco Moreno.
Coincidentemente, ouvi novamente o eco do nome De-Nur nos comentários de Michel Gherman, doutor em História pelo PPGHIS/UFRJ, professor da UFRJ e diretor acadêmico do instituto Brasil Israel. Foi durante o Seminário IBI-LABÔ Antissemitismo, História e Memória do Holocausto, dia 22 de agosto, em conversa com Andréa Kogan, doutora em Ciências da Religião e assistente acadêmica do LABÔ. A força da natureza dos acontecimentos pede ação e não só sinais de alerta. Pode ser tarde demais.
Confesso a vocês que me assusto com antevisões que se apresentam como um filme de terror na tela da vida da nossa contemporaneidade. Os capítulos são forjados com cavalarias digitais prontas para o ataque com notícias falsas e opiniões deformadas encaradas como fatos. As ameaças contínuas à democracia me inquietam frequentemente.
Porque assim foi com a Alemanha do século XX. Os arroubos do nazismo golpista também não foram levados a sério no início. O “vírus” foi tomando nova forma de contágio, foi ganhando contexto e mutações, revelando seus “inimigos hospedeiros”. A propaganda enganosa baseada em boatos e notícias falsas, reducionistas, simplistas e românticas tornou-se cada vez mais abrangente. Dedos começaram a ser apontados para os judeus e minorias diversas. O discurso da invencibilidade foi exaltado, acentuado e replicado. “Somos imbatíveis, incorruptíveis”, clamavam os nazistas. A Alemanha dos anos 30 tinha então uma plataforma genocida em franca expansão. Os tratados foram descumpridos, templos queimados, cientistas forçados ao exílio, campos de concentração construídos. 1933, como diz Karl Schurster, professor doutor em História Comparada pela UFRJ e estágio de pesquisa pela Freie Universitat Berlin, foi o ano em que todas as advertências foram dadas de forma sucessiva e incontestável: 30 de janeiro, o Presidente Paul von Hindenburg nomeou Adolf Hitler Chanceler da Alemanha; 1º de fevereiro: O Reichstag (Parlamento) foi dissolvido a mando de Adolf Hitler; 27 de fevereiro, um incêndio de origem criminosa destruiu a parte central do Palácio do Reichstag; 23 de março foi promulgada a Lei de Concessão de Plenos Poderes, também conhecida como Lei Habilitante (Ermächtigungsgesetz), que acabou com a democracia alemã de uma vez por todas, dando efetivos poderes de ditador a Hitler. O povo alemão caiu na armadilha de delatar, hipnotizado pelo delírio do salvador da pátria e da saudação nazista “Heil, Hitler”. Homens, mulheres, velhos e crianças foram infectados pelo vírus incurável do fanatismo, da discórdia e insanidade coletiva. O pandemônio se instalou.
Sim, o pandemônio refutou a ciência e culpou a imprensa de ser inimiga da nação. Sim, o pandemônio desmereceu o estado democrático de direito, desfez as reservas institucionais e desmantelou a sociedade civil organizada. O vírus nazista conseguiu seu intento: determinou quem deveria morrer, colocou o povo já vencido pela manipulação bem-sucedida e obstinada em liquidar seus pretensos oponentes, pronto para arar a terra com pesticidas de ódio gratuito. O resultado da colheita? As amargas ervas daninhas da Segunda Guerra Mundial e o Holocausto. Seis milhões de judeus viraram fumaça e tantos outros milhões de vidas inocentes desapareceram do planeta para nunca mais.
E fazendo uso das palavras do Sr. De-Nur durante o seu testemunho, precisamos urgentemente ter a obrigação de usar de toda a força, todo o poder para evitar que o Planeta Auschwitz ganhe influência no Planeta Terra. Francisco Moreno lembrou na sua fala durante o lançamento do relatório:
Nós fomos para esses trens com destino ao Planeta Auschwitz real. O que a gente espera é que a gente não trilhe de novo este caminho para este Planeta Auschwitz que nos influencia. Nós sabemos que judeus, negros, pardos e indígenas, quilombolas, como grupos étnicos, estamos para ser colocados neste vagão. E sabemos que LGBTQIA+, esquerdistas, opositores, também estarão conosco. O que temos a fazer é nos livrar deste planeta, nos afastar deste planeta maléfico.
E eu acrescento: o quanto antes!
Eu tenho esperança de que, juntos e com propósito, conseguiremos contar novos capítulos da nossa história como humanidade. Verdade dita muitas vezes vira história viva. Essa é a beleza do recurso de storytelling: o diálogo ecossistêmico fluido que se estabelece com o conhecimento compartilhado, construído e continuamente refinado em prol da expansão da consciência planetária. Vamos espalhar benefícios juntos.
Referências Bibliográficas
LEVI, Primo. É isto um homem? Tradução de Luigi del Re. 1a. ed. São Paulo: Rocco, 2013. 256 p. ISBN 978-85-325-0346-6.
MORENO, Francisco. Relatório sobre o Crescimento do Antissemitismo durante o governo Bolsonaro, proferido no dia 16 de agosto de 2022, na Câmara Municipal de São Paulo.
OZ, Amós. Como curar um fanático. Trad. Paulo Geiger. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. ISBN 9788535926699.
________. Mais de uma luz: Fanatismo, fé e convivência no século XXI. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. ISBN 9788535929379.
SINGER, Isaac Bashevis. 47 contos. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. ISBN 978-85-590-5038.
WIND, Eddy De. Última parada: Auschwitz. Meu diário de sobrevivência. 1a. ed. São Paulo: Planeta, 2020. ISBN 9788542218619.
Sites e vídeos
Eichmann trial: Session No. 68, 69. Youtube: 9 de mar. De 2011. Session No. 68. Survivor testimony: Yehiel Dinur. (Hebrew). Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=m3-tXyYhd5U&t=607s. Acesso em 19, 20 e 21 de ago. de 2022.
ARQUIVE.ORG. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. 2017 [publicação em 2006]. Disponível em https://tinyurl.com/mvddu8u7. Acesso em 19 de ago. de 2022.
HOLOCAUST ENCYCLOPEDIA: United States Holocaust Memorial Museum. Verbete Adolf Eichmann (Artigo Resumido). Disponível em https://tinyurl.com/3s56tvdw. Acesso em 20 de ago. de 2022.
____________. Marchas da Morte. Disponível em https://tinyurl.com/3spykf4u. Acesso em 20 e 21 de ago. de 2022.
HOWOLD. Biografia de Yehiel De-Nur. ©2022 HowOld.co. Disponível em https://www.howold.co/person/yehiel-de-nur/biography. Acesso em 21 de ago. de 2022.
PALAVRAS EM TRANSE. Testemunho de Yehiel De-Nur no julgamento de Eichmann. Qual o lugar do trauma no discurso jurídico? 2016. Disponível em https://tinyurl.com/y8e886em. Acesso em 21 de ago. de 2022.
RTP ENSINA. Hannah Arendt e a revelação no julgamento de Eichmann. 2017. Disponível em https://tinyurl.com/5n97vfj2 Acesso em 20 de ago. de 2022.
[1] Significando muçulmano; em polonês Muzułman era um termo pejorativo usado entre os prisioneiros dos campos de concentração nazistas da Segunda Guerra Mundial para se referir àqueles que sofriam de uma combinação de fome (conhecida também como “doença da fome”) e exaustão e que estavam resignados com sua morte iminente.
[2] Shoah tem sua raiz bíblica no termo “shoah u-meshoah” (devastação e desolação) que aparece tanto no Livro de Sofonias (1:15) quanto no Livro de Jó (30:3).