Notas
- Este texto foi produzido para registrar as discussões apresentadas no Seminário: IBI-LABO: Antissemitismo, história e memória do holocausto, realizado nos dias 23 e 24 de agosto de 2022, de forma on-line, no qual apresentei o conceito central desenvolvido na minha tese de doutorado, o neorestauracionismo. Portanto, é preciso salientar que este artigo é, em sua totalidade, parte das discussões feitas na tese de doutorado acima citada (Andréa CHAGAS, 2021).
- A autora deste trabalho é uma pessoa disléxica, com uma dislexia severa, e este apontamento é importante para ressaltar a participação e as possibilidades da pessoa com dislexia na vida acadêmica.
Resumo
Este texto é um fragmento das discussões feitas na tese de doutorado “Uma ponte para Jerusalém: Apropriações tecnoestéticas, neorestauracionismo e comunicação político-religiosa no Brasil contemporâneo”, defendida no ano de 2021, na Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT. Analisou-se a apropriação de elementos da cultura/religião judaica – como menorahs, talits, bandeiras de Israel, estrelas de Davi etc. – pelo neopentecostalismo (mais precisamente pela Igreja Universal do Reino de Deus-IURD), bem como os usos e atuações comunicacionais desses actantes (ou atuantes, ou atores), tanto no campo religioso quanto em discursos políticos-religiosos da contemporaneidade brasileira. Portanto, a partir dos estudos em comunicação e cultura, norteada pela TAR (teoria Ator-rede) e adotando uma abordagem de estudo das potências estética das técnicas, o objetivo nesta apresentação é pontuar algumas das principais características e agências do neorestauracionismo iurdiano, criando um resumo desta proposição teórica que chamamos de neorestauracionismo, ou seja, pontuar as principais características desta “onda” de apropriação de elementos da cultura/religião judaica, que atua afetando a experiência religiosa, apoiando os discursos político-religiosos entendidos como conservadores, por vezes, baseando-se na criação de uma Terra Santa imaginária e na figura de um judeu imaginário.
Palavras-chave: Neorestauracionismo, Tecnoestética, IURD, Judeu Imaginário, nova direita.
Introdução
Nos últimos anos, o uso e a apropriação de elementos/artefatos oriundos da cultura/religião[1] judaica, feito por diversos grupos religiosos brasileiros, têm chamado cada vez mais atenção. O uso de artefatos como menorahs, livros sagrados, Talits e Quipás, estrelas de Davi, ou palavras e celebrações tradicionais, feito por grupos religiosos não-judaicos; a utilização de símbolos e expressões feita por artistas gospel, o uso cada vez mais indiscriminado de bandeiras e símbolos e referências a Israel em eventos evangélicos desde a “Marcha Para Jesus” até manifestações políticas.
Apartando-se do espaço especificamente religioso, adentra-se no eleitoral. A campanha de 2018 e os anos subsequentes foram marcados pelo uso de imagens ligadas a elementos da cultura/religião judaica e outras referências a Israel, apropriados por grupos autodenominados conservadores e ligados à nova direita brasileira. Foram sequestrados juntamente com os símbolos brasileiros, incluindo palavras da língua portuguesa como patriota e família, que começaram não só a fazer parte de um vocabulário quase marcador da extrema-direita brasileira, como também tiveram seus fluxos informacionais (LATOUR, 2004ª, 2004b) ligados e engessados aos valores desse grupo. Portanto, uma onda tecnoestética, de apropriação, uso e cristianização de elementos da cultura/religião judaica ocorridos no passado recente, que optamos por chamar de neorestauracionismo.
O neorestauracionismo é um tema complexo, com múltiplos e distintos atravessamentos. Sua proposição é resultado de dez anos de estudos sobre a tecnoestética iurdiana e algumas temporadas em observação participante em cultos da Igreja Universal do reino de Deus (IURD), além de um ano de pesquisa de tipo etnográfico na Beit Midrash Shema Ysrael, comunidade judaico messiânica na cidade de Cuiabá (MT) – experiência que possibilitou o aprofundamento e a problematização de questões sobre a vida de alguns artefatos (atuantes não humanos) fora da vivência iurdiana.
Para cumprir o objetivo de pontuar algumas das principais características e agências do neorestauracionismo iurdiano na atualidade, ou seja, sinalizar as principais características desta “onda” de apropriação de elementos da cultura/religião judaica, feita pela IURD, este artigo está dividido em três partes: A primeira explica, de forma detalhada, o que é o neorestauracionismo; a segunda parte discorre sobre o percurso da pesquisa e o próprio rumo do neorestauracionismo na Igreja Universal; por fim, a terceira explana seus atravessamentos e pontos-chaves.
1. O que é neorestauracionismo?
O neorestauracionismo é uma proposição teórica feita na tese citada anteriormente (Andréa CHAGAS, 2021)[2], com base nos estudos, análises e observações da apropriação e uso de elementos da cultura/religião judaica feitos na contemporaneidade brasileira. Ou seja, foi criado a partir da pesquisa e reflexões feitas sobre a exacerbação e a extensão dos usos, apropriações, tradução(LATOUR,2004b) e cristianização de elementos da cultura/religião judaica feitos nos últimos anos no Brasil – elementos como menorahs, Talits, Quipás, bandeiras de Israel, estrelas de Davi, entre outras referências à história, rituais, crenças e tradições da comunidade judaica –,por grupos religiosos, grupos políticos, grupos autodenominados conservadores, assim como a usos desses artefatos, de uso popular, como discurso de força bélica e/ou espiritual, antagonismo às religiões de matriz africana, purismo religioso e primitivismo cristão. Um acontecimento que tem demonstrado força e relevância, não só na experiência religiosa contemporânea, mas no cenário político brasileiro.
O nome neorestauracionismo deriva do termo “restauracionismo”, acrescentando a ele o prefixo neo, ou seja, novo. Segundo Silvestre (2016), o restauracionismo é uma postura histórico-teológica recorrente no cristianismo, que busca restaurar algo que se entende ter sido perdido pela religião ao longo do tempo. Assim, espera-se restituir a religião, no caso o cristianismo, a um estado mais puro, um estado primeiro. Na Idade Média existiram grupos como “os franciscanos” que faziam esse movimento. A própria Reforma Protestante também seria, pelo menos em parte, um exemplo desse movimento de cisão e tentativa de restauração.
Portanto, existiram movimentos restauracionistas em vários momentos da história cristã, e esses grupos foram concebidos de várias formas diferentes ao longo dos anos. Cada um enfatizava algum atributo ou prática que acreditava estar “perdida”, enxergavam que sua religião teria se afastado, de alguma forma, de elementos e/ou crenças fundamentais para se viver um “verdadeiro cristianismo” e/ou estavam “corrompidas” e/ou distanciadas do caminho “original”. Um purismo que, segundo Nogueira[3] (2015), é difícil de definir com exatidão, pois, como explica o professor Mario Sergio Cortella[4], em entrevista à TV Bandeirantes, em 26/12/2010 “Não há um único cristianismo quando ele nasce, assim como também não há uma única forma de prática do judaísmo no século primeiro”. Sendo assim, formas de restauracionismo que busquem restaurar em sua totalidade um cristianismo primeiro, singular e puro guarda em si, de certa forma, a busca por um cristianismo imaginado, idealizado (Andréa CHAGAS, 2022).
Da mesma forma, é possível dizer que o neorestauracionismo também é atravessado por essa mesma busca por um passado idealizado. Contudo, o neorestauracionismo se difere em importantes aspectos, incluindo a multiplicidade dos seus processos já que não é um movimento isolado que acontece em uma determinada religião ou grupo religioso. O neorestauracionismo tampouco atua de forma única, pois atravessa várias religiões e grupos que utilizam o discurso religioso cristão contemporâneo, especialmente ou com mais profundidade o discurso cristão que se define como conservador. Também é preciso destacar que, diferentemente do restauracionismo, e apesar de interferir em práticas e na experiência religiosa cristã, o neorestauracionismo não cria, necessariamente, outras religiões, ou outras denominações dentro do mesmo grupo religioso.
No entanto, é importante esclarecer que toda pesquisa que propõe o neorestauracionismo é feita com base em uma análise comunicacional, mais precisamente uma análise tecnoestética da vida de artefatos religiosos no tempo presente, um estudo sobre as potências estéticas das técnicas, atmosferas sensoriais (SIMONDON, [1954] 1992), suas redes e agências (LATOUR, 2004ª, 2004b ). Logo, este texto não se propõe a construir diretamente uma análise teológica.
O neorestauracionismo é uma onda tecnoestética, um tipo singular de atmosfera sensorial que atua de forma diversa, como um arranjo comunicacional que volta seu olhar para o passado, que busca uma pureza perdida – talvez influenciada pela simétrica onda neoconservadora que tem se espalhado pelo mundo. Um actante que constrói/reconstrói relações com a experiência religiosa, um movimento que cristianiza elementos da cultura judaica e os traduz para os regimes de enunciação neopentecostais, repleto de aisthesis, um discurso que transpõe de templos religiosos a palanques eleitorais. Uma onda tecnoestética que tem a IURD como uma das suas principais representantes.
2. O neorestauracionismo iurdiano
Na Igreja Universal, os artefatos existem com um status de grande importância, pois atuam como mediadores da fé, sendo pontos centrais da experiência religiosa na IURD. Para “nascer” na IURD, os artefatos normalmente têm dois caminhos, duas características também centrais para se entender a Universal: a materialização de artefatos extraídos de textos bíblicos (objetos recriados na igreja, inspirados em trechos da Bíblia e entregues aos fiéis nos cultos) e processos de religiofagia.
A religiofagia iurdiana caracteriza-se pelo que Oro (2005) descreve como um “devorar outras religiões”, pois a religiosidade está repleta de artefatos com uma história amplamente ligada a outros grupos religiosos. Objetos, ritos e crenças que, ao serem trazidos para a IURD, são traduzidos para o seu seio. Durante muitos anos, e em grande parte, estes artefatos renascidos na IURD pareciam inspirados ou traduzidos de grupos católicos e grupos religiosos de matriz africana – como velas, rosas, fios de cabelo, fitas que lembram as fitas do senhor do Bomfim etc. Com o tempo, porém, a referência a elementos da cultura/religião judaica começou a ser cada vez mais frequente. Não que antes não existissem referências (como algumas imagens como menorahs), mas essas imagens começaram a aparecer com mais frequência e mais relevância.
Com o passar do tempo, ao visitar a IURD – apesar da profusão de artefatos de origem católica, das religiões de matriz africana ou mesmo de objetos místicos de práticas populares encontrados–, notei que existia uma curiosa mudança no uso de objetos religiosos de origem judaica, que começaram a ganhar cada vez mais destaque, importância e longevidade. Diversamente dos artefatos traduzidos de outros grupos religiosos, os artefatos traduzidos da religião, história e cultura judaicas não ganhavam destaque somente em correntes e campanhas, redes comunicacionais tão comuns na IURD, mas tinham um lugar, muitas vezes, permanente nos templos ou adquiriam uma nova performance ou novo destaque. Por exemplo, os menorahs, figuras já constantes e antigas na igreja, começaram a aparecer com mais frequência nos altares, crescendo em importância e tamanho, muitas vezes cristianizados com a palavra yeshua (salvador).
A partir da pesquisa de campo, pude notar o uso cada vez mais frequente de outros artefatos, como cálices, Talmudes, livros e palavras judaicas. Observei miniaturas do cajado de Arão em cultos, miniaturas da Arca da Aliança em lojas de souvenir ligadas à IURD, assim como pequenos frascos de óleo ungido, com folhas de oliveira imersa em seu interior, vendidas como folhas das oliveiras do Templo de Salomão.
Após a inauguração do Templo de Salomão, foi amplamente veiculada a imagem do bispo Edir Macedo, além de outros bispos da IURD, usando Talits e/ou Quipás. Além da mudança na atmosfera iurdiana com a introdução ou o aumento de figuras como a arca da aliança, tábuas dos 10 mandamentos e fragmentos de escrita em hebraico. Contudo, a mais importante e marcante característica do neorestauracionismo iurdiano é a construção/reconstrução da Terra Santa.
3. A Terra Santa
A criação de atmosferas sensoriais é uma das principais ferramentas comunicacionais da IURD (Andréa CHAGAS 2013, 2021). Neste mesmo contexto de análise tecnoestética também é possível afirmar que as atmosferas sensoriais iurdianas que atuam como criação/recriação da Terra Santa no Brasil são as mais importantes e singulares manifestações do seu neorestauracionismo. Essas atmosferas não se restringem a um único espaço. Cada vez mais, com o aprofundamento do neorestauracionismo iurdiano, elas nascem de formas diversas, em diversos espaços, mas é preciso entender o destaque de três arranjos sociotécnicos, joias do neorestauracionismo iurdiano, que se destacam tanto pela complexidade, na profusão de feixes e gamas sensoriais (SIMONDON, [1954] 1992), quanto pela performance artefatual e atuação na rede. (LATOUR, 2004b) São eles: O templo da Glória do Novo Israel, o Templo de Salomão e o Centro Cultural Jerusalém (CCJ). Duas catedrais e um centro cultural iurdiano, constituindo mais do que edificações, existindo como artefatos, materializações saídas da Bíblia. Catedrais também arquitetonicamente diferentes das demais, sem frontões, sem a fachada ornando o seu logotipo (da pomba em Pentecostes), sem seu slogan “Jesus Cristo é o Senhor”. Simplesmente, materializações bíblicas, assim como os artefatos dos cultos entregues aos fiéis, aqui já citados – porém desta vez artefatos não entregues nas mãos do público, mas dispostos nas ruas das cidades, aquilo que chamamos de catedral-artefato.
O Templo da Glória do Novo Israel, situado na cidade do Rio de Janeiro, é a primeira grande catedral iurdiana e um pequeno pedaço da Terra Santa entregue pela IURD à cidade. Essa construção possui grandes muros, com placas neles afixadas informando que foram feitos com pedras trazidas de Israel (da Terra Santa), e conta com jardins e construções que remetem a passagens bíblicas, incluindo fotos e imagens que aludem à cidade de Jerusalém. Uma gigantesca catedral para ser visitada no Rio de Janeiro, um espaço para abrigar os mais nobres casamentos e celebrações da IURD na Cidade Maravilhosa, uma catedral que guarda em seus entornos o Centro Cultural de Jerusalém (CCJ) e sua majestosa maquete da cidade Jerusalém.
O CCJ é um centro cultural que está incorporado ao templo da Glória do Novo Israel. Trata-se de uma atmosfera complexa, que abriga em seu interior uma maquete da cidade de Jerusalém no século I, além de outras composições de apoio construídas para compor a experiência religiosa à qual o espaço se destina. Uma atmosfera criada para transportar os atuantes no tempo e no espaço, como mostra a chamada do site do CCJ: “Conheça a terra santa sem sair do Brasil”. Essa atmosfera complexa, que, além de conter a cidade de Jerusalém, parada no tempo, inscrita, “mais bíblica” que a Jerusalém contemporânea, é apresentada para os turistas que visitam o local, “viva” e em movimento, veios d’água que correm em seus leitos e um céu estrelado que performa dia e noite, onde os actantes humanos que habitam as cidades são os fiéis turistas da Universal que transitam pelo lugar. Também para as pessoas que visitam o espaço, há um anfiteatro-igreja e um batistério em formato de oásis, ambos em tamanho natural, para uso dos turistas-fiéis. Um oásis cujas águas e pedras também são descritas, pelo menos em parte, como vindas da Terra Santa para o Brasil.
O Templo de Salomão – hoje a catedral máxima da IURD – encontra-se em um agitado bairro da cidade de São Paulo, envolto em um pujante comércio, pontos de ônibus, estações de metrô e toda acessibilidade e ruídos de uma grande metrópole, Também construído com pedras vindas de Israel, tem um luxuoso pátio, composto por jardins de oliveiras, um grande menorah, bandeiras de várias nações, flores, tamareiras, uma réplica de tabernáculo (edificação que remonta tanto à reconstrução de um espaço bíblico quanto à construção que apareceu em uma das novelas de maior audiência na televisão brasileira, “Os Dez Mandamentos”, produzida pela Record, braço televisivo da IURD), além de conter um Centro Cultural repleto de “relíquias” (criadas/recriadas pela IURD) dos tempos bíblicos. Este Centro Cultural ostenta em seu exterior uma pequena – se comparada às dimensões do templo -, mas reluzente, abóboda dourada, uma edificação que flerta com o contemporâneo, que parece remeter à imagem de Jerusalém no tempo presente e um dos postais mais conhecidos da cidade. Para finalizar, também está presente no pátio, um totem que promove o tour guiado pelos jardins anunciando: “viva uma experiência inesquecível”, seguido dos horários das visitas guiadas. No entanto, nos jardins do templo não há loja de souvenir, como há no CCJ no Rio de Janeiro. No Templo de Salomão, a loja de lembrancinhas fica fora do pátio, em um espaço vizinho ao local, uma óbvia atenção a detalhes do novo testamento.
Para além de sua existência como igreja, espaço litúrgico, sítio da religiosidade para os fiéis da IURD, o Templo de Salomão performa como construção/reconstrução de uma Jerusalém iurdiana, materializada dentro dos muros da Universal. Uma Jerusalém cristianizada, brasileira, conservadora, um ponto turístico da maior cidade do Brasil, mas que também transborda dela e ganha vida em novelas, séries e filmes, alimentando e sendo alimentada pela onda neorestauracionista contemporânea.
Dentro da rede sociotécnica, composta por atores humanos e não humanos, artefatos e comunidade, todos performam essa construção/reconstrução, não só as técnicas. Um exemplo desta participação de corpos humanos pode se imprimir na sutileza das matérias de veículos como TV Record e Folha Universal, ambos ligados à IURD, que na época da novela “Os 10 Mandamentos” falavam da grande possibilidade de boa parte da população brasileira ser descendente de Abraão.
Esta performance neorestauracionista dos corpos, também atravessou, tempos depois, o cenário político-religioso, principalmente parecendo manifestar-se com a ascensão da nova direita, nas eleições de 2018 (nova direita brasileira, atual aliança política da IURD), um grupo profundamente impactado pelo neorestauracionismo e que, nos últimos anos, contou com vários episódios de políticos cristãos de suas bases promovendo em seus discursos suas autodeclaradas origens judaicas.
Para autores como Zuker e Kruchin (2020), o interesse por Israel da nova direita brasileira vai além do discurso religioso. Esse grupo político entenderia o Estado de Israel como o símbolo do sucesso de uma direita conservadora e um muro que defende a “civilização judaico-cristã” (ZUKER; KRUCHIN, 2020).
Para Michel Ghermam (2019), tanto os evangélicos quanto grupos políticos como a nova direita trabalham com as mesmas perspectivas de uma “Israel Imaginária” e/ou um “judeu imaginário”, uma captura da “judaicidade” a partir de simplificações, engessamentos e do uso estereotipado da comunidade, da religião e da cultura judaica. Uma tradução do Estado de Israel e da cultura/religião judaica, feita por grupos políticos e religiosos para suas próprias redes e regimes de enunciação, onde a existência judaica será condicionada à figura de um judeu “religioso, conservador, heterossexual e de direita”, e onde a identidade judaica é estabelecida por uma “perspectiva da agenda evangélica, neopentecostal ou nova direita e Israel é o símbolo central” (GHERMAN, 2019)[5].
Portanto, quanto aos atravessamentos e às alianças entre grupos da nova direita e ao discurso religioso no neorestauracionismo, é possível observar que a nova direita possui importantes ganhos em vincular sua imagem a um discurso pretensamente filossemita, pois, além dos aspectos religiosos que possam existir nestes vínculos, a partir de um ponto de vista estratégico, mercadológico, o filossemitismo é particularmente interessante para esse seguimento político no Brasil – já que é possível lembrar que o discurso político-religioso do bolsonarismo, conviveu ao mesmo tempo com imagens como as das bandeiras de Israel, misturadas a cruzes e bíblias, que estampavam cada manifestação política, existindo como discurso de vínculo com Israel e purismo cristão. Cenas produzidas no governo do ex-presidente Jair Bolsonaro – maior representante da nova direita –foram diversas vezes criticadas por grupos da comunidade judaica: incidentes, eventos e declarações apontadas como antissemitas, encontros com figuras públicas sabidamente antijudaicas, além de escândalos, como o caso do Secretário Especial de Cultura, Roberto Alvim, que, em um pronunciamento para divulgação do Prêmio Nacional das Artes, teria supostamente feito uma quase reinterpretação de um discurso de Joseph Goebbels, ministro da propaganda nazista.
Quanto aos ganhos da Igreja Universal, com as atuais uniões políticas potencializadas pelos laços tecnoestéticos entre IURD e nova direita, é preciso lembrar que sempre foi importante para ela aliar-se a governos e grupos no poder. Para Nascimento (2019), contudo, a IURD nunca se sentiu tão à vontade com um grupo político como se sente com a atual aliança com a nova direita, algo com que esta pesquisadora da comunicação iurdiana tende a concordar.
Considerações Finais
O neorestauracionismo é um tema complexo e extenso, e nesta pesquisa entendido como uma onda tecnoestética contemporânea. Ao observar o neorestauracionismo neopentecostal em nossos dias, mais precisamente na Igreja Universal do Reino de Deus, pontuam-se aqui algumas de suas principais características.
A partir dos aspectos relatados, torna-se possível afirmar que a construção/reconstrução da Terra Santa no Brasil é uma característica, quiçá a mais importante, do neorestauracionismo iurdiano. Portanto, a materialização de artefatos e a religiofagia iurdiana atuam como duas das principais características do seu neorestauracionismo, pois ora inscrevem-se transpondo o espaço e o tempo bíblico para viverem nas mãos de seus fiéis, ora traduzem elementos subtraídos da cultura/religião judaica e dos movimentos de restauração plena[6] tão atuantes.
Também destacamos que o uso pela IURD de artefatos oriundos da cultura/religião judaica, além de guardar em si um importante aspecto estratégico dentro de sua comunicação, e do uso das potências estéticas das técnicas, significativo traço da cultura e de suas estratégias comunicacionais, também chancela o caráter e o discurso iconoclasta e não idólatra tão importante para religiões protestantes, apresentando atravessamentos mercadológicos de purismo religioso, de culto a um passado idealizado e de apelo à figura de uma Terra Santa construída/reconstruída pela Igreja Universal.
Referências
CHAGAS, Andréa B. da S. Uma ponte para Jerusalém: Apropriações tecnoestéticas, neorestauracionismo e comunicação político-religiosa no Brasil contemporâneo. Tese. (Doutorado em Estudos de Cultura Contemporânea). Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, Mato Grosso, 2021. 308 f.
CHAGAS, Andréa B. da S. Entre sinos e drive-thrus e o reino de Deus: tramas tecnoestéticas e atmosferas sensoriais.Dissertação (Mestrado em Estudos de Cultura Contemporânea). Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, Mato Grosso, 2013. 144 f.
CHAGAS, Andréa B. da S.; CORADINI, Ângela.; GALINDO, Dolores C. G. Orações e objetos: performances tecnoestéticas e modos de fala do discurso religioso. In: INTERCOM, 2015, Rio de Janeiro. Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação, XXXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. Rio de Janeiro, RJ – 4 a 7/9/2015, 2015.
GHERMAN, Michel. Deus e Diabo na TerraSanta: pentecostalismo brasileiro em Israel WebMosaica: Revista do Instituto Cultural Judaico Marc Chagall, v.1 n.1 (jan-jun), 2009.
GHERMAN, Michel. Quando a nova esquerda e a nova direita encontram a Israel imaginária no Brasil. IBI – Instituto Brasil-Israel. Disponível em: https://tinyurl.com/ykdphfy4. Acesso em: 31 jul. 2019.
GHERMAN, Michel. A reunião ministerial e o nazismo à brasileira: uma crônica sobre a gramática do Governo Bolsonaro. Disponível em: https://tinyurl.com/mwsuvhes. Acesso em: 01 ago. 2021.
LATOUR, Bruno. “Não congelarás a imagem” ou como não desentender o debate ciência- religião. Rio de Janeiro, v. 10, n. 2, p. 349-376, ago. 2004a.
LATOUR, Bruno. Redes que a razão desconhece: laboratórios, bibliotecas e coleções. Porto Alegre: Tramas de Redes Sulinas, p. 39-63, 2004b.
NASCIMENTO, Gilberto. O reino. Companhia das Letras. Edição do Kindle. 2019.
ORO, Ari Pedro. O neopentecostalismo macumbeiro. Revista USP, São Paulo, n. 68, pp. 319-332, dez/fev, 2005/2006. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/revusp/article/view/13505. Acesso em: 11abr. 2019
SIMONDON, Gilbert. Sobre a tecnoestética: carta a Jacques Derrida. Paris: [1954] 1992. ZUKER, Fábio; KRUCHIN, Rafael. Sequestro de símbolos: o que a bandeira de Israel em um ato antidemocrático nos diz sobre o bolsonarismo. Estado da Arte. Disponível em: https://estadodaarte.estadao.com.br/sequestro-simbolos-zuker-kruchin/.
[1] Apesar da pluralidade judaica, cultural e religiosa, optamos por usar o termo cultura/religião judaica, no singular, porque a construção deste judaísmo imaginado e apropriado por alguns grupos cristãos é de fato simplificado e representado como unidimensional, uma interpretação cristã de figuras bíblicas. Além disso a escrita no singular também facilita a feitura do texto.
[2] Esta forma de citação, usando também o primeiro nome, quando a citação se referir a uma autora é uma forma de pontuar e visibilizar a participação das mulheres no mundo acadêmico.
[3] Disponível em: file:///C:/Users/Andr%C3%A9a/Downloads/DialnetOCristianismoPrimitivoComoObjetoDaHistoriaCultural-5381763.pdf acesso em: 18/03/2020.
[4] Entrevista no canal da internet de Mario Sergio Cortella, Clóvis de Barros Filho e Leandro Karnal. disponível em: https://tinyurl.com/2k27thrk. acesso em: 18/03/2020.
[5] Disponível em: https://tinyurl.com/3nhtntd3 acesso em: 18/03/2020.
[6] Os grupos de restauração plena são grupos de judaísmo messiânico, movimento que, segundo Marta Topel (2011), cresceu no Brasil nas últimas décadas, e que acreditamos ser a maior fonte de inspiração para a religiofagia iurdiana.