Revista Laboratório Temática 3 – Antissemitismo, História e Memória do Holocausto

A memória da Shoah na literatura de ficção

Resumo: Partindo da constatação de que a questão do “lugar de fala” está superada, ou seja, de que não se discute mais se é eticamente aceitável a representação da Shoah, em obras de ficção, por autores não necessariamente sobreviventes da catástrofe, este artigo busca pôr em evidência a importância da memória da catástrofe na construção das tramas e dos protagonistas nessa literatura; em particular, será abordada a obra do escritor judeu Samuel Rawet, que nasceu na Polônia e veio para cá ainda na infância; Rawet é tido como o renovador do gênero conto na literatura brasileira, além de ser um dos pioneiros a tratar da temática da imigração judaica para o Brasil.

Palavras-chave: Shoah; literatura judaico-brasileira; Samuel Rawet.

Apresentação

A questão do “lugar de fala”, ou seja, se só os sobreviventes estão autorizados a falar da Shoah ou se é eticamente aceitável sua representação em obras ficcionais, parece pacificada: por todo o mundo e ao longo das últimas décadas, destacados autores não sobreviventes e não necessariamente judeus, como o israelense David Grossman, a norte-americana Cynthia Ozick, o italiano Giorgio Bassani e o sueco Ingmar Bergman, para citar uns poucos exemplos, abordaram o tema em suas produções ficcionais.

Mesmo no Brasil, que não foi diretamente afetado pela catástrofe e para onde afluiu um número relativamente pequeno de refugiados, grandes escritores assinaram obras tematizando a barbárie desencadeada e implementada pela máquina nazista.

Um dos primeiros a empreender esse caminho em nossas terras foi Samuel Urys Rawet.

Rawet nasceu na Polônia, em 1929, em Klimontóv – pequena aldeia próxima a Varsóvia habitada majoritariamente por judeus – e veio para o Brasil, acompanhando sua família, em 1936. Aqui nosso autor integrou-se e adquiriu cidadania. Lembremos que a situação dos judeus na Polônia, naquela época – período entre guerras marcado pela reconstrução da autonomia estatal polonesa e pela imposição de legislação que garantia os direitos das minorias pelas potências vencedoras –, era de dificuldades econômicas e sociais enormes, além de registrar a ocorrência de pogroms; quadro agravado pelo acentuado crescimento da população judaica, em toda a Europa oriental, num ritmo muito maior do que o da população não judaica, resultando na emigração de centenas de milhares de seus correligionários, inclusive para o Brasil. Jeffrey Lesser aponta que, entre 1933 e 1936, chegaram ao Brasil, provenientes da Polônia, 5.943 judeus, correspondendo a 48% da imigração judaica total para nosso país[1].

Uma consequência positiva desse translado é que a família de Rawet não foi submetida às atrocidades nazistas. Mas quando, em 1945, com o fim da guerra, começaram a chegar ao Brasil sobreviventes dos campos de concentração e de extermínio, Samuel estava no final de sua adolescência, entrando na idade adulta; época em que colaborou como voluntário em instituições de acolhimento e, nesta condição, teve contato com inúmeros refugiados, que para cá vinham com suas vidas destruídas, o que o expôs a seus traumas, suas memórias dilacerantes, suas expectativas de reconstrução. É provável também que familiares seus tenham ficado na Europa e sido vítimas da campanha nazista de extermínio do povo judeu.

Enquanto estudava engenharia – veio a se tornar especialista em cálculo de estruturas de concreto, inclusive participando do projeto de construção de Brasília – Rawet começou a publicar contos em suplementos literários de jornais. Em 1956, foi-lhe oferecida a oportunidade de reunir alguns deles para a coletânea Contos do Imigrante, seu primeiro livro, lançado pela José Olympio. Na ocasião, Jacó Guinsburg apontou para o fato de que essa coletânea focalizava aspectos originais da imigração judaica no Brasil e assinalava o surgimento de jure do assunto em nossas letras[2].

Dos dez contos que compõem essa primeira coleção, nada menos do que cinco são dedicados a temáticas judaicas, refletindo a importância que o judaísmo sempre teve para Rawet, seja de forma positiva ou, mais tarde, negativa. Em quatro destes cinco a trama tem a ver com a hecatombe nacional-socialista, e a memória da Shoah é relevante no comportamento dos respectivos protagonistas, quase alçada à posição de personagem. Cumpre registrar a reflexão de Márcio Seligmann-Silva, para quem História e memória constituem uma dicotomia, de forma que um registro não deve apagar o outro[3].

Neste artigo, analisaremos os quatro contos da coletânea Contos do Imigrante nos quais Rawet refletiu sobre a Shoah, destacando neles o papel exercido pela memória na construção dos protagonistas, que é o que me concerne aqui. Como muito bem observado por Assis Brasil na apresentação da segunda edição da obra de Rawet, lançada em 1972 pela Ediouro, Rawet quebrou a estrutura do conto tradicional, não tendo medo de eliminar os enredos empolgantes e os personagens delineados psicologicamente. Segundo o crítico, seus contos são subjetivos, quase herméticos, alguns deles mergulhados em densa atmosfera de angústia.[4]

“O profeta”

Começo por “O profeta”. O conto narra a trajetória de um sobrevivente idoso que, tendo perdido esposa e filhos na Shoah, vem para o Brasil logo após o final da guerra, ao encontro do irmão, que imigrara trinta anos antes, e que aqui havia enriquecido e constituído família, vivendo em um apartamento luxuoso com esposa, filha, genro e netos.

Em menos de um ano de convívio com a família do irmão e de frequentação de uma sinagoga, o protagonista se decepciona profundamente com o que considera insensibilidade, falta de compreensão e solidariedade de parte dos que, por obra do destino, tinham sido poupados da catástrofe. “Supunha encontrar aquém-mar o conforto dos que como ele haviam sofrido, mas que o acaso pusera, marginalmente, a salvo do pior. E conscientes disso partilhariam com ele em humildade o encontro”, reflete o narrador, indicando de forma irônica que o personagem vislumbrara “um ligeiro engano”.[5]

O conto dá destaque a um fenômeno pressentido por Rawet e também registrado por importantes pensadores que estiveram internados em campos nazistas, em suas memórias, como Primo Levi, Jorge Semprun e Ruth Klüger, ou seja, a premonição da indiferença com que seus relatos seriam recebidos por parentes e amigos. O “profeta” de Rawet, que inicialmente recusava-se a falar do que tinha vivenciado na Europa, resistindo às pressões a que era submetido, finalmente decide principiar a narrar. Percebe, então, que o que tinha a contar não parece lhes interessar. Até mesmo o aconselham a desistir, já que sofria muito quando tentava contar. Conforme constatou Primo Levi em Os afogados e os sobreviventes – obra publicada em 1986 –, quase todos os sobreviventes recordavam um sonho muitas vezes recorrente nas noites de confinamento: o de terem voltado para casa e contado com paixão e alívio seus sofrimentos passados, dirigindo-se a uma pessoa querida, e de não terem crédito ou mesmo nem serem escutados.[6]

O mesmo fenômeno é testemunhado, por exemplo, por Jorge Semprun em A Escrita e a vida, de 1994. Naquela obra autobiográfica, o autor reporta que, numa conversa com outros detentos à espera de serem libertados, a respeito de como deveriam narrar a experiência no campo para que viessem a ser compreendidos, um deles comentou que “o verdadeiro problema não é contar, quaisquer que sejam as dificuldades. É escutar. Vão querer escutar as nossas histórias, mesmo que sejam bem contadas?”[7]

A própria alcunha do protagonista, que dá título ao conto, “profeta”, é uma zombaria criada pelo genro do irmão, aludindo a seu aspecto: a barba branca, o capotão além do joelho, acrescida à dificuldade de entender o que dizia – já que da língua portuguesa nada havia aprendido –, certamente fariam com que rissem da magra figura toda negra, exceto o rosto, a barba e as mãos.

Em contraste com o ambiente de indiferença no qual está vivendo agora, a memória do que tinha passado nos campos nazistas o atormenta de forma angustiante, insuportável. Literalmente, o faz perder o sono:

As formas na penumbra do quarto (dormia com o neto) compunham cenas que não esperava rever. Madrugadas horríveis e ossadas. Rostos de angústia e preces evolando das cinzas humanas. As feições da mulher apertando o xale no último instante. Onde os olhos, onde os olhos que mudos traíram o grito animal? (RAWET, 2004, p. 29)

O conto começa in media res[8], recurso que Rawet utiliza com frequência e muita competência. Desiludido do que um ano antes achara que poderia ser um novo começo, um caminho de saída de sua tragédia pessoal, o “profeta” resolve voltar para a Europa, apesar de entender que a decisão é vazia e inconsequente. Quando a narrativa inicia, tudo já aconteceu: a personagem principal já está na beira do cais, esperando a partida do navio que vai levá-lo para o nada. Segue-se um grande flashback relatando o que aconteceu desde a chegada do “profeta” ao Brasil até aquele momento. Mas a trama não é conclusiva. O protagonista titubeia. É tamanha sua ambivalência que talvez desista de voltar para a Europa e acabe por se submeter às circunstâncias impostas pela residência com os parentes.

“A prece”

“A prece” é o único dentre os quatro contos em que o protagonista é nomeado. Ida é uma refugiada que depois da guerra vem para o Brasil por acaso, sem família, sem amigos, sem ninguém à sua espera. No início, é bem recebida pela comunidade judaica, que a acolhe e ouve suas histórias com interesse. Ao cabo de um mês, no entanto, as histórias cansam e a bondade se esvai; Ida recebe um pacote de mercadorias para oferecer de porta em porta e é “convidada” a trabalhar como clienteltchik e a morar em um casarão, experiências pelas quais certamente nunca passara em sua vida pregressa.

O conto se detém na primeira sexta-feira que Ida vai passar no cortiço, nos seus preparativos para o cumprimento das obrigações do shabat que incumbem à judia devota. Após as providências iniciais – limpar o quarto, guarnecer a mesa com uma toalha limpa, pôr uma posta de peixe para cozinhar –, Ida acende as velas da tradição e dá início à recitação da prece indiciada no título do conto. Seu estado de espírito é de tanta revolta contra as condições de vida que enfrenta, que a prece lhe sai da boca como um desabafo violento, uma querela com Deus, como judeus costumam promover pelo menos desde o Jó bíblico.

Entretanto, os moleques que também residem no casarão, e haviam resolvido espioná-la, espantam-se com o que presenciam e resolvem convocar os adultos; as velas acesas juntamente com a luz elétrica dão-lhes a impressão de ter alguém morto no quarto da estrangeira. Os adultos[1]  comparecem, num primeiro momento concordando com as crianças e invadindo o quarto de Ida, que parece sequer perceber as presenças insólitas, até que um deles interrompe as manifestações de hostilidade por parte dos moradores, afirmando que aquilo que viam “é reza lá da terra dela”[9].

A lembrança do que passara na Europa, da perda de marido e filhos, é evocada pelo retrato do marido pendurado na parede, ele também em atitude de prece:

Na parede os olhos de Isaias, em prece, assustaram-se com o tlic da fotografia. Ida lembrou o esforço para convencê-lo a deixar o retrato, conseguido de surpresa. Agora pendia amarelado, a mancha da barba, as sobrancelhas arqueadas e uns olhos de susto. Dos outros nada mais ficara. Os olhos de Ida tremeram na lembrança. Que pesadelo! (RAWET, 2002, p. 33)

Não obstante, ao contrário do “profeta”, Ida não vai se render. Não vai voltar para o local de seu pesadelo. De uma forma ou de outra, obteve o reconhecimento da comunidade que habita o cortiço, que reconheceu[2]  seu direito a rezar “como na sua terra”, a observar seus costumes e tradições, e agora vai recomeçar sua vida.

Na verdade, devo reconhecer que essa conclusão é questionável. Mais uma vez, Rawet termina o conto em chave de ambiguidade, recurso coerente com a sofisticação de sua escrita, com sua opção por eliminar os enredos empolgantes. Transcrevo abaixo o trecho final do conto:

Um estreitamento da garganta fê-la soltar com um soluço tudo que lhe boiava no interior. Sentiu-se oca. Os dedos magros se entrelaçaram e com os dois punhos fundidos esfregou a testa. Oca. Soprou as velas uma a uma, serena, calma. Sentada diante dos castiçais, os olhos de Ida miravam os tocos apagados, e seguindo a linha das gotas de cera, glóbulos amontoados em miniaturas estranhas, a cabeça tombou silenciosa na toalha branca. (RAWET, 2004, p. 35)

Admito que esse trecho pode ser entendido de outra forma. Tal como os tocos de vela apagados, Ida pode ter sucumbido.

“Gringuinho”

O conto “Gringuinho” foi incluído na coletânea Os cem melhores contos brasileiros do século, organizada pelo professor, poeta e crítico literário Italo Moriconi e publicada em 2001 pela editora Objetiva. Trata-se de um conto muito curto, de apenas três páginas.

A trama, mais uma vez, é bastante simples, nada empolgante: um menino vem para o Brasil acompanhando sua família que busca afastar-se das péssimas condições de vida dos judeus no leste europeu. O menino, de quem não se saberá o nome, tem dificuldades consideráveis para se adaptar; na escola, depois de meses ainda é vítima do que hoje se entende por bullying; seu sotaque estranho lhe rende o apelido “gringuinho”. Como no conto “O profeta”, o apagamento de um nome próprio, substituído por um apelido humilhante, empregado de modo zombeteiro e depreciativo, salienta a condição de exclusão dos respectivos protagonistas.

No conto, no tempo narrado mais recente, ocorre a catástrofe: o menino, tentando resguardar-se da zombaria dos colegas, acaba por bater na professora; mandado para casa, entende que não poderá voltar para aquela escola; e, por sua vontade, não iria para nenhuma outra.

Mais uma vez, a narrativa começa in media res, com o menino chegando em casa, refletindo sobre o que lhe tinha acontecido, e procede por avanços e recuos temporais.

Quando chega em casa, contendo o choro, é ignorado por sua mãe, como sempre atarefada com a cozinha e com o filho bebê. A mãe[3]  é a única pessoa para quem uma criança pode se queixar, ainda que o objeto da queixa seja ela mesma. Machucado com a falta de acolhimento da mãe[4]  diante da tragédia que lhe ocorreu, o menino se sente abandonado.

Em suas reflexões, o menino[5]  ressente a diferença entre a condição que está vivenciando agora e a vida que tivera “lá”, “antes do navio”. Mais uma vez, a crise existencial é agudizada pelas memórias. O protagonista lembra com nostalgia da infância perdida – talvez um pouco idealizada –, da liberdade, dos amigos e, especialmente, de sua afeição pelo avô, de quem não sabe mais nada, provavelmente vítima da barbárie nazista:

Antigamente, antes do navio, tinha seu grupo. Verão, encontravam-se na praça e atravessando o campo alcançavam o riacho, onde nus podiam mergulhar sem medo. […] Castanheiros de frutos espinhentos e larga sombra, colinas onde o corpo podia rolar até a beira do caminho. Framboesas que se colhiam à farta. Cenoura roubada da plantação vizinha. […] No inverno havia o trenó que carregava para montante, o rio gelado onde a botina ferrada deslizava qual patim. Em casa a sopa quente de beterrabas, ou o fumegar de repolhos. Sentava-se no colo do avô recém-chegado das orações e repetia com entusiasmo o que aprendera. Onde o avô? Gostava do roçar da barba na nuca que lhe fazia cócegas, e dos contos que lhe contava ao dormir. (RAWET, 2004, p. 43)

Comandado várias vezes [FCS6] a ir buscar cebolas no armazém, o menino por fim atravessa o portão e acelera a marcha, tomado pelo desejo de já ser homem, pois, pensa, correndo apressará o tempo.

Do ponto de vista estrutural, cabe assinalar que a narrativa se desloca constantemente entre os vários tempos narrados, a saber: as tentativas de integração do protagonista; suas lembranças da vida antes da imigração; os maus tratos aos quais é submetido na escola; e o retorno para casa – como se pode observar no seguinte trecho, que imbrica três narrativas em um mesmo parágrafo:

A voz do avô era rouca, mas boa de se ouvir. Mais quando cantava. Os olhos no teto de tábuas, ou acompanhando a chaminé do fogão, a melodia atravessava-lhe o sono. Hoje entrara tarde na sala. Não gostava de chamar a atenção sobre si, mas teve que ir à mesa explicar o atraso. Cinquenta pares de olhos fixos em seus pés que tremiam. O pedido de cebolas veio mais forte. Gargalhada maciça em contraponto aos titubeios da boca, olhos e mãos. (RAWET, 2004, p. 43)

“Réquiem para um solitário”

Finalmente, “Réquiem para um solitário”. Nesse conto, os fatos concernidos não são registrados claramente, como nos anteriores, mas apenas sugeridos, delineados, de muito longe, numa espécie de penumbra. Não por acaso, tudo se passa em uma madrugada.

O conto trata de uma situação lamentável, mas compreensível, que ocorreu não poucas vezes em conexão com a Shoah: um judeu emigra da Europa, antes da guerra, deixando a família para trás, aqui reconstrói sua vida, mas seus familiares que ficaram na Europa acabam por perecer, vítimas da barbárie nazista.

O imigrado sempre poderia ter feito mais para salvá-los.

O protagonista, há vinte anos no Brasil, lutou e desenvolveu negócios que lhe propiciam um padrão de vida elevado; no conto – que mais uma vez começa in media res –, é confrontado por um filho, que encontrou uma carta muito antiga e, com isso, teve acesso a um passado que o protagonista gostaria de manter sepultado. Não temos acesso ao conteúdo da carta, nem à identificação do remetente. Pode-se supor que contém um apelo de parentes no sentido de ajudá-los a também fugir para o Brasil.

A culpa de não ter se empenhado em trazer os familiares é uma carga insuportável para quantos passaram por essa situação. Réquiem, como sabemos, é uma missa católica em homenagem a um morto, uma prece para que descanse em paz. É tamanho o sentimento de culpa do protagonista que ele se sente com “a morte na alma”, para utilizar o título do romance de Jean-Paul Sartre.

Os fatos evidenciados pela carta apresentada pelo filho obrigam a personagem principal a enfrentar lembranças terríveis. A narrativa encadeia os acontecimentos do presente com o registro do que ficou para trás de forma tão sutil que o leitor deve prestar muita atenção para identificar os diversos tempos narrados. O impossível monólogo interior do protagonista emudecido é incorporado pelo narrador, que assim lhe dá voz, em discurso indireto livre:

Na mesa uma carta estendida, relato impiedoso de um mundo que foi. […] (Céus! Como não endoidecer!…) Das casas, nada mais que ruínas. E nos bosques dos arredores há valados e valados de corações roídos pelas balas, e há galhos de castanheiros que resistem ao balanço de olhos esbugalhados. […] Procissão de rostos, esfumaçados uns, dolorosamente nítidos outros, avô, tio, primo, barbas ralas e majestosas num titubear de preces em juízo final. (Céus! Como não endoidecer?) Por que, no cais, ao invés de abanar lenços, não correram pranchão acima? (RAWET, 2004, p. 49)

O mal-estar do protagonista é intensificado pelo contraste com a indiferença da esposa, insensível às consequências dos acontecimentos remotos, talvez desconhecedora da própria existência da carta:

A mulher permanecia na varanda. Ele a deixara estirada na espreguiçadeira, o rosto balofo satisfeito, as pernas e braços pesados, frouxos, apontando do vestido barato. (Ela pouco se acostumara à mudança. Quase não se transformara. O corpo relaxado transpirava cansaço e satisfação do trabalho. Tarefa cumprida.) (RAWET, 2004, p. 46)

Conclusão

A questão do “lugar de fala” em relação ao que ocorreu durante o período nazista despertou vivas polêmicas, pois alguns sobreviventes sustentavam que somente quem passou pelas atrocidades nacional-socialistas teria legitimidade para falar a seu respeito. Essa polêmica, no entanto, acabou por ser esvaziada.

Essa reflexão é importante porque, como assinalou Emmanuel Lévinas, a literatura permite penetrar – atrás da forma que a luz revela – nessa materialidade que constitui o fundo obscuro da existência. Referindo-se a Huysmans, Zola e Maupassant, o filósofo afirma que as obras desses autores nos fazem aparecer as coisas através de uma noite, como uma monótona presença que nos sufoca na insônia.[10] Ou seja, ao contrário de disciplinas como a sociologia, a história, a psicanálise, que buscam iluminar o objeto de estudo, às vezes até o ponto de ofuscamento, a literatura, utilizando o recurso da individualização, permite a observação mediada por uma penumbra.

Escrevendo bastante próximo dos acontecimentos, e sem ser um dos sobreviventes, Samuel Rawet dedicou parcela considerável de sua produção contística inicial ao tema da memória da Shoah; com isso, sem perda da elevada qualidade literária, elaborou um amplo panorama, nos brindou com uma espécie de catálogo, um arquivo, registrando quatro das possíveis maneiras pelas quais o tema se manifesta.

Arquivo esse que, evidentemente, veio a ser enriquecido e ampliado por autores que ingressaram no terreno literário mais tarde e se debruçaram sobre o registro da catástrofe, consolidando, desta maneira, a legitimidade de abordar a Shoah em obras de ficção.

Como se sabe, Samuel Rawet acabou por romper publicamente com a comunidade judaica[11], declarando que sua experiência concreta com o judaísmo só lhe havia mostrado os elementos negativos.[12] Não obstante, a temática judaica acompanhou toda sua obra, nela cabendo destaque para o registro da Shoah.

Referências

BRASIL, Francisco de Assis Almeida. “Samuel Rawet, um marco literário” in Francisco Venceslau dos Santos (org.) – Samuel Rawet: fortuna crítica em jornais e revistas. Rio de Janeiro: Editora Caetés, 2008.

GUINSBURG, Jacó – “Os imigrantes de Samuel Rawet” in Paratodos, quinzenário da cultura brasileira, ano II n. 30, Rio-S.Paulo, 1a quinzena de agosto de 1957.

LESSER, Jeffrey. O Brasil e a questão judaica. Tradução de Marisa Sanematsu. Rio de Janeiro: Imago, 1995.

LEVI, Primo. Os afogados e os sobreviventes. Tradução de Luiz Sérgio Henriques. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.

LÉVINAS, Emmanuel. Da existência ao existente. Tradução de Paul Albert Simon e Ligia Maria de Castro Simon. Campinas, SP: Papirus, 1998.

RAWET, Samuel. Contos e novelas reunidos. Organização André Seffrin. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.

RAWET, Samuel. Ensaios reunidos. Organização Rosana Kohl Bines e José Leonardo Tonus. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.

SELIGMANN-SILVA, Márcio (org.). História, memória, literatura: o Testemunho na Era das Catástrofes. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2005.

SEMPRUN, Jorge. A escrita ou a vida. Tradução de Rosa Freire D’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

[1]     Lesser, 1995, p. 320.

[2]     Guinsburg, 1957.

[3]     Seligmann-Silva, 2003, p. 62.

[4]     Assis Brasil, 2008, pp. 274-275.

[5]     Rawet, 2004. p. 26.

[6]     Levi, 1990, p. 1.      

[7]     Semprun, 1995, pp. 124-125.

[8]     Latim para “no meio das coisas”. É uma técnica literária em que a narrativa começa no meio da história, em vez de no início.

[9]     Rawet, 2004, p. 35.

[10]   Lévinas, 1998, p. 70.

[11]   Ver “Kafka e a mineralidade judaica ou a tonga da mironga do kabuletê”, de 1977, incluído em Rawet, 2008, pp. 191-195.

[12]   Rawet, 2008, p. 141.

Sobre o autor

Saul Kirschbaum

Doutor em Letras pelo Programa de pós-graduação em Língua Hebraica, Literatura e Cultura Judaicas da FFLCH/USP e pós-doutor pela UNICAMP. Pesquisador do Grupo de Judaísmo Contemporâneo e do Grupo Diálogos da Diáspora – Racismo e Antssemitismo, do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo /PUC-SP – LABÔ.