Teologia Cristã e Religião Contemporânea

Hipersensibilidade e radicalismo entre evangélicos bolsonaristas

Introdução

Ao longo das últimas duas décadas do século XX, os evangelicalismos brasileiros iniciaram um processo gradativo de aproximação com o sistema político – processo este que se intensificou no século XXI, colocando as igrejas e comunidades evangélicas em um intenso engajamento político-partidário inédito na história desse fenômeno religioso em terras brasileiras. Após a redemocratização do Brasil, o campo evangélico conservador midiático foi gradativamente cooptado pelos discursos ideológicos da extrema-direita, que, ao vencer as eleições presidenciáveis de 2018, acabou trazendo à igreja evangélica uma relação de proximidade com o poder político central sem precedentes. Os evangélicos conservadores, midiáticos e históricos,[1] que são maioria – chamados também de mainstream evangélico –, possuem representantes significativos se valiam de argumentos de natureza teológica, moral e escatológica, à luz do pensamento religioso fundamentalista de origem norte-americana, na defesa obstinada da manutenção desta aliança com esse espectro político.

Para os evangélicos, o primeiro e segundo turno das eleições de 2022 ganharam contornos de guerra espiritual, dentro e fora dos templos. Nestas eleições de 2022, o candidato à reeleição da extrema-direita, Jair Messias Bolsonaro, nunca esteve à frente nas pesquisas eleitorais, o que só intensificou a dramaticidade e radicalização da mensagem político-religiosa. No intervalo entre o primeiro e segundo turnos, os cultos das igrejas explicitamente bolsonaristas se transformaram em comícios eleitorais. Membros e líderes que expressassem opinião diversa e destoante foram perseguidos. Houve intensa produção e divulgação de fake news,e crescente incentivo à hostilidade, por palavras ou ações, por parte dessas lideranças.

Encerrada a contagem dos votos, os apoiadores do candidato derrotado em 2022 foram estimulados a ocupar lugar em acampamentos à frente de quartéis e unidades militares em diversas cidades brasileiras. Nestes acampamentos, financiados e organizados por eleitores do ex-presidente, além do uso de símbolos militares – e até nazistas –, houve uma doutrinação diária com questionamentos à lisura do processo eleitoral e disseminação de supostas ameaças à nação brasileira que se tornariam reais com a posse do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva. Informações de pessoas inseridas nesses acampamentos indicam inúmeros cultos evangélicos, pessoas armadas e discursos conspiracionistas e de ódio diversos, vinculados à ideia de que as urnas teriam sido fraudadas, de que o STF não permitiu acesso ao seu código-fonte e que Lula não subiria a rampa, nem que para isso tivessem de usar indígenas como barreira para a liturgia de posse.

Em 8 de janeiro de 2023, manifestantes bolsonaristas vindos de diversos estados do Brasil se dirigiram à Brasília, e, junto com os acampados em frente a unidades militares do Distrito Federal, promoveram atos de invasão e vandalismo contra os prédios símbolos da República. Entre os alvos de depredação estavam as sedes do Supremo Tribunal Federal, do Congresso Nacional e do Palácio do Planalto.[2] Reportagens feitas nos acampamentos e vídeos divulgados durante as invasões permitem afirmar que naqueles ambientes se encontravam membros radicalizados de igrejas evangélicas, alguns cantando hinos cristãos dentro do congresso (BBC NEWS Brasil 2023). Pastores e igrejas evangélicas financiaram os atos golpistas e organizaram caravanas para Brasília (UOL, 2023). No dia 17 de agosto de 2023, a Polícia Federal, por determinação do ministro Alexandre de Morais, cumpriu dez mandados de prisão contra indivíduos identificados como incitadores dos atos golpistas por meio de plataformas de mídia. Entre os alvos de mandados de prisão estão pastores e uma cantora evangélica suspeitos de organizarem a chamada “Festa da Selma”, um codinome para convocação das caravanas (GONÇALVES, 2023). Esses fatos demostram o radicalismo político do discurso evangélico levado às últimas consequências, e que a intuição de Ronilso Pacheco estava certa. Ele já chamava atenção para possíveis consequências da manutenção do discurso radicalizado da igreja evangélica no pós eleição de 2022.

Após o resultado deste último domingo, o receio de que vejamos um episódio semelhante ao que aconteceu nos Estados Unidos após a derrota de Trump, com a invasão do Capitólio em 6 de janeiro, é inegável. Ao imaginar a cena, muitos de nós já pensam em como reagiriam a uma base bolsonarista radical já organizada para uma contestação violenta da vitória de Lula (PACHECO, 2022).

Em paralelo a esse evento em Brasília, outro acontecimento chamou atenção dos noticiários nacional e internacional: a grave crise humanitária que acometia o povo indígena Yanomami na Região Norte do país. A crise levou muitos indígenas à morte, por doenças evitáveis, e trouxe a público o desastre causado pela ação ilegal de garimpeiros. A repercussão do caso gerou indignação e a impressão de que o problema foi intencionalmente agravado pelo governo anterior, tendo em vista a desestruturação da assistência à saúde indígena e a complacência com o crime do garimpo ilegal nas terras indígenas.[3]

Dada a relevância desses dois fatos, entre março e junho de 2023, o grupo de pesquisa Teologia Cristã e Religião Contemporânea (TCRC) realizou uma pesquisa, pela plataforma Google Forms e divulgada entre pessoas frequentadoras de igrejas evangélicas por meio do aplicativo WhatsApp. Este artigo visa avaliar o nível de sensibilidade e discurso radical existente entre evangélicos bolsonaristas após os atos terroristas de 8 de janeiro e a divulgação da crise humanitária do povo Yanomami, constatando eventual aderência evangélico-bolsonarista acrítica e de argumentação hipersensível e radical nos discursos desse grupo de extrema-direita. A motivação da investigação foi a percepção de que, mesmo após o explícito traço radical e violento do fenômeno bolsonarista, e o descaso – para dizer o mínimo –, em termos de política pública, com os povos originários, parte significativa dos evangélicos que votaram em Bolsonaro manifestaram comportamentos e emoções, demonstrando extrema sensibilidade quando esses dois eventos eram colocados em pauta. Embora parte dos apoiadores do ex-presidente tenha encontrado nesses dois eventos a oportunidade para uma autocrítica e repúdio, sinais de desconforto, dúvidas, ressentimento, raiva e emoções aguçadas foram detectados em comunidades de fé. Assim, essa pesquisa buscou lançar luz sobre esses sentimentos e identificar o percentual daqueles que, mesmo após os dois acontecimentos (i.e. atos golpistas e crise Yanomami), ainda sinalizam apoio irrestrito a Bolsonaro, isentando-o de qualquer responsabilidade e emitindo sinais de hipersensibilidade e radicalização político-religiosa.

Resultados

Houve o retorno de 185 questionários preenchidos. Abaixo uma apresentação das respostas dos entrevistados às perguntas formuladas:

a)  Ser evangélico

Os entrevistados foram questionados se pertenciam a alguma denominação evangélica. 156 respostas afirmaram pertencer a alguma denominação evangélica. 29 declararam não serem evangélicos. A Figura 1 apresenta o gráfico do resultado deste questionamento, que define em 156 o objeto a ser investigado, tendo em vista os objetivos da pesquisa descritos anteriormente:

Figura 1 – Percentual de entrevistados identificados com alguma denominação evangélica.


Entre os entrevistados que se declararam evangélicos, 123 afirmaram pertencer à denominação Batista. As demais respostas ficaram pulverizadas entre diversas denominações evangélicas.

b) Faixas etárias dos entrevistados

Os entrevistados foram questionados sobre a sua faixa etária. A Figura 2 apresenta o gráfico do resultado deste questionamento.

Figura 2 – Faixas etárias dos entrevistados.


Nota-se que 48% dos entrevistados possuem entre 31 e 50 anos, constituindo um público majoritariamente adulto. O questionário não abordou o gênero dos entrevistados.

c) Declaração de voto

Os entrevistados foram perguntados em qual candidato votaram no segundo turno das eleições de 2022. 59 afirmaram ter votado no candidato Lula, 78 no candidato Bolsonaro e 48 em nenhum dos dois candidatos. As Figuras 3A, 3B e 3C apresentam o resultado da declaração de voto dos entrevistados no segundo turno das eleições de 2022, segmentados entre evangélicos e não evangélicos.

Figura 3A – Votação no candidato Lula (2022) – Evangélicos/Não evangélicos.

Figura 3B – Votação no candidato Bolsonaro (2022) – Evangélicos/Não evangélicos.

Figura 3C – Votação em nehum dos dois candidatos (2022) – Evangélicos/Não evangélicos.


A Figura 3D consolida os resultados das Figuras 3A, 3B e 3C, apresentando em gráficos de coluna o perfil de votos nas eleições de 2022, fazendo mais uma vez a segmentação entre evangélicos e não evangélicos.

Entre os entrevistados eleitores de Lula, 43 se declararam evangélicos e 16 não evangélicos (Figura 3A e 3D). Entre os entrevistados eleitores de Bolsonaro, 72 se declararam evangélicos e 6 não evangélicos (Figura 3B e 3D). E 41 entrevistados evangélicos e 7 não evangélicos declaram não terem votado em nenhum dos dois candidatos (Figura 3C e 3D).

Figura 3D – Perfil dos votos nas eleições de 2022 entre entrevistados evangélicos e não evangélicos.


d) Influência das pautas conservadoras

Os entrevistados foram questionados se eram favoráveis ou não às pautas conservadoras ou pautas morais. Como exemplos dessas pautas foram mencionados ser contra a legalização do aborto e casamento gay. Na análise dos dados, foram relacionados o voto declarado pelo entrevistado com o apoio às pautas de referência. O objetivo desta relação foi identificar uma tendência de voto em um determinado candidato conforme o apoio às pautas conservadoras, já que elas ocuparam grande espaço no imaginário popular evangélico e foram amplamente tematizadas nas arenas de discussão política nas eleições de 2010,[4] 2018 e 2022, deslocando do centro do debate, inclusive, assuntos de caráter socioeconômico (NORONHA, 2022).

Figura 4 – Influência do apoio às pautas conservadoras no voto das eleições de 2022


Observando a Figura 4, nota-se que o candidato Bolsonaro teve preferência entre os eleitores que se disseram favoráveis às pautas conservadores – seja este eleitor evangélico ou não evangélico. E o candidato Lula obteve vantagem entre aqueles eleitores contrários às pautas conservadoras, sejam eles evangélicos ou não evangélicos. Observam-se intenções de voto em Lula entre evangélicos favoráveis às pautas conservadoras e de votos em Bolsonaro entre evangélicos e não evangélicos contrários às pautas conservadoras. Entendemos que a explicação dessas intenções de voto carece de informações adicionais, que a pesquisa em questão não contemplou, embora hipóteses possam ser aventadas, como a má gestão da pandemia do governo anterior e o sentimento “antipetista” e “lavajatista” presente na sociedade brasileira.

e)  Idade dos eleitores de Bolsonaro

O gráfico a seguir, Figura 5, mostra a idade dos entrevistados eleitores de Bolsonaro.

Figura 5 – Faixas etárias dos eleitores de Bolsonaro.


Na Figura 5, observa-se que 48% dos entrevistados eleitores de Bolsonaro estão na faixa etária entre 31 e 50 anos. A pesquisa não abordou a questão de gênero. 

f) Entrevistados evangélicos e não evangélicos que votaram em Bolsonaro e que são favoráveis às pautas conservadoras. 

Observa-se na Figura 6 que 79% dos entrevistados eleitores de Bolsonaro são favoráveis às pautas conservadoras. Isto corrobora as informações da Figura 5.

Figura 6 – Eleitores de Bolsonaro favoráveis às pautas conservadoras. 


g) Responsabilização de Bolsonaro pelos eventos de 8 de janeiro e pelas mortes de Yanomamis

Foram avaliadas as respostas dos entrevistados evangélicos e eleitores de Bolsonaro sobre a responsabilidade de Bolsonaro pelos eventos de 8 de janeiro de 2023 e pelas mortes de Yanomamis. A Figura 7 apresenta em forma gráfica o quantitativo das respostas a essas questões. Observa-se que a maioria dos entrevistados, evangélicos e eleitores de Bolsonaro, não atribuem a ele responsabilidade pelos eventos do 8 de janeiro nem pelas mortes de Yanomamis.

Entre os eleitores que se declararam evangélicos, 94% não atribuem a Bolsonaro a responsabilidade pelas mortes de Yanomamis, um percentual ainda maior do que aqueles que não atribuem responsabilização pelos eventos de 8 de janeiro.

Figura 7 – Responsabilidade de Bolsonaro pelos eventos de 8 de janeiro e pelas mortes de Yanomamis na percepção de seu eleitorado .


h) A hipersensibilidade do discurso dos entrevistados evangélicos e eleitores de Bolsonaro.

O formulário apresentado aos entrevistados também permitiu que eles manifestassem seus sentimentos em relação aos eventos de 8 de janeiro e às mortes de Yanomamis, por meio de frases sugeridas ou texto livre. Dessa forma, foi possível identificar expressões que podem revelar uma hipersensibilidade, radicalização, comportamento polarizado, apoio a uma intervenção militar e desconfiança do trabalho da imprensa oficial. Sentimentos de indignação, indiferença e raiva também são observados. Indignação, neste caso, não pela gravidade dos eventos, mas pelo insucesso das ações golpistas ou pela demarcação de terras das populações indígenas. Manifestações associadas a fake news, como que os indígenas seriam venezuelanos, também foram observadas. Seguem abaixo as duas perguntas relacionadas aos dois eventos analisados feitas aos entrevistados e as frases sugeridas como respostas, com destaque àquelas podem evidenciar uma hipersensibilidade e comportamento radical do entrevistado (lembrando que os entrevistados também puderam escrever livremente em um campo aberto).

Após saber da depredação do patrimônio público em 8/1, qual foi o seu sentimento?

  • Indiferente, pois a culpa foi da esquerda
  • Indignação, pois gostaria que houvesse intervenção militar
  • Vergonha, pois apoiei essa linha política
  • Não quero falar no assunto
  • Raiva, pois a grande mídia distorce o assunto
  • Arrependimento, pois não devia ter apoiado Bolsonaro
  • Um completo absurdo os atos de depredação


Sobre as mortes de indígenas yanomamis: como você se sentiu?

  • Indiferente, esses problemas já perduram há muitos anos
  • Indignação, pois não deveríamos ter demarcação indígena tão grande no Brasil
  • Vergonha, pois apoiei essa linha política
  • Não quero falar nesse assunto
  • Raiva, pois a grande mídia distorce o assunto
  • Arrependimento, pois não devia ter apoiado Bolsonaro
  • Indignado, apesar de mostrar como os venezuelanos tratam os seus índios que acabaram fugindo para o lado brasileiro
  • Um completo absurdo as mortes dos indígenas yanomamis

Foi feita uma seleção entre eleitores evangélicos de Bolsonaro e entre os que não votaram em nenhum dos dois candidatos, filtrando as respostas que sinalizam a hipersensibilidade e radicalização no discurso em relação às temáticas ou fatos. Os resultados são apresentados a seguir:

A Figura 8 mostra que, em relação ao evento de 8 de janeiro, 43,06% dos entrevistados evangélicos eleitores de Bolsonaro apresentaram um discurso de aparente hipersensibilidade e radicalidade diante do assunto. Em relação aos que declararam não terem votado em nenhum dos dois candidatos, o percentual de hipersensíveis e/ou radicalização cai expressivamente para 4,88%, o que demonstra que a hipersensibilidade e a radicalidade estão vinculados especificamente aos eleitores de Bolsonaro.

No caso das mortes de Yanomamis, 47,22% dos entrevistados eleitores evangélicos de Bolsonaro expressaram um discurso hipersensível e radical. Os entrevistados que não votaram em nenhum dos dois candidatos e que se mostraram hipersensíveis ou radicalizados somam 15%. Novamente uma queda expressiva, muito embora superior à comparada ao número referente ao 8 de janeiro. O mesmo ponto deve ser destacado: a hipersensibilidade e a radicalidade estão vinculadas aos eleitores de Bolsonaro especificamente.

Figura 8 – % de evangélicos radicalizados


Análise

Os resultados indicam que a pesquisa circulou em um nicho restrito de evangélicos, e predominantemente entre a denominação batista. O grupo que respondeu as perguntas é composto de adultos entre 31 e 60 anos e não houve identificação do gênero dos entrevistados. A grande maioria dos entrevistados é a favor das pautas conservadoras e que, em 2022, o voto em Bolsonaro foi predominante neste grupo. Chama atenção que alguns evangélicos favoráveis às pautas conservadoras tenham declarado voto em Lula. Da mesma forma, evangélicos contrários às pautas conservadoras declararam votos em Bolsonaro. Uma hipótese, já sinalizada, é de que essas aparentes contradições estejam vinculadas à gestão da pandemia, justificando votos de conservadores em Lula, assim como no sentimento “antipetista”, justificando votos de não conservadores em Bolsonaro. A confirmação dessa hipótese mereceria outra pesquisa de campo.

A análise se debruçou sobre eleitores evangélicos de Bolsonaro. Quase a totalidade dos entrevistados eleitores de Bolsonaro não atribuem responsabilidade a Bolsonaro pelos atos de vandalismo de 8 de janeiro nem pelas mortes de Yanomamis. Ao contrário, o discurso hipersensível e radical é predominante entre os entrevistados evangélicos que votaram no candidato Bolsonaro. Também é possível aferir que, entre os entrevistados evangélicos e eleitores de Bolsonaro, a maioria, ou 88,88%, isentam Bolsonaro de responsabilidade pelo evento de 8 de janeiro e 94% isentam Bolsonaro pelas mortes de Yanomamis. Entrevistados que não fizeram opção por nenhum candidato também tendem a isentar Bolsonaro de responsabilidade, porém houve uma queda expressiva: eventos de 8 de janeiro, 26,82%; mortes de Yanomamis, 58,53%.

Ao analisarmos as respostas dos entrevistados sobre seus sentimentos em relação aos atos de 8 de janeiro e as mortes de Yanomamis, foram encontradas manifestações de raiva, indignação, indiferença e sensibilidade aguçada. Manifestações de descontentamento pela intervenção militar frustrada e de suspeição em relação ao trabalho da imprensa também foram observadas. Um dado expressivo acerca do fenômeno evangélico obtido nessa pesquisa é o fato de que parece haver um percentual significativo de eleitores evangélicos que votaram em Bolsonaro que permanecem fiéis ao ex-presidente mesmo diante de dois acontecimentos explicitamente comprometedores para a antiga gestão executiva do país, em especial para o seu líder máximo. Ou seja, cerca de 43% dos entrevistados desse grupo – evangélicos eleitores de Bolsonaro – deixaram de reprovar explicitamente a tentativa golpista e terrorista de 8 de janeiro. Cerca de 47% não reprovaram cabalmente as mortes de Yanomamis. Ao contrário. Sobre o 8 de janeiro, manifestaram indiferença aos fatos; desejo por intervenção militar; desejo de não falar no assunto; e raiva da grande mídia. Houve quem escrevesse no campo livre que o “protesto” foi “normal” e que o atual governo deveria ser responsabilizado (narrativa presente na ala da oposição na CPMI sobre o incidente). Sobre os Yanomamis, as expressões que predominaram foram: indiferença; indignação, pois não deveria existir demarcação de terra indígena; desejo em não falar sobre o assunto; e raiva da grande mídia.

Conclusão

Primeiramente, chama atenção que o percentual de eleitores evangélicos que não atribui a Bolsonaro responsabilidade pelas mortes de Yanomamis é superior aos eleitores que não o responsabilizam pelos atos de vandalismo de 8 de janeiro. Essa informação pode ser justificada pela seguinte hipótese, que precisa ser comprovada: parece existir menos sensibilidade com a morte evitável de pessoas do que com a depredação de patrimônio público, ou maior indiferença acerca do assunto, dado o distanciamento entre o acontecido e a vida das pessoas entrevistadas.

Em segundo lugar, esses resultados revelam que a massa dos entrevistados evangélicos que embarcou no discurso da extrema-direita desde as eleições de 2018 permanece radicalizada e disposta a isentar Bolsonaro de qualquer responsabilização civil ou criminal por suas ações ou palavras, mesmo após a derrota nas últimas eleições e, principalmente, após esses dois episódios que, dos pontos de vista moral e humano, exigiriam uma reprovação explícita (como aconteceu com a maioria dos entrevistados). O fim da disputa eleitoral parece não ter posto um ponto final no processo de radicalização do mainstream evangélico brasileiro, haja vista a hipersensibilidade identificada na amostragem analisada. A elevada sensibilidade desse grupo, aparentemente contida, aflora quando provocados por questões que maculam a imagem do ex-presidente.

Esta pesquisa teve uma circulação restrita, porém os seus resultados refletem a associação de grande parte do segmento evangélico ao projeto de poder da extrema-direita e reforça o pensamento conservador e radical predominante nesse meio, amplamente divulgado pelos meios de comunicação. Assim, a análise desses dados reflete um ponto de alta relevância para a sociedade, ministros religiosos evangélicos e pesquisadores do fenômeno: parte significativa dos eleitores evangélicos de Bolsonaro, presentes em comunidades religiosas, se mostra em estado de hipersensibilidade e permanecem radicais mesmo após o malfadado 8 de janeiro e as mortes de Yanomamis. O número parece ser significativamente alto, conforme a pesquisa revelou. Essa fatia da sociedade pode ser novamente manipulada por um líder político de extrema-direita em direção a um projeto de poder autoritário e, considerando o recorte religioso-fundamentalista, teocrático. Nos parece ser necessário muita observação e monitoramento desse grupo religioso manifestamente afetado pelo ressentimento.

Referência bibliográficas

BBC NEWS BRASIL. Por que STF chama invasões bolsonaristas de atos terroristas, 11 janeiro. 2023. Disponível em https://www.bbc.com/portuguese/geral-64244303. Acesso em 06 agosto 2023.

BBC NEWS BRASIL. Documentário BBC: Profetas do bolsonarismo: Como religião foi usada no “8 de janeiro”.  YouTube, 04 de março de 2023. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=QVLYafGRvA4. Acesso em 06 agosto 2023

BIERNATH, André. Por que governo Bolsonaro é investigado por suspeita de genocídio contra os yanomami.. 30 de janeiro 2023. BBC NEWS Brasil. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-64417930 Acesso em: 06 agosto 2023

GONÇALVES, Eduardo. Pastor e cantora gospel: quem são os alvos da operação da PF que mira organizadores da ‘festa da Selma’ do 8/1. O GLOBO. Brasília, 17 de agosto de 2023 Seção Política. Disponível em: https://oglobo.globo.com/politica/noticia/2023/08/17/saiba-quem-sao-os-alvos-da-nova-fase-da-operacao-lesa-patria.ghtml Acesso em: 19 agosto 2023

NORONHA, Claudio P. Evangélicos e as eleições presidenciais de 2022. Teoria e Debate. 22 de junho 2022. Disponível em: https://teoriaedebate.org.br/2022/06/22/evangelicos-e-as-eleicoes-presidenciais-de-2022/. Acesso em 23 agosto 2023.

PACHECO, Ronilson. Igrejas evangélicas radicalizaram extremistas no Capitólio – e no Brasil também. The Intercept. 31 de outubro 2022. Disponível em: https://theintercept.com/2022/10/31/igrejas-evangelicas-radicalizaram-extremistas-no-capitolio-e-no-brasil/

UOL. Atos golpistas Evangélicos presos no 8/1 dizem à PF que foram mobilizados por igrejas. YouYube, 15 de março de 2023. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=V8k7h0sgJZk. Acesso em 19 agosto 2023.

[1] Cf. ANÉAS; MERLO; GAMA (orgs.), 2023.

[2] Com base na Lei 13.260, o ministro do STF Alexandre de Moraes classificou as ações dos bolsonaristas como “atos terroristas contra a Democracia e as Instituições Brasileiras” e determinou o afastamento do governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha, a desocupação dos acampamentos em frente aos quartéis e a prisão em flagrante dos participantes de atos antidemocráticos (BBC NEWS BRASIL, 2022).

[3] O Supremo Tribunal Federal (STF) determinou a abertura de uma investigação de autoridades do governo Jair Bolsonaro (PL) pela suposta prática de genocídio de indígenas Yanomami. O pedido foi assinado pelo ministro Luís Roberto Barroso nesta no dia 30 de janeiro de 2023. As investigações serão conduzidas pela Procuradoria-Geral da República (PGR), Ministério Público Militar, Ministério da Justiça e Segurança Pública e Polícia Federal. (BIERNATH, 2023)

[4] Deve-se notar que essa discussão ganha significativa proporção em 2010, com a fala do pastor batista Paschoal Piragine, no púlpito da Primeira Igreja Batista em Curitiba, na ocasião das discussões sobre o PL122. Cf. https://www.youtube.com/watch?v=ILwU5GhY9MI&t=554s

Imagem: Agência Brasil

Sobre o autor

André Anéas

Doutorando e mestre em Teologia pela PUC-SP e bacharel em Teologia pela Faculdade Teológica Batista de SP. É autor dos livros “A racionalização da experiência de Deus” (CRV, 2019) e “Protestantismo e Mística - razão e experiência mística no protestantismo histórico” (Fonte Editorial, 2016) e organizador da obra “Diálogos sobre a experiência de Deus” (Recriar, 2020). É membro do grupo de pesquisa “A Questão de Deus” (PUC-SP) e coordena o grupo de pesquisa “Teologia Cristã e Religião Contemporânea” no Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.

Sobre o autor

Lorena Cristina de Oliveira Tiroel

Mestre em Engenharia Química - UNICAMP, Bacharel em Engenharia Química- UFPR, pesquisadora do Grupo Teologia Cristã e Religião Contemporânea, do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.