Behavior

A produção de conteúdo afetivo no agronegócio brasileiro

Na boiada já fui boi
Boiadeiro já fui rei
Não por mim nem por ninguém
Que quisesse ou que pudesse
Por qualquer coisa de seu
Por qualquer coisa de seu
Querer mais longe que eu

Disparada
(Geraldo Vandré e Théo de Barros)


Do ponto de vista do comportamento político, é sempre interessante reconhecer e distinguir diferentes grupos por profissão, afinidades, gostos, hábitos, costumes e metafísicas. Uso aqui essa palavra na direção da reflexão sobre as metanarrativas que tais grupos fazem de si próprios, como meio de identificação ou para forjarem seus capitais simbólicos. Penso então em possibilidades, sobretudo novas perspectivas que se abrem aos pesquisadores, o que de longe é o mais atraente. Inspirado pelas contribuições do grande sociólogo Pierre Bourdieu (1930-2002), ampliamos a base de perguntas destinadas a sondar os diferentes capitais presentes nos distintos segmentos que se politizam. Note-se que não falamos somente de grupos políticos, mas de núcleos que tangenciam a política a partir de seus comportamentos.

Foi por isso que cheguei à seguinte publicação: Formação política do agronegócio, de Caio Pompeia (São Paulo: Elefante, 2021). Trata-se de uma obra que se dedica à perseguição da mais precisa definição do conceito de agronegócio, desde a sua criação nos Estados Unidos nos anos 1950, em Harvard, até a introdução em nosso país, prosseguindo então no governo de Jair Bolsonaro. Originalmente, a palavra pretendia unir a agropecuária à indústria alimentícia, que deveriam ser tomadas de um modo integrado. Acompanhar a introdução desse conceito no Brasil é recuperar um embate que agrega flancos opostos. Na década de 1950 para 1960, começava a ganhar presença a proposta de uma reforma agrária no Brasil. E, nesse aspecto, houve a presença de setores à esquerda do clero católico e de lideranças comunistas. Há que se recordar que no período que se segue à morte de Getúlio Vargas (1954), e, em especial, no governo de João Goulart (1961-1964), essa proposta foi ganhando cada vez mais espaço.

A chegada dos militares ao poder, em 1964, coloca um ponto final nessa posição, e aí temos a aproximação do governo do Brasil com os Estados Unidos na Guerra Fria. A partir de então, o autor acompanhou a legitimação do conceito de agronegócio – primeiramente, agribusiness – através da presença dessa palavra nos jornais, nas falas das autoridades de governo, por empresários, professores universitários e entidades do setor que passaram a promover seminários e encontros públicos.

Ainda que não aborde de um modo direto, o livro vai demonstrando a evolução de um tipo de metafísica do agronegócio, ou seja, a inserção do conceito vem acompanhada da concepção de progresso nos moldes do ideal do liberalismo – o que, como se sabe, não se manifesta assim tão fácil no Brasil. Em vista disso, a agenda do agronegócio se aproxima dos governos de direita – da ditadura militar até o governo Bolsonaro – e se distancia do que quer que seja que remeta à reforma agrária ou ao tema indígena em nosso país. Sendo assim, na fixação desse conceito, percebe-se a aderência à modernização do campo, mesmo que os costumes sejam pouco visados.

Tradicionalmente visto como conservador, o interior agrário do Brasil se pauta pela ênfase na proclamada grande porcentagem do PIB nacional, e até por isso tomamos contato com uma manifestação de orgulho – sendo esse o objeto que mais me importa aqui, uma vez que notadamente remetido ao comportamento.

Duplas sertanejas formadas por mulheres, a sofrência, o visual que incorpora as botas, os coletes e os chapéus se encontram nesse contexto. Nas redes sociais, os algoritmos tentam nos caçar a partir de cenas que mostram churrascos, música sertaneja e caminhonetes off road. Aliada a isso, a produção de conteúdo se justifica na crença de que o interior do país seja um celeiro que abastece o restante do Brasil. É desse imaginário que falamos quando percebemos a associação que se faz com a cultura do oeste nos Estados Unidos, o que inclusive pode ajudar a explicar a proximidade entre os dois últimos ex-presidentes dessas duas nações.

Mas não é somente isso. Observamos também um traço de ressentimento em relação aos costumes urbanos, abrindo perspectivas para o aprofundamento nas guerras culturais. Isso significa que não tratamos de política somente quando falamos dela, mas sim quando exibimos ou praticamos um comportamento em público.

A agenda identitária mostra as suas caras de esquerda a direita, mas é perceptível o incômodo da esquerda em topar com um conteúdo de cultura, costumes e hábitos que não foram gestados pelas suas hostes. Há uma hierarquia tácita em nosso país e que data especialmente da década de 1960, período em que nos deparamos com uma produção cultural – musical, teatral e cinematográfica – de esquerda. Era comum que se taxasse as elaborações que não se pautavam por essa ideologia como alienantes. Na música, essa tensão se manifesta na concepção da MPB – que surpreendentemente excluiu quem alcançava mais sucesso popular – ou no cinema novo – que deu as costas para elaborações igualmente populares, como o cinema de Amácio Mazzaropi (1912-1981), diretor e autor que se eternizou na figura do caipira Jeca. Tais aspectos somados podem indicar as raízes da polarização em nosso país, que não é somente política, como se pode perceber.

Veja a LABÔ Lecture com Fernando Amed:
https://offlattes.com/archives/12447

Entre em contato com a coluna
labo.behavior@gmail.com

Sobre o autor

Fernando Amed

Doutor em História Social pela USP. Historiador pela FFLCH da USP, professor da Faculdade de Comunicação da Faap e do curso de Artes Visuais da Belas Artes de São Paulo, autor de livros e artigos acadêmicos. Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Comportamento Político do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.