Behavior

Se o ultraje moral é como fogo, a internet é a gasolina

Esqueça os gatinhos fofos. Nem pense nas frases edificantes que acompanham um bom dia ou os anjinhos para um boa noite. O que pega mesmo nas redes sociais é agressão e pancadaria. E quando nem sequer temos uma situação concreta de guerra, nos divertimos agredindo os outros a partir de nossas camas. Não caia no conto das boas maneiras e de que “em pleno século XXI” deveríamos respeitar uns aos outros. Essas são conclusões do estudo realizado pela neurocientista norte-americana Molly J. Crockett, e que foram publicadas no artigo Moral outrage in the digital age (Ultraje moral na era digital). (Nat Hum Behav 1, 769–771, 2017. https://doi.org/10.1038/s41562-017-0213-3)

Ultrajes morais são situações que estimulam as nossas reações mais ofensivas exatamente porque temos repulsa em acreditar no que aconteceu. Em português, diríamos que se trata de uma história ultrajante, o que nos envolve de um modo agudo. Trata-se de uma inversão do que nos acostumamos a pensar que deveria ocorrer, mas que, pertencendo ao campo moral, tem grande potencial explosivo. E se gera engajamento, tende a viralizar nas redes sociais.

Não é difícil supor quais são os casos que provocam ultraje moral. Tráfico de crianças na Ásia ou genocídio na África, mas também corrupção, maus-tratos a animais, pedofilia, assédio sexual, homofobia ou racismo. Nota-se o cruzamento com os vieses identitários, que, por isso mesmo, vêm conhecendo novos registros, como capacitismo ou etarismo. Não estamos assim tão distantes do que provocava indignação no passado, e percebemos que uma certa tensão moral tende a permanecer e seguir um critério. Esse aspecto pode nos levar a pensar em outros temas morais que perduram, o que sugere que esses valores não são assim tão fáceis de serem alterados como supõem os nossos vãos dogmatismos de marketing – temos pessoas que acreditam até que os movimentos sociais podem vencer a seleção natural.

De acordo com Molly: “O ultraje moral é acionado pelo estímulo que chama a atenção para a violação das normas morais. Esse estímulo evoca uma faixa de respostas emocionais e comportamentais que variam em seus custos e restrições.” No entanto, ainda de acordo com a pesquisadora, “as respostas são mais fortes do que as que encontramos no cotidiano, sendo que os atos imorais online incitam ultrajes morais maiores do que em outros meios: a arquitetura da economia da atenção favorece isso.” (p. 2).

Não estamos tão distantes quanto poderíamos supor do tipo de comportamento manifestado em cenários anteriores em que nos deparamos com incitações semelhantes. Já nos sentimos ultrajados com feiticeiras na Idade Média, com a presença dos judeus durante a Inquisição ou dos comunistas na Guerra Fria. Para todos esses casos, o enfrentamento era mais direto, mesmo que toda sorte de intrigas e delações se manifestasse de modo camuflado. Em épocas assim, os julgamentos tendem a ser apressados, estimulados pela excitação do linchamento iminente. Somos capazes de retomar esse tipo de engajamento, mesmo porque, quando movidos pelo desejo de retaliação, não economizamos esforços para que o nosso objetivo seja alcançado.

Contudo, a economia da atenção estabelece outras tensões, uma vez que se trata de uma arquitetura diferente. A potencialização do discurso de ódio se dá de uma maneira mais intensa quando pensamos no ambiente digital, haja vista que o algoritmo não tem ciência do conteúdo moral como qualquer um de nós pode vir a ter. Ele simplesmente eleva à condição de trending topic o que quer que esteja sendo compartilhado de forma massiva. A partir desse ponto de vista, temos uma situação nova, diferente da mera colocação em prática de uma estratégia que venha a provocar engajamento específico, como víamos no passado em relação ao estímulo do medo e do ódio, fosse de uma pessoa subversiva ou da feitiçaria.

O que hoje se manifesta nas redes sociais é um tipo de culto à delação que contabiliza seguidores que se satisfazem na expressão de agressividade. Sendo esse o seu funcionamento, o engajamento é estimulado inclusive porque se mantem como um tema único. Poderíamos falar de picos catárticos, tendo em vista que o mesmo assunto pode perdurar por horas ou dias, bastando para tanto que o conteúdo moral conte com a atenção dos seguidores.

Movimentos moralistas são lembrados como terríveis por terem promovido ações coletivas de perseguição e fé na purificação social. No passado, essas ondas contaram com o apoio político ou religioso que então possuíam objetivos claros. Hoje nos deparamos com a pureza do algoritmo, isto é, ele se movimenta na direção do tipo de comportamento que mais gera compartilhamento. Não estamos pensando em situações que prontamente poderiam ser notadas e excluídas das redes sociais. Não é dessa psicopatia que falamos. Mas sim daquelas tantas ocorrências para as quais costumamos manter repúdio, possíveis de acontecerem. Aqui, o que nos preocupa é o viés de confirmação dos juízos morais que já contavam com a nossa anuência. Os linchamentos então se tornam justificados pela oferta de conteúdo beligerante que chega até nós – exatamente por promoverem engajamento –, e já não contam com uma figura malévola que esteja por trás de todo esse ódio, sendo essa uma característica que nos distancia do passado recente.

Veja a LABÔ Lecture com Fernando Amed:
https://offlattes.com/archives/12447

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Sobre o autor

Fernando Amed

Doutor em História Social pela USP. Historiador pela FFLCH da USP, professor da Faculdade de Comunicação da Faap e do curso de Artes Visuais da Belas Artes de São Paulo, autor de livros e artigos acadêmicos. Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Comportamento Político do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.