Teologia Cristã e Religião Contemporânea

Uma leitura popular da Bíblia sob a ótica da hermenêutica feminista: O caso do coletivo Flor de Manacá

No momento em que escolhemos amar, começamos a nos mover contra a dominação, contra a opressão. No momento em que escolhemos amar, começamos a nos mover em direção à liberdade, a agir de formas que libertam a nós e aos outros. Bell Hooks

A teologia feminista dentro dos estudos bíblicos busca ressignificar o olhar para o texto bíblico – tanto no Antigo quanto no Novo Testamento. Uma leitura popular da Bíblia que seja menos agressiva às mulheres. Uma interpretação do Evangelho que reconheça o valor da mulher e que respeita o seu direito de ir e vir da forma como quiser, sem precisar perder a vida por exercer a sua liberdade. É nessa cosmovisão que temos o surgimento do [1]Flor de Manacá, criado pela teóloga e pastora da Igreja Batista do Pinheiro de Alagoas, Odja Barros. A iniciativa busca trazer uma nova hermenêutica da Bíblia, uma leitura que reconheça o valor da mulher, um Deus que olha para as mulheres, valorizar o feminino e até fazer justiça nos casos de opressões praticadas. O grupo teve início em meados de 2006, com reuniões sobre essa nova perspectiva de leitura do Evangelho.

Em 2022, na semana da Páscoa, a pastora Odja Barros publicou um pequeno artigo pela Calaméo, intitulado Mulheres: Da paixão à ressurreição. A finalidade do ensaio foi fazer uma pequena bibliografia das mulheres presentes nos ensinamentos do mestre Jesus, demonstrando que Cristo tinha apóstola e seguidoras durante seu ministério na Galileia. As mulheres que acompanhavam o mestre foram fiéis desde a morte e ressurreição, demonstrando que o amor sobrevive apesar de todas as injustiças e opressões vivenciadas.

Nesse sentido, Odja Barros (2022) procura ressignificar a visão do texto bíblico em relação às mulheres, demonstrando suas lutas, opressões sofridas no Império Romano, como as histórias dessas mulheres têm a ensinar as desta geração e como podemos usar as narrativas bíblicas com personagens femininos como exemplo de vida baseada na realidade experienciada no século XXI. Vale ressaltar que o olhar que temos sobre o Evangelho sofre modificações com a passagem do tempo, e com isso surgem novos entendimentos, abordagens e perspectivas em relação ao texto bíblico.

A luta pela memória das mulheres nos Evangelhos é luta por verdade e justiça. Lembrar para não repetir! A demarcação onde aparece a violência cometida contra as mulheres na história bíblica e na história da igreja, é fidelidade à memória de Jesus crucificado que foi solidário com os corpos condenados à morte e ao apagamento histórico. (Odja Barros, 2022, p. 5)

Umas das personagens bíblicas que vem sendo resgatada nos últimos tempos, e muito abordada pela pastora Odja Barros nas suas redes sociais, em textos dirigidos ao público leigo e nos encontros do grupo Flor de Manacá, é Maria Madalena – também conhecida como Maria de Magdala, que ao longo da história teve sua imagem manchada e foi descrita como prostituta. Em 2016[2], o papa Francisco reconheceu Maria Madalena como apóstola dos apóstolos, dedicando o dia 22 de julho a sua homenagem, outorgando-lhe o título de Santa Maria Madalena. Nas pinturas, Maria Madalena é representada com o vaso de Alabastro.

Entre as passagens que mais chamam atenção temos Evangelho de Marcos 16:9, citando que Maria Madalena foi a primeira a ver o sepulcro vazio, a ter uma visão do mestre Jesus ressuscitado e a primeira a anunciar a Boa-Nova aos apóstolos – que a princípio rejeitam sua fala por ela ser mulher. Com isso então percebemos o silenciamento de mulheres, ao longo do tempo, em relação às interpretações do Evangelho. Por essa razão é primordial o estudo de teologias feministas e suas aplicações na leitura popular da Bíblia.

Para além de resgatar os ensinamentos de Maria Madalena e as contribuições de outras mulheres no ministério de Jesus, é imprescindível um novo olhar para sua mãe, Maria. Afonso Murad, estudioso do tema Mariologia, afirmou em seu livro Maria: Toda de Deus e tão humana procura em sua pesquisa busca trazer a visão de uma Maria no meio de nós, e que dialoga com as mulheres do nosso tempo. “Dizia que Maria era mulher do povo, simples como elas, mãe e membro do povo de Deus. Uma pessoa corajosa, decidida, com consciência social, que lutou junto com Jesus em defesa dos pobres, os preferidos no Reino de Deus.” (MURAD, 2012, p. 13). 

Faz-se necessário trazer uma visão de Maria que não seja passiva e muito menos submissa. Maria foi uma mulher do seu tempo, que foi dona de si, pois viveu sua vida baseada em suas escolhas conscientes. Ela escolheu ser mãe do Emanuel e carregar a criança prometida, ainda que sua gravidez tenha ocorrido antes do matrimônio, algo que, para o contexto da época, era praticamente uma sentença de morte. E Maria foi resistente junto às outras Marias na crucificação de seu filho – mesmo perante a dor e o sofrimento, se mantiveram fiéis aos ensinamentos de Jesus, que falava de amor, justiça e caridade.

Flor de Manacá e outros grupos de estudos bíblicos que fazem uma leitura popular da Bíblia com ênfase na hermenêutica feminista procuram trazer à tona as vozes femininas, durante muito tempo silenciadas e até mesmo apagadas por grupos dominantes. Jesus só conseguiu fazer seu ministério graças às mulheres que o cercavam. Não fosse pelas Marias, Jesus não teria vindo ao mundo nem chegado tão longe.

Muito se fala sobre amor, que Jesus é amor: “Um novo mandamento dou a vocês: Amem-se uns aos outros. Como eu os amei, vocês devem amar-se uns aos outros.” João 13:34. Entretanto, na vida real, esse mandamento não é seguido, especialmente quando ocorrem casos de feminicídio e violência contra mulheres que têm as suas raízes e fundamentos em interpretações dos Evangelhos feitas por alguns grupos evangélicos. Buscar uma nova interpretação do Evangelho com o olhar da mulher é dar a ela o direito de existir com dignidade, é reconhecer a humanidade que habita nos corpos femininos, respeitando a vida neles existente, sem violações nem aniquilamentos.

O grupo Flor de Manacá tem como símbolo uma mandala com mulheres em círculos, uma segurando a mão da outra, com a flor do Manacá ao meio simbolizando o feminino. Tem como lema “Mulher, Bíblia e Nordeste”. O grupo compartilha as dores e delícias de ser mulher, buscando novas formas e maneiras de existir – em alguns casos de sobreviver – numa sociedade que massacra o feminino.

Essas mulheres e outras, para além do Flor de Manacá, buscam ressignificar suas histórias, abrindo caminhos para aquelas que virão com seu esforço incessante de trazer à tona uma nova interpretação da Bíblia, uma leitura dos Evangelhos que não seja agressiva e mortal para as mulheres. Já dizia Bell Hooks: “O amor é uma ação, nunca simplesmente um sentimento”. É necessário coragem para amar e resistir às opressões e violências, assim como fizeram as Marias que acompanhavam Jesus em seu ministério. 

Referências

Barros, Odja. Mulheres: Da paixão à ressurreição. Editora Calaméo, 2022.

link: https://www.calameo.com/read/0049787051416066393d5

Barros, Odja. Uma Hermenêutica bíblica popular e feminista na perspectiva da mulher nordestina: Um relato de experiência. São Leopoldo: Escola Superior de Teologia Instituto Ecumênico de pós-graduação em teologia, 2010.

MURAD, Afonso Tadeu. Maria, toda de Deus e tão humana: Compêndio de Mariologia. São Paulo: Paulinas: Santuário, 2012. (Coleção peregrina na fé).

Teologia feminista e resistência ao Patriarcado Evangélico: Pamela Campus, Felipe Gibran. Reino em pessoas, 28 fev. 2023. ORPCAST #82 (com Odja Barros) Disponível em: https://youtu.be/xg2tc2o4Jns

[1] Para saber mais sobre o grupo Flor de Manacá: https://grupoflordemanaca.blogspot.com/p/estudos-biblicos-feministas.html

[2] Comemoração do dia 22 de Julho em homenagem a Maria Madalena oficializado pela Igreja Católica link: https://www.vaticannews.va/pt/santo-do-dia/07/22/s–maria-madalena–discipula-do-senhor.html

Imagem: divulgação

Sobre o autor

Maria Larissa Lima Silva

Licenciada em História, Pós-graduanda em Psicopedagogia Institucional e Clínica pela Universidade Cruzeiro do Sul, polo de São Miguel Paulista. Pesquisadora do grupo de Teologia Cristã e Contemporânea, do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.