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Aos mortos e ao que eles nos ensinavam

A morte é um tema que interessa aos historiadores, seja pelo tratamento específico como um objeto de estudos – recordamos aqui Philippe Ariès (1914-1984) – ou pelo fato de os historiadores lidarem com mortos e seu legado o tempo todo. Na semana em que nos encontramos, eu tive a oportunidade de revisitar esse assunto nas disciplinas que eu leciono. Um tema delicado de abordar, uma vez que pode conduzir a lembranças de perda, ainda mais quando ela é um acontecimento recente. Mas entendo que isso possa ser alterado de acordo com a abordagem que se faz.

Retomemos aqui que o filósofo irlandês Edmund Burke (1729-1797) é costumeiramente lembrado a partir do que se entende como imaginação moral, conceito cuja criação é reputada a ele. A concepção de que a “sociedade é uma comunidade de almas que reúne os mortos, os vivos e os que ainda não nasceram” vem sendo tomada como uma síntese de sua interpretação.

É difícil que esse juízo seja apreciado no contemporâneo, posto que seu significado hoje, diferentemente da época em que fora pronunciado, não conta com pistas para a sua compreensão. Trata-se mais de um indício de um contexto de um passado há muito abandonado e esquecido. No Ocidente, poucas são as mediações para a morte, a não ser as científicas, existencialistas ou niilistas – isso, claro, quando tomamos a parcela secular da nossa sociedade.

Mas não fomos sempre assim e a recuperação do passado cumpre a função de nos demonstrar isso. De acordo com o historiador Michel Lauwers (O nascimento do cemitério: lugares sagrados e terra dos mortos no Ocidente medieval. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2015), de um modo distinto do que ocorrera em grande parte das civilizações da Antiguidade, o Ocidente cristão veio a estabelecer a inumação em lugares em que “os cadáveres se consumiam para retornar ao estado de cinzas”, sendo que cinis, em latim, significa cinza, e terium, lugar (terion, em grego, significando cuidar ou guardar). Assim, por volta do século XI, os cemitérios se estabeleceram em lugares em torno dos quais as comunidades viviam. Mas não somente isso.

A terra do cemitério misturada com os restos dos mortos se tornou um espaço social fortemente envolvente: fornos e oficinas, ceramistas ou açougueiros com suas mesinhas, armazéns, celeiros e habitações se encontravam instalados nas proximidades das sepulturas, enquanto a população se reunia, com frequência, na área do cemitério por ocasião de assembleias de justiça, para concluir um acordo, para registar atas por escrito ou para validá-las. Mercados e feiras, espetáculos, jogos e divertimentos faziam do campo funerário um lugar de sociabilidade e de encontros para os vivos. (…) se os vivos acorriam ao próprio local onde enterravam seus mortos, é porque eles queriam sua presença. O cemitério era, com efeito, o lugar dos pais e dos ancestrais – os patres, maiores e antecessores que os historiadores encontram em seus documentos; não ainda os “ancestrais” no sentido genealógico e individualizado, mas um mundo de mortos concebido de modo coletivo e anônimo, indissociável da dimensão costumeira da sociedade medieval. Os ancestrais sepultados na terra do cemitério representavam a autoridade e encarnavam a norma; eles inspiravam as ações dos vivos, presidiam as suas trocas (materiais e espirituais), davam garantia a seus julgamentos.” (op. cit., pp. 20-21).

Para Ariès, essa representação justifica o que ele chamou de “morte domada”, ou seja, havia uma naturalização da morte, convivendo-se com ela desde muito cedo. Esse aspecto ganha relevo quando remontamos o que era o cemitério em sua origem. Pode-se dizer que os mortos se faziam presentes e eram acolhidos, evidenciando o sentido do sufixo bebido em fonte grega. O sentimento seria o da presença dos ancestrais coletivos e não o de sua ausência: a morte era agregada e não o seu oposto.

Adentramos então uma ambiência de reconciliação entre os vivos e os mortos, que funda, igualmente, a expectativa de que os não nascidos viessem a se colocar nessa mesma posição. Uma outra decorrência desse tipo de atitude em relação aos mortos pode ter sido o estímulo de pensar a vida como algo do qual nos desapegamos, uma vez que é isso que o contato constante com os mortos pode nos ensinar. Somos passageiros, assim como aqueles que vieram antes de nós e os outros que nem sequer vieram à luz.

Para as pessoas que ainda acreditam no progresso dos costumes e da cultura, fica aqui um dilema: quanto teríamos que “avançar” para que alcançássemos essa mesma posição de compartilhamento e não de oposição entre vida e morte? Nada mais utópico do que sonharmos com um instante em que nos reatemos aos tempos passados, envergando-os com o devido respeito aos nossos ancestrais.

Pelo contrário, o contemporâneo, nos oferece certezas mesmo que envoltas na aparência de ceticismo. Isso, agregado ao cinismo que nos impede de confessar estarmos perdidos, mesmo que em meio à falsa segurança postulada pela mídia ou pelos estudos em humanidades. Nossa ignorância sobre a morte é maior em virtude da aparente aceitação das mediações que produzimos em relação a ela.

O que mudaria em nossas vidas se conseguíssemos aceitar que os antigos estavam certos e que os mortos poderiam mesmo permanecer conosco, por perto, inspirando nossas ações na direção do que julgamos importante a ser realizado e legado àqueles que virão?

Veja a LABÔ Lecture com Fernando Amed:
https://offlattes.com/archives/12447

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Sobre o autor

Fernando Amed

Doutor em História Social pela USP. Historiador pela FFLCH da USP, professor da Faculdade de Comunicação da Faap e do curso de Artes Visuais da Belas Artes de São Paulo, autor de livros e artigos acadêmicos. Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Comportamento Político do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.