Por alguns dias, o rosa tomou conta da internet, de vitrines e até de receitas de alimentos. Havia ali um código compartilhado que envolvia, como inevitavelmente boa parte de nós presenciou, o lançamento do filme Barbie, dirigido por Greta Gerwig.
Em meio à oferta de produtos e ações promocionais das mais variadas, observamos que a estratégia de marketing estabelecida pelo lançamento do filme foi tomada também como uma onda estética que estabeleceu a cor como seu parâmetro principal. O rosa foi incorporado por crianças, mulheres e homens que procuravam mostrar algum nível de identificação com o filme. A música da cantora Lizzo que acompanha a introdução visual ao mundo perfeito de Barbie dá o tom do que viemos a assistir: “in pink goes with everything” (em rosa combina com tudo). A boneca, lançada em 1959, alimentou gerações de crianças reproduzindo modelos hegemônicos de gênero, raça e classe, além de atrelar a felicidade aos bens de consumo.
É justamente a partir da desconstrução desses preceitos, que por tanto tempo sustentaram a venda do brinquedo, que o filme se apresenta. O mundo cor-de-rosa é interrompido por uma crise da boneca, interpretada por Margot Robbie, que passa a apresentar “defeitos” e ter pensamentos obscuros sobre a morte e a tristeza, por exemplo. Para entender o que se passa com ela, a boneca é conduzida a conversar com a “Barbie Estranha” (Weird Barbie), que parece ter a chave para a questão. Essa boneca, em especial, passou por experiências extremas com crianças que “brincaram demais com ela”. Vive numa casa isolada, inspirada no filme Psicose, de Alfred Hitchcock (LEWIS, 2023), com formas diferentes e coisas fora do lugar. É lá que vemos a ideia de diversidade ser ampliada.
No início do filme, vemos um mundo de Barbies representativo do ponto de vista étnico e corporal, que de uma certa forma já foi incorporado ao discurso politicamente correto da publicidade e do mundo corporativo (inevitável não pensar na linha Fashionistas concebida pela Mattel para a marca Barbie, que apresenta uma coleção bastante vasta de bonecos de diferentes cores de pele, formas corporais e condições físicas). Em seguida, a narrativa nos apresenta um mundo obscuro, representado por bonecos danificados, fora de linha e com pouco sucesso de mercado. Além da própria Barbie Estranha, lá estão também: Sugar Daddy Ken (da linha Palm Beach de 2009, vestido de terno casual e aparentando ser mais velho, gerando especulações acerca do duplo sentido do nome); Growing Up Skipper (que na versão de 1975 crescia em estatura e tamanho dos seios quando o braço era girado); Earring Magic Ken (versão do boneco de 1993, com brinco, colar e camisa transparente, que ficou conhecido como o “Ken gay”); Video Girl Barbie (de 2010, que trazia um visor e câmara acoplada e provocou especulações sobre possíveis usos das imagens geradas pela boneca); e Teen Talk Barbie (de 1992, que pronunciava frases como “Vamos planejar nosso casamento dos sonhos!” e “Aula de matemática é difícil!”, bastante criticada pelas feministas na época).
Por fim, os dois que mais têm destaque na narrativa do filme: Midge, amiga de Barbie em sua versão grávida dos anos 90; e a primeira versão de Allan, boneco amigo do Ken, lançado em 1964 e descontinuado em 1966. Diferentemente dos outros bonecos masculinos (que são todos Kens), Allan é único no filme. Tal particularidade é compreendida se levarmos em conta a história do boneco. Quando foi lançado pela primeira vez, o argumento de venda da Mattel era de que todas as roupas do Ken serviriam também nele. Isso gerou rumores de que os dois poderiam ter um relacionamento homossexual, o que pode ter contribuído para o curto tempo que o boneco ficou disponível no mercado. Assim, essa vertente gay de Allan, ainda que não explícita no filme, explica o desconforto do boneco com o mundo masculino e sua união com as mulheres contra o patriarcado.
No conjunto, os bonecos esquisitos mostram um mundo distinto dentro de uma realidade perfeita. Contudo, são os estranhos que vão ajudar a boneca principal a melhor compreender a sua situação. Transpondo a ficção para a realidade e as experiências estéticas por que passaram os espectadores durante o esperado lançamento do filme, algumas coisas chamam atenção. Além do uso do rosa e da disputa para tirar uma foto na caixa de boneca gigante (o que gerou uma série de releituras de “barbies e kens” sozinhos ou acompanhados, dentro e “fora da caixa”), destaca-se também o visual retrô do logo (que vigorou entre 1975 e 1991) e do mundo perfeito. Essas experiências, em grande parte promovidas pela estratégia bem-sucedida de lançamento do filme, mas também por ações espontâneas em redes sociais, contribuíram para a identificação das audiências de diferentes gerações com o filme.
O fato é que, em algum momento da vida, todas as pessoas vão também se sentir “estranhas” como os bonecos. Em Estigma, livro clássico dos anos 1960, o autor Erving Goffman (1978) faz um tratado sociológico a respeito das relações sociais envolvendo pessoas que possuem algum estigma. O autor inclui nessa categoria uma quantidade muito grande de características que tornam alguém diferente na sociedade. Pessoas com deficiência física e mental, obesas, homossexuais, negros, indígenas, imigrantes, de culturas e religiões diferentes da maioria local, com desvio de conduta presente ou passado (criminosos, viciados e prostitutas, por exemplo), assim como pessoas diretamente envolvidas com as primeiras (cônjuges, filhos, etc.). No livro, o autor discute as diferentes situações sociais em que as pessoas – estigmatizadas ou não – alinham códigos de conduta que incluem ou excluem mutualmente umas às outras, a depender da situação.
A obra, que continua atual para pensarmos processos de preconceito e ajuste social, demonstra que ao longo da vida qualquer pessoa irá passar por algum tipo de estigmatização. Mesmo os ditos “normais” por Goffman podem passar por processos momentâneos de estigmatização (quando perdem a visão temporariamente ou quando envelhecem, por exemplo). Para o autor, “o problema já não é saber se uma pessoa tem experiência com seu próprio estigma, porque ela a tem, mas sim saber quantas são as variedades dessa experiência” (GOFFMAN, 1978, p. 140). Além disso, o estigma é tratado dentro da relação social, já que a identidade é constituída a partir do olhar do outro. Com isso, o lidar com o estranho em si faz parte da constituição de todos nós.
A velhice, por exemplo, é marcada no filme em alguns momentos. Como quando a boneca, já no mundo real, chama sua companheira idosa no ponto de ônibus de “linda”, ao que esta responde “eu já sabia”. Para a diretora, a cena, que correu o risco de ser cortada, é o coração do filme (FILHA, 2023). Interpretada pela renomada figurinista Ann Roth, a presença da idosa promove a reflexão sobre a passagem do tempo e o diálogo entre gerações, que também vai situar a relação entre a mãe e a filha encontrada pela boneca no mundo real.
São também as marcas do tempo que estão no rosto do ator Ryan Gosling. Nascido em 1980, ele poderia ser considero velho para interpretar o principal boneco Ken no filme. Em um mundo dominado pela novidade e pela juventude, em que todos temos prazo de validade e em que envelhecer é cada vez mais um problema, os traços que indicam a idade em um boneco em crise de identidade funciona como gatilho para nossas próprias questões com o envelhecimento. Como coloca Luiz Felipe Pondé, “ao mesmo tempo que você pode viver noventa anos com (alguma) saúde, você já começa a envelhecer aos 25, desesperado por causa do colesterol, da estria e das rugas” (PONDÉ, 2016, p. 149).
A direção do filme também faz uso do personagem Ken para tratar do tema do patriarcado. Ainda que a descoberta de sua existência no mundo real faça com o que o boneco se aproprie do conhecimento adquirido para contaminar a Barbilândia com símbolos da masculinidade, isso é feito de forma caricata, tornando o mundo másculo de Ken algo bobo e destoante, preenchido por cavalos, filmes de velho oeste e cerveja. Assim, o filme consegue criar uma inversão de valores entre mundos que faz com que as normativas do patriarcado pareçam destoantes e antiquadas. Características que Goffman (1978, p. 139) apontava como evidentes entre pessoas que escapariam de estigmas, tais como ser homem, branco, urbano, heterossexual, com educação universitária, bem empregado, de bom aspecto, bom peso e altura, são colocadas sob uma nova perspectiva dentro do filme. Pessoas assim, que podem caracterizar também uma identidade específica, como argumenta Ribeiro (2019), são em grande medida representadas pelos “Kens” no filme. Ainda que apareçam a partir de diferentes etnias e tons de pele, com corpos relativamente dentro dos padrões, pecam por quererem destacar-se a partir do resgate de uma masculinidade antiquada.
Não é difícil traçar paralelos entre essa representação com os discursos do movimento Red Pill. Fomentado por uma série de influenciadores por toda parte, e que ganhou destaque recentemente no Brasil em função dos ataques do influenciador Thiago Schutz à comediante Lívia La Gatto, os homens que dele fazem parte acreditam que o mundo esteja sendo dominado de forma injusta pelas mulheres e seu discurso seria uma forma de retomar a ordem das coisas, devolvendo o controle aos homens. Barros (2023) mostra que para eles a mulher ideal deve ser obediente, delicada, não usar roupas curtas e não defender ideias de igualdade. Na prática, os discursos estão carregados de ideias conservadoras, misóginas e antifeministas. Podem ainda ser entendidos como uma resposta dos homens que não conseguem lidar com os avanços das mulheres. Assistir aos Kens sendo ridicularizados a partir desses valores seria então uma espécie de desforra de qualquer um que ao longo da vida tenha se sentido intimidado por princípios dessa natureza. Um aceno em prol do feminismo, do queer e da diversidade.
No filme, o desfecho sinaliza para uma conciliação entre homens e mulheres, com os primeiros dispostos a rever seu lugar e se descobrirem, enquanto elas retomam a liderança. Já a boneca principal, a Barbie Estereotipada, numa mea culpa proposta pela própria indústria que por tantos anos vendeu ideários fictícios de consumo do mundo feminino, vai enfrentar os problemas do mundo real, como uma visita ao ginecologista.
Referências
BARROS, Duda Monteiro de. Movimento Red Pill revela a face cruel e reacionária do machismo nas redes. Veja, 10 mar. 2023. Disponível em: https://veja.abril.com.br/comportamento/movimento-red-pill-revela-a-face-cruel-e-reacionaria-do-machismo. Acesso em 30 jul. 2023.
FILHA da criadora da boneca Barbie aparece no filme? Aventuras na História, 25 jul. 2023. Disponível em: <https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/almanaque/filha-da-criadora-da-boneca-barbie-aparece-no-filme.phtml>. Acesso em 30 jul. 2023.
GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
LEWIS, George. Barbie movie designer says iconic horror movie inspired Weird Barbie’s house. Digita Spy, 27 jul. 2023. Disponível em: https://www.digitalspy.com/movies/a44665316/barbie-weird-barbie-house-hitchcock-psycho-influence/. Acesso em 30 jul. 2023.
PONDÉ, Luiz Felipe. Filosofia para corajosos. São Paulo: Planeta, 2016.
RIBEIRO, D. Pequeno manual antirracista. São Paulo: Cia das Letras, 2019.
VERDUM, Kevin. De Allan a Barbie Grávida e Sugar Daddy Ken: conheça todos os bonecos descontinuados que aparecem em “Barbie. Portal Famosos, 2023. https://portalfamosos.com.br/de-allan-a-barbie-gravida-e-sugar-daddy-ken-conheca-todos-os-bonecos-descontinuados-que-aparecem-em-barbie/
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