Tradução: Wodan Grambyel dos Santos Ferreira | Revisão: Luiz Bueno e Flávia Sarinho | © Labô
Texto original: “Dangerous Egalitarian Dreams” – publicado em City Journal (outono de 2001)
Os filósofos públicos mais célebres de nosso tempo — nossos Rousseau e Voltaire, por assim dizer — são John Rawls e Ronald Dworkin. Profetas de um socialismo não-marxista, eles fornecem a justificativa para a agenda doméstica da ala esquerda do Partido Democrata e são em grande parte responsáveis pelo notável sucesso da esquerda em ocupar o terreno moral mais elevado. Eles convenceram as elites da nação de que é uma questão de simples justiça para a nossa sociedade privar sistematicamente a grande maioria dos cidadãos de uma parcela considerável de sua propriedade legal para beneficiar uma minoria muito menor – uma redefinição orwelliana que tanto zomba quanto viola a justiça. Em seu sistema filosófico igualitário, não há necessidade de debater os méritos da tributação progressiva, programas de combate à pobreza, medicina socializada, ação afirmativa, e legislação de bem-estar social: uma sociedade que carece deles, por definição, não é uma sociedade justa.
Não se pode enfatizar demais o imenso prestígio que esses dois desfrutam entre as elites liberais. O presidente Clinton condecorou Rawls, professor aposentado de filosofia de Harvard, com a Medalha da Liberdade, e a Chronicle of Higher Education recentemente o reconheceu como “o mais distinto filósofo moral e político de nossa época”, estampando-o em sua capa entre retratos de seus supostos pares — Aristóteles, Hobbes, Kant e Hegel. Seu livro mais conhecido, A Theory of Justice, vendeu mais de duzentas mil cópias – um número inédito para um tratado teórico denso e túrgido – e foi traduzido para mais de vinte idiomas desde sua publicação em 1971. A sequência de Rawls de 1993, Political Liberalism, reafirma a teoria original, revisando um detalhe aqui e ali. Nos departamentos de filosofia de todo o país, jovens estudiosos produzem incansavelmente explicações de seu pensamento.
Se Rawls é o sábio do igualitarismo, Dworkin é o queridinho. Advogado por formação, ele detém não uma, mas duas cátedras tituladas: de Direito e Filosofia na New York University e de Jurisprudence[1] em Oxford. Seus colegas advogados da American Bar Association concederam-lhe o prêmio Silver Gavel, e o prestigioso Journal of Philosophy o consagra como o “America’s leading legal philosopher”. Seus livros e coletâneas de artigos de periódicos como a The New York Review of Books são escritos em prosa cativante e acessível, expelindo indignação moral sobre o catálogo habitual de supostas injustiças da esquerda liberal. Dworkin é um mestre em encontrar meios constitucionais para perseguir políticas igualitárias; juízes e professores de direito em todo o país prezam cada palavra que ele pronuncia.
Ao contrário dos tradicionais defensores da injustiça legislativa, que afirmavam as supostas excelências daqueles que se beneficiavam de leis injustas em detrimento de outros, Rawls e Dworkin defendem a injustiça com base nas deficiências daqueles que dela se beneficiam. O simples fato de que algumas pessoas em uma sociedade possuem menos propriedades do que outras, eles afirmam, é uma boa razão para tentar equalizar a diferença entre elas. Afinal, um governo justo deve tratar a todos com igual consideração e, afirmam, isso requer uma legislação que vise à equalização da propriedade. Esse igualitarismo econômico vai muito além da afirmação incontroversa de que as pessoas deveriam ter igualdade de direitos políticos e legais. O igualitarismo econômico requer privar os 86% dos cidadãos que vivem acima do nível de pobreza de uma parte substancial de sua propriedade legal para cedê-la aos 14% que vivem abaixo dele.
A retórica igualitária apaixonada que afirma essa suposta obrigação leva muitas pessoas à aquiescência. Mas tal obrigação não existe, e o apelo a ela é absurdo, porque exige a equalização da propriedade de estupradores e suas vítimas, fraudadores da previdência e contribuintes, pródigos e poupadores. Nenhuma pessoa razoável pode acreditar que somos obrigados a tratar o moral e o imoral, o prudente e o imprudente, o cumpridor da lei e o criminoso com igual consideração. Embora possamos ter a obrigação de ajudar aqueles que são pobres sem culpa própria, é absurdo supor que se, como resultado de más escolhas, as pessoas se encontram abaixo do nível de pobreza, seria obrigação do governo ajudá-los confiscando uma parcela considerável da propriedade de todos os outros.
Pode-se pensar que ninguém poderia sustentar seriamente uma visão tão implausível. Mas Rawls e Dworkin a sustentam, e persuadiram muitas pessoas altamente inteligentes a compartilhá-la, dando expressão sistemática à culpa injustificada, mas generalizada, que muitas pessoas ricas sentem em relação à pobreza, e propondo políticas elaboradamente fundamentadas que amenizam essa culpa. Suas razões, no entanto, vão contra o senso comum, repudiam a concepção de justiça que tem sido fundamental na tradição ocidental e têm consequências que ultrajariam a sensibilidade moral das pessoas razoáveis, se as percebessem.
Rawls e Dworkin recorrem à tradição contratualista de Hobbes e Locke para criar as justificativas de que precisam. Nessa tradição, a relação entre os indivíduos e sua sociedade foi concebida como um contrato hipotético, no qual os indivíduos abdicam de parte de sua liberdade em troca da proteção da sociedade das condições em que podem buscar sua felicidade como bem entenderem, desde que não interfiram nas buscas semelhantes dos outros. Hobbes e Locke sabiam que estavam recorrendo a uma metáfora; eles o fizeram para esclarecer e dramatizar sua compreensão profundamente ponderada do que a natureza humana realmente é e de como a sociedade realmente funciona.
Rawls e Dworkin também oferecem um contrato hipotético, mas seu objetivo é ignorar as realidades da psicologia, as realidades históricas, políticas e econômicas de sociedades particulares e os princípios reais de justiça nelas existentes. A surpreendente afirmação igualitária é que a racionalidade exige que desconsideremos essas circunstâncias concretas e princípios reais para nos conformarmos a princípios abstratos e gerais mais fundamentais, que Rawls e Dworkin então usam para justificar a transformação radical de nossa sociedade e o confisco da propriedade legítima.
Mas como poderia ser racional confiscar propriedades sem perguntar se as pessoas têm o direito de possuí-las, ou considerar a pobreza injusta sem perguntar por que alguns são pobres e outros não? Rawls e Dworkin se opõem conscientemente à longa tradição do pensamento político que acertadamente considera um requisito elementar da racionalidade compreender as diferentes circunstâncias históricas das sociedades atuais antes de condená-las. Sua tentativa de justificação repousa em um procedimento que prefere a imaginação aos fatos; seus princípios igualitários abstratos apenas expressam seus próprios preconceitos — e tudo o que deriva desses preconceitos, por mais lógico que seja, só pode apelar àqueles que já os compartilham.
Rawls chama a situação hipotética que ele inventa de “posição original”. Ele imagina pessoas racionais e egoístas se unindo para legislar para sempre os princípios sob os quais viverão. Cada um escolherá, inevitavelmente, princípios que lhes sejam favoráveis. Rawls estipula, no entanto, que os princípios escolhidos teriam que ser endossados por todos eles. Para explicar como pessoas racionais e egoístas poderiam alcançar a unanimidade necessária, Rawls inventa outro dispositivo, o “véu da ignorância”, que oculta dos legisladores na posição original todo conhecimento sobre seu próprio caráter, circunstâncias e posições na sociedade para a qual estão legislando. Como eles não sabem que princípios os favoreceriam, endossarão princípios que tornariam tolerável até mesmo a pior posição que possam ocupar na sociedade recém-constituída.
O véu da ignorância, no entanto, não pode oferecer o que Rawls pretende extrair dele, pois aqueles que estão por trás do véu de Rawls não são seres humanos, mas fantoches. Os seres humanos que são racionais e egoístas não chegarão às conclusões exigidas por Rawls, porque têm o conhecimento que Rawls lhes nega e porque seus interesses são diferentes e muitas vezes conflitantes. A unanimidade que fantoches de Rawls alcançam nada nos diz sobre os princípios que os seres humanos reais alcançariam.
Rawls ignora esse defeito fatal e afirma que seus legisladores endossariam unanimemente o que ele chama de princípios de “liberdade igual” e “diferença”. A primeira exige que haja liberdade máxima na sociedade para todos, consistente com a mesma liberdade para todos – uma reafirmação do princípio que John Stuart Mill propôs em On Liberty. Rawls reconhece que o princípio da igualdade de liberdade resultaria em grandes desigualdades econômicas. As diferenças de talentos, educação, experiências e boa ou má sorte das pessoas afetarão seu sucesso econômico. Há, portanto, a necessidade de um segundo princípio para determinar quais desigualdades econômicas são permitidas. E o que esse princípio diz, entre outras coisas, é que “desigualdades econômicas devem ser arranjadas de modo que sejam… para o maior benefício dos menos favorecidos”. É aceitável, por exemplo, que os médicos ganhem salários exorbitantes se essa for a única maneira de as pessoas que vivem na pobreza receberem bons cuidados de saúde. Uma sociedade organizada de acordo com esses princípios estaria assim redistribuindo perpetuamente a propriedade de seus cidadãos, tirando daqueles que estão em melhor situação o que não beneficia aqueles que estão em pior situação.
Os dois princípios de justiça de Rawls não podem cumprir o que prometem. O primeiro promete ampla liberdade; o segundo, igualdade econômica. Mas, dado o fato óbvio das grandes diferenças individuais, a forma como as pessoas exercem sua liberdade resultará em desigualdade econômica. Da mesma forma, a igualdade econômica exige o cerceamento da liberdade individual. Rawls enxerga esse conflito e lida com ele permitindo apenas a liberdade compatível com a igualdade econômica. Assim, ele começa na tradição liberal de Locke e Mill, prometendo liberdade, e termina, na tradição socialista, sufocando a liberdade em nome da igualdade econômica.
Para tornar concreto o que essa teoria considera justiça, compare duas das piores situações em nossa sociedade. A primeira, a de um assaltante que nunca teve um emprego, é perverso quando pode se safar e gasta seus ganhos ilícitos em drogas. A segunda, uma mãe de três filhos, que foi abandonada pelo marido; ela ganha um salário mínimo em um trabalho braçal e está se esforçando para criar bem seus filhos. De acordo com o que Rawls chama de justiça, esses dois têm direito aos mesmos recursos da sociedade simplesmente porque estão entre os menos favorecidos. A crueldade e a falta de esforço do assaltante e a decência e a luta da mãe não criam nenhuma diferença moralmente relevante entre eles.
Agora mude um pouco o cenário. O assaltante continua como antes, mas os esforços da mãe deram frutos. Ela encontrou um emprego melhor e está se saindo bem. Sua família agora é moderadamente segura e confortável, mas não abastada. Na visão de Rawls, a justiça exige que se tire alguns recursos da mãe para entregá-los ao assaltante.
Ao considerar justa essa flagrante injustiça, Rawls repudia a concepção – aceita desde o Antigo Testamento até tempos recentes – de que a justiça consiste em dar às pessoas o que elas merecem: recompensa pela boa conduta e punição pela má. A justiça exige proteger as pessoas, como a mãe, no gozo de sua propriedade legalmente constituída contra as depredações de criminosos, como o assaltante, e as políticas confiscatórias dos igualitaristas. Os esforços para igualar a propriedade dos merecedores e dos não merecedores, como defende Rawls, não são justiça, mas seu oposto, não importa como Rawls os chame.
Rawls é explícito em seu repúdio. Ele reconhece que “há uma tendência do senso comum de supor que a renda e a riqueza, e as coisas boas da vida em geral, devem ser distribuídas de acordo com o merecimento moral”. Mas não. “Os princípios de justiça… não mencionam o mérito moral, e não há tendência para que as quotas distributivas lhe correspondam.” Afinal, o que as pessoas merecem é consequência das contingências de sua herança genética, criação e circunstâncias; como elas não têm controle sobre essas condições, é errado fazer a distribuição de benefícios e danos a depender de condições pelas quais eles não têm responsabilidade. Como ele diz: “A dotação inicial dos recursos naturais e as contingências de seu crescimento e nutrição no início da vida são arbitrárias do ponto de vista moral”. Uma vez que a liberdade igual, primeiro princípio de justiça, resultaria no sucesso daqueles a quem a sorte favorece com talento ou capacidade de trabalho, e no fracasso daqueles que têm a infelicidade de não terem talento ou serem preguiçosos, o segundo princípio de justiça supera essa arbitrariedade não permitindo que as pessoas se beneficiem de sua boa sorte ou sofram com seu infortúnio.
À objeção óbvia de que, embora as pessoas possam não ter controle sobre as condições iniciais de suas vidas, elas têm controle sobre o que fazem dessas condições, Rawls diz que não — as ações humanas nunca escapam da atração gravitacional de seu passado. “O esforço que uma pessoa está disposta a fazer é influenciado por seus dons e habilidades naturais e pelas alternativas disponíveis a ela. Os mais bem dotados são mais propensos, em igualdade de circunstâncias, a se esforçarem conscienciosamente e parece não haver maneira de descontar sua maior sorte”.
Mas Rawls está errado. Afinal, muitas pessoas nascidas e criadas na pobreza conseguiram deixá-la para trás. O que a mãe conseguiu, outros também podem conseguir; nada forçou o assaltante a levar uma vida de crime. Por mais difícil que seja ter sucesso na vida quando se vive na pobreza, o argumento de Rawls de que a pobreza reduz as pessoas à condição de vítimas indefesas é um insulto aos pobres.
Em sua negação radical da responsabilidade individual, a teoria de Rawls é profundamente subversiva, por mais razoável ou modesto que seja seu tom. Não apenas torna a moralidade e a legalidade impossíveis, minando os fundamentos da vida civilizada, mas também, em um nível ainda mais profundo, rouba-nos nossa humanidade essencial – nossas almas e livre arbítrio. É difícil imaginar uma teoria mais implacavelmente anti-humanista.
Ronald Dworkin, por sua vez, reconhece esse problema profundo em Rawls e procura corrigi-lo. Idealmente, ele diz em seu recente Sovereign Virtue: The Theory and Practice of Equality, um livro que resume seu pensamento, devemos responsabilizar pessoalmente as pessoas por suas ações. Mas fazer isso só faz sentido, ele sustenta, em uma sociedade igualitária, onde ninguém sofre com as desvantagens imerecidas que os eximem da responsabilidade em nossa sociedade existente e desigual. A versão de igualitarismo de Dworkin é, na verdade, tão absoluta quanto a de Rawls. Como Rawls, ele acredita que “nenhum governo é legítimo se não demonstrar igual preocupação com o destino de todos os cidadãos sobre os quais reivindica domínio”. Segue-se, então, que o governo só é “tirania”, afirma ele, se “a riqueza de uma nação for distribuída de forma muito desigual, como é a riqueza mesmo de nações muito prósperas”.
Dworkin sonha com uma “fantasia igualitária” que ilustra o princípio de “igualdade de recursos” sobre o qual uma sociedade verdadeiramente igualitária seria fundada. Imagine pessoas em uma ilha deserta possuindo bens iguais em uma espécie de comunismo primitivo. De acordo com seu mito do contrato social, eles participariam de um leilão, oferecendo seus bens iguais por pacotes de recursos: ferramentas para construir, digamos, ou terras para plantar, ou violinos para aprender a tocar – qualquer coisa que lhes permita viver o tipo de vida que eles querem levar, seja como carpinteiro, agricultor, capitalista de risco, monge ou músico. A distribuição de recursos resultante desse leilão é justa e igualitária, afirma Dworkin, porque passa automaticamente em um “teste de inveja”: ninguém vai preferir o pacote de recursos de outra pessoa ao seu próprio, uma vez que todos partiram do mesmo lugar e fizeram suas escolhas livremente. Somente quando as pessoas podem decidir o curso de suas vidas dessa maneira irrestrita, acredita Dworkin, poderemos dizer que elas são ao mesmo tempo iguais e pessoalmente responsáveis por seus destinos.
Dworkin não acha que seu leilão, por si só, eliminará todas as desigualdades inaceitáveis. Uma pessoa pode apostar em uma vida familiar segura, apenas para descobrir que ela foi interrompida pela morte prematura de seu cônjuge. Algumas pessoas nascem estúpidas ou pouco atraentes, e o leilão não consegue suprir suas deficiências. Vidas pós-leilão, em outras palavras, ainda podem ser marcadas pelo azar. Para proteger as pessoas de tal infortúnio, Dworkin acrescenta ao seu leilão imaginário um regime de seguro obrigatório.
Como Dworkin aplica essa fantasia à sociedade supostamente injusta em que vivemos? Ele não o faz e duvida que possa ser aplicada: “É uma questão complexa e talvez sem resposta o que a igualdade de recursos exige de nós, como indivíduos, em nossa própria sociedade”. Mas ele está certo, no entanto, de que de alguma forma, de alguma forma misteriosa, seu esquema pode servir “como um modelo rudimentar para a concepção de instituições políticas e econômicas para o mundo real, em busca de tanta igualdade de recursos quanto possível”. Seguir esse modelo rudimentar, no entanto, exigiria – no mínimo – uma tributação redistributiva massiva para repor as pessoas o mais próximo possível no estado de igualdade primitiva em sua ilha de fantasia. E ele incansavelmente insta os tribunais a tornarem sua fantasia real, legitimando a redistribuição permanente da propriedade legalmente constituída.
Quando você esboça a teoria da igualdade de recursos de Dworkin, você não pode deixar de ver quão tênue e incoerente ela é – e de ficar perplexo com a adulação que as pessoas que deveriam saber melhor dispensam a esse escritor. Notavelmente, ele não fornece nenhuma razão para aceitarmos sua crença de que a legitimidade de um governo depende da distribuição igualitária da riqueza. Por que um governo deveria ter igual preocupação com cidadãos morais e imorais, cumpridores da lei e criminosos, responsáveis e irresponsáveis? Dworkin nunca diz. Ele admite que os leitores precisarão procurar “em outro lugar” argumentos em defesa do igualitarismo. Como Rawls, em outras palavras, ele começa com “suposições básicas” sobre o que a igualdade exige em princípio, e depois apenas formula uma teoria para descobrir as implicações de suas suposições iniciais. Terminando mais ou menos onde começa, ele adota exatamente o ponto que mais requer discussão. Você já teria que concordar com suas premissas igualitárias para achar qualquer coisa que ele diga, mesmo que remotamente, persuasiva.
Tampouco se deve ignorar quão extraordinário é elevar a inveja ao critério de justiça, como Dworkin faz ao exigir que sua distribuição inicial de recursos passe no “teste da inveja”. A tradição ocidental, dos Dez Mandamentos em diante, tem visto a inveja como um vício, porque leva as pessoas a se ressentirem das conquistas legítimas dos outros e a tentar privá-los das vantagens que conquistaram por meios legais e morais. O teste da inveja de Dworkin não pergunta se as pessoas merecem suas vantagens ou se aquelas que não as têm precisam delas. Ele só pergunta se aquelas sem vantagens as querem.
Mas uma coisa é o faminto invejar os que têm o que comer; outra bem diferente é, digamos, um empresário de sucesso invejar um outro extremamente bem-sucedido. No entanto, é exatamente isso que o teste da inveja exige. Tal ressentimento é destrutivo das emoções políticas, pois distorce a alma do invejoso, tornando-o incapaz de solidariedade cívica. Perversamente, Dworkin está pegando o pior da natureza humana e usando-o como uma pedra de toque para a boa sociedade. Além disso, dada a propensão humana à cobiça, por que ele acha que qualquer distribuição de recursos poderia satisfazer o teste da inveja, mesmo em seu momento mítico da fundação da sociedade – quando as pessoas, vendo as escolhas que outras fazem, de repente poderiam se arrepender de suas próprias?
Ao fazer da inveja a chave para sua sociedade ideal, Dworkin leva ao extremo a ideia de privação relativa no cerne do pensamento da esquerda pelo menos desde a década de 1950. Se uma pessoa desfruta de um padrão de vida modesto, mas decente, mas se encontra cercada por outros que dirigem Mercedes Benz e usam relógios Cartier, então, acredita a esquerda, ela ainda é pobre e vitimizada – mesmo que possa viver tão bem materialmente quanto alguém considerado confortavelmente de classe média algumas décadas antes, como é de fato o caso dos pobres de hoje. A privação relativa garante que os pobres efetivamente estarão sempre conosco, mesmo que os chamados pobres tenham o suficiente.
Dworkin também se mostra incrivelmente arrogante em relação às realidades econômicas. Ele parece presumir que os recursos estão simplesmente por aí, prontos para serem recolhidos. No mundo real, é claro, as pessoas precisam misturar seu trabalho com matéria-prima para criar recursos. Alguém deve produzir as ferramentas, o violino, a comida, o petróleo – na verdade, a maioria dos recursos que se possa imaginar. Mas por que alguém voluntariamente produziria qualquer coisa no mundo de Dworkin, já que os frutos do trabalho vão igualmente para aqueles que não produzem nada? Certamente o fracasso catastrófico do marxismo mostrou com clareza irrefutável a loucura de tentar suprimir os incentivos econômicos.
Mesmo que, de alguma forma, estabelecêssemos uma sociedade dworkiniana, ela logo se desviaria do ideal, recriando as mesmas desigualdades que Dworkin procura banir. Afinal, as pessoas são diferentes. Alguns podem enriquecer usando recursos de forma construtiva. Outros podem tornar-se pobres desperdiçando recursos vivendo desregradamente. Dworkin reconhece que isso pode ser verdade. “É claro que é impossível dizer antecipadamente quais seriam as consequências de qualquer mudança profunda no sistema econômico e quem ganharia ou perderia no longo prazo.” Mas quando as desigualdades começarem a surgir novamente, será que voltamos para a ilha deserta e começamos de novo, em uma espécie de revolução sombria e permanente? Ou permitimos que as desigualdades se mantenham, já que elas resultaram da livre escolha das pessoas?
Por mais indefensável que seja, a teoria de Dworkin ilustra de maneira útil os problemas que tornam todas as versões do igualitarismo insustentáveis. Os igualitaristas enfrentam um dilema fatal. Se eles dizem, como Dworkin, que a responsabilidade individual realmente importa, então devem aceitar a afirmação anti-igualitária de que é errado igualar os recursos das pessoas que cumprem suas responsabilidades aos daquelas que não o fazem. Por outro lado, se eles insistem, como Rawls, que a responsabilidade individual não faz diferença na decisão de quais recursos as pessoas devem ter, então estão comprometidos com a política absurda e injusta de confiscar a propriedade legalmente constituída de pessoas morais, prudentes e cumpridoras da lei para beneficiar os imorais, imprudentes e criminosos. A única saída para esse dilema é abandonar o igualitarismo.
O igualitarismo (como o libertarianismo) também é vítima do perigoso erro político de tornar um valor específico “soberano” sobre todos os outros. Na política das sociedades civilizadas contemporâneas, não pode haver virtude primeira ou soberana. Nossas sociedades complexas procuram adequadamente proteger uma série de coisas desejáveis – como liberdades civis, privacidade, paz, prosperidade e segurança – e evitar coisas indesejáveis, incluindo ataques terroristas, crimes, doenças, pobreza, discriminação, ignorância e guerra. Toda sociedade deve lidar com os conflitos sempre presentes entre as muitas coisas que valoriza e entre proteger o que valoriza e evitar o que condena. Este é um ato de equilíbrio imensamente complicado, no qual o peso atribuído a cada coisa boa e ruim muda continuamente. Independentemente do que os igualitários digam, nada neste fluxo pode razoavelmente ter importância primordial de modo permanente.
Um último problema condena todas as versões de igualitarismo: a miopia sobre as realidades da história. Rawls e Dworkin defendem o livre mercado da boca para fora. Mas seu compromisso com isso não é mais forte do que seu compromisso com a liberdade em geral. Rawls apoia o livre mercado desde que não prejudique a igualdade econômica. E Dworkin pensa que “se aceitarmos a igualdade de recursos… a liberdade se torna um aspecto da igualdade em vez de… um ideal político independente”. Nenhum deles aprendeu a lição histórica inevitável de que o livre mercado, livre da interferência política excessiva, é a chave para gerar a prosperidade necessária para reduzir a pobreza. Os igualitaristas condenam nossa sociedade por causa dos 14% que vivem abaixo do nível de pobreza. Se eles tivessem uma perspectiva histórica, em vez disso, comemorariam a enorme conquista de ter uma sociedade onde 86% vivem acima do nível de pobreza. Na grande maioria das sociedades passadas, a proporção era muito mais próxima do inverso. O livre mercado é o que provocou essa notável reversão.
Por mais equivocado que seja o igualitarismo, a pobreza continua sendo um fato inescapável da vida. As pessoas decentes podem perguntar se não devem fazer algo para ajudar os pobres sem culpa própria. Aqui está a resposta: eles já estão fazendo alguma coisa. Considere uma família de quatro pessoas: dois pais e dois filhos. Eles têm uma renda anual de US$ 100.000, então são considerados ricos. Levando em conta várias isenções, eles provavelmente pagarão cerca de US$ 30.000 em impostos federais e estaduais e contribuições para a Previdência Social e o Medicare.[2] Além disso, eles pagarão impostos sobre propriedades, para a manutenção das escolas e impostos incidentes sobre o consumo de bens. Ao todo, eles provavelmente pagam cerca de US$ 35.000 em impostos. Os programas de assistência social consomem cerca de 60% dos orçamentos federal e estadual, portanto, do total de impostos anuais da família, cerca de US$ 21.000 vão para a assistência social.
É claro que generosidade, piedade, caridade, benevolência ou compaixão podem levá-los a fazer mais. Mas quanto à suposta obrigação de fazer mais – essa não há.
[1] Disciplina introdutória comum aos cursos de Direito nos EUA. Aborda conteúdos geralmente trabalhados nas disciplinas de Teoria Geral do Direito e Filosofia Jurídica no Brasil. (N.T.)
[2] Programa de seguridade social gerido pelo governo federal dos Estados Unidos destinado àquelas pessoas de idade avançada ou que atendam a determinados critérios de renda (N.T.).
Imagem: Quinn Dombrowski/Wikimedia Commons