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A modernidade foi um conto do vigário?

Em muitos casos, o termo moderno parece desprovido de valor e neutro, não muito diferente de na moda: moderno é o que está prevalecendo em nossa época e, na verdade, a palavra é usada frequentemente de forma sarcástica (como em Tempos Modernos, de Chaplin). Por outro lado, as expressões ciência moderna e tecnologia moderna sugerem fortemente, pelo menos no uso comum, que o que é moderno é, portanto, melhor. A ambiguidade de significado reflete talvez a ambiguidade que acabamos de mencionar e que assombra nossa atitude em relação a mudanças: estas são ao mesmo tempo bem-vindas e temidas, desejáveis e amaldiçoadas. Muitas companhias anunciam seus produtos com frases que abordam ambas as atitudes: “mobília boa como dos velhos tempos” ou “sopa como a vovó costumava fazer”; assim como “um sabão inteiramente novo” ou “uma empolgante novidade na indústria do sabão de lavar roupas”. Ambos os truques parecem funcionar; talvez a sociologia da publicidade tenha produzido uma análise de como, onde e por que esses slogans aparentemente contraditórios mostram-se bem-sucedidos”. Leszek Kolakowski. A modernidade em um julgamento sem fim. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2021. pp. 14, 15.

Antes fosse uma lenda urbana ou uma teoria da conspiração. Algo assim para rirmos e contarmos como uma anedota. Só que não. Aqueles de nós que se consideram seres razoáveis, estudados e críticos, vivem para justificar que o relógio cultural da história somente avança, deixando para trás tempos inglórios e atrasados. E riem dos crentes e daqueles que possuem cultos afinados com a Antiguidade ou Idade Média.

O mito da modernidade produziu uma metafísica barata, mas com grande força e fôlego, uma vez que trouxe a reboque a crença de que sejamos mais livres do que nunca fomos em épocas anteriores. Um sintoma dessa mitomania se manifesta no modo como depreciamos o passado, fazendo-o parecer uma época de trevas, um verdadeiro esculacho.

Fazer parecer que existe uma oposição ou uma escolha pior do que aquela que vivemos é uma estratégia pedagógica que já se manifestou na história, e demonstra que o maniqueísmo ainda se mostra eficiente. Do ponto de vista secular – uma das bases da modernidade –, a crença na liberação tem focado nos temas identitários, na luta contra o patriarcalismo ou na igualdade de gênero, entre outros poucos temas.

Vive-se para acreditar que essa agenda foi fundada no século XX, mesmo que para tanto se possa voltar ao passado mais remoto, com o objetivo de encontrar ali os precursores. Temos o seguinte: toma-se um acontecimento do presente e, em caminho contrário, busca-se algum acontecimento passado que o justifique. Simples assim: o passado, sendo filho do presente e de quem viveu nele, estava prenhe de futuro.

Em comparação com as outras nomeações arbitrárias que dividem a história – Pré-História, Idade Antiga e Idade Média – somente a modernidade veio a dotar o ser humano de consciência em relação ao período em que vive. Os romanos ou egípcios poderiam se sentir superiores em relação aos povos que conheciam e que julgavam inferiores. Acreditavam que seus impérios fossem durar para sempre, mas não possuíam uma lógica de superação nos moldes do que futuramente foi definido por dialética.

Sempre bom recordar que a modernidade dificilmente seria a mesma se não contasse com os gadgets, as invenções e descobertas que tanto alteram a nossa percepção, mexendo com os nossos sentidos. Tal profusão de experiências, que geram ansiedade enquanto aguardamos o próximo lançamento, nos infantiliza a todos. O mesmo podemos dizer em relação à medicina, de longe, o campo em que observamos avanços concretos se tomamos como critério a diminuição das dores e o aumento da expectativa de vida. Sendo esse o aspecto que mais dá suporte à nossa crença na modernidade.

Além disso, contamos com o marketing, sempre dedicado a perceber e antecipar as novas tendências com vistas a nos oferecer o que possamos consumir para ficarmos felizes. Tornamo-nos presas fáceis do tédio e ainda desejamos uma semana de trabalho com três dias. Suportaríamos tudo isso ou procuraríamos nos liquidar uns aos outros?

Numa sociedade assim, que fez o passado cativo do presente, nem sequer possuímos o contraste daquilo que já aconteceu. Arrumando o passado ao nosso gosto e semelhança – às modas, enfim – temos muito pouco que venha a nos colocar em dúvida ou nos predispor para tanto.

Talvez seja por isso que parecemos nos divertir inclusive quando escolhemos algumas causas para lutar, e que combinam com o nosso guarda-roupa. Ao menos é essa a atmosfera que se reconhece nas redes sociais. No universo das causas, escolhemos aquelas que mais propensas a promover a nossa face mais fofa, especialmente se você priva de alguns espaços mais ricos (mesmo que envoltos sob a aparência intelectual).

Essa deve ser a pior faceta da hipocrisia moderna: jogar com a ansiedade da recepção quando se articula a defesa de algo que resvala na defesa da humanidade. A que ponto chegamos, se mesmo a boa vontade se transforma em produto? E note-se que sempre podemos encontrar alguma nova causa para investir, contanto que ela seja coerente com a imagem que projetamos de nós mesmos em sociedade.

Veja a LABÔ Lecture com Fernando Amed:
https://offlattes.com/archives/12447

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Sobre o autor

Fernando Amed

Doutor em História Social pela USP. Historiador pela FFLCH da USP, professor da Faculdade de Comunicação da Faap e do curso de Artes Visuais da Belas Artes de São Paulo, autor de livros e artigos acadêmicos. Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Comportamento Político do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.