Behavior

Terraplanismo com viés de esquerda

Agora uma palavra negativa sobre as tentativas recentes de buscar a justiça num terreno bem diverso – o do ressentimento. Antes direi no ouvido dos psicólogos, supondo que desejem algum dia estudar de perto o ressentimento: hoje esta planta floresce do modo mais esplêndido entre os anarquistas e antissemitas, aliás onde sempre floresceu, na sombra, como a violeta, embora com outro cheiro. E como do que é igual sempre brotarão iguais, não surpreende ver surgir, precisamente desses círculos, tentativas como já houve bastantes de sacralizar a vingança sob o nome de justiça, como se no fundo a justiça fosse apenas uma evolução posterior do sentimento de estar ferido – e em seguida promover, com a vingança, todos os afetos reativos. (…) O que gostaria de sublinhar é a circunstância de que essa nova nuance de equidade científica (em favor do ódio, do despeito, da inveja, da suspeita, do rancor, da vingança) nasce do próprio espírito do ressentimento. Friedrich Nietzsche. Genealogia da moral. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987, pp. 76, 77.

Por que todas as culturas veneradas são as não ocidentais? Por que as instituições herdeiras da alta cultura – as universidades, centros de pesquisa, fundações que premiam os feitos humanos – se voltam com afinco contra o passado e o presente da cultura ocidental? Há algum outro povo que não seja ocidental que promova uma tão exacerbada autocrítica de sua visão de mundo? É possível que nos deparemos com universidades chinesas, iranianas, turcas ou libanesas que possibilitem e estimulem a crítica contra os excessos da religião ou do Estado? Poderíamos escolher usar um cabelo moicano e calças jeans rasgadas em Gaza?

A busca pelas respostas às perguntas acima foi o que mobilizou o jornalista britânico Douglas Murray em seu último livro recém-publicado no Brasil, no mesmo ano de seu lançamento no Reino Unido. Trata-se de A guerra contra o Ocidente (São Paulo: Faro Editorial, 2022). Repleto de exemplos de situações que demonstram a fúria com que o Ocidente se volta contra si próprio, a obra possui quatro capítulos (raça, história, religião e cultura) acompanhados de três interlúdios (China, reparações e gratidão).

Em cada um desses temas, o autor enumera uma série de situações que passam pela restrição do livre pensar, quase sempre tomado como preconceituoso: a cultura ocidental sendo fruto das obras do homem branco morto. Dentre os conceitos que dão sustento para a sua argumentação e que fornecem suportes para o seu critério de escolha quanto ao que abordar, sobressaem-se dois: o da culpa e o do ressentimento. Quando aborda este último tema, Murray cita a epígrafe que reproduzi acima.

Num texto curto como este que escrevo, vale a pena apontar o que me parece mais ridículo. E, se faço isso, é porque percebo que no plano da infantilização geral importada dos Estados Unidos os casos citados para a comprovação de que o Ocidente é de fato terrível são igualmente próximos do chiste.

Ficamos sabendo que Ibram X. Kendi publicou um livro chamado Antiracist Baby (New York: Penguin, 2020) dirigido para crianças entre 0 e 3 anos de idade. Bestseller número 1 no The New York Times, e, de acordo com Kendi, um livro para “tornar a equidade uma realidade”. O autor sugere que uma criança de três anos deve “usar suas palavras para falar de raça”, “apontar as políticas, não as pessoas, como o problema”, “derrubar a pilha de bloqueios culturais” e “confessar quando for racista”. (Murray, p. 39).

Resta pensar aqui que a teoria da aprendizagem de Jean Piaget (1896-1980) jamais foi sequer sonhada, quanto mais conhecida. Sendo assim, uma criança deve ser capaz de compreender abstrações aos três anos de idade. Diga-se um tipo específico de abstração: a política e a autoconsciência de que se é preconceituoso.

Repercutindo essa estratégia, o Departamento de Educação do Arizona publicou um kit de ferramentas de equidade, apontando que os bebês brancos é que são o problema – mesmo porque, nesse caso, as expressões de preconceito racial atingem o ponto mais alto entre os quatro e cinco anos de idade. Já as crianças negras e latinas (latinxs, no original) estariam fora desse contexto, uma vez que não manifestariam nenhuma preferência por seus próprios grupos.

Outro caso que nos interessa apresentar aqui é o movimento que partiu da Universidade Estadual de Washington, que defendeu a ideia de que quem aceita que 2 mais 2 é 4 é herdeiro de uma tradição imperialista e ocidental colonialista, que se apega a esse resultado como a única verdade possível. Segundo Murray,

outros concordaram que era óbvio que o resultado de 2 mais 2 não podia ser 4, para o que deram várias razões, que incluíam (mas não se limitavam a) afirmações de que a soma de 2 mais 2 é igual a 4 é parte de “uma narrativa hegemônica”, que as pessoas que impõem tais narrativas não deveriam decidir o que é verdade, que a soma 2 mais 2 deveria resultar no que as pessoas quisessem e que fazer uma afirmação tão definitiva exclui outras formas de saber. (Murray, pp. 169, 170).

Antes de conhecer essa causa, eu costumava fantasiar que pudesse existir um ativismo contra a lei da gravidade, exatamente por ela ser tão autoritária. Como assim todos os corpos são atraídos pela Terra? Hoje percebo que um movimento desse tipo pode realmente existir, sendo um caso de terraplanismo com viés de esquerda.

Difícil supor como chegamos a esse ponto. Pode ser pelo fascínio exercido pelos pensadores da tradição de crítica à cultura ocidental. Pode igualmente ser uma permanência do sentimento de culpa, tão presente na herança judaico-cristã. Quem sabe se, ao nos posicionarmos dessa maneira, não aspiramos por revelar o nosso lado mais vaidoso, que é o de tornar pública a nossa comiseração, figurando magnanimidade? Creio que Nietzsche concordaria que no Ocidente demonstramos a nossa superioridade quando exibimos o que nos avilta.

Veja a LABÔ Lecture com Fernando Amed:
https://offlattes.com/archives/12447

Entre em contato com a coluna
labo.behavior@gmail.com

Sobre o autor

Fernando Amed

Doutor em História Social pela USP. Historiador pela FFLCH da USP, professor da Faculdade de Comunicação da Faap e do curso de Artes Visuais da Belas Artes de São Paulo, autor de livros e artigos acadêmicos. Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Comportamento Político do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.