Arte Sacra Contemporânea: Religião e História

Cláudio Pastro na terceira edição típica do Missal Romano

A terceira edição típica do missal romano, que entra em vigor no Brasil a partir do primeiro Domingo do advento (03 de dezembro), traz croqui do artista sacro brasileiro Cláudio Pastro, que completaria setenta e cinco anos neste ano. A data também é significativa porque celebramos os sessenta anos da publicação do Documento Conciliar do Vaticano II Sacrosanctum Concilium, sobre a sagrada liturgia da Igreja. Antes, porém, de falarmos de Cláudio Pastro no missal, vale contextualizar as circunstâncias que originaram o missal romano e a necessidade de novas edições.

O missal romano contém a tradição orante da assembleia cristã, pois a Igreja Católica manifesta a sua fé mediante ritos e preces (per ritus et preces), sendo ele um fruto maduro de um longo período de experiência, história e oração. Em São Justino, século II, encontramos em seus escritos a respeito da forma de celebrar, as palavras: ministério, presidência, homilia, oração dos fiéis. A Tradição apostólica atesta o surgimento de sacramentários (orações que o presidente da celebração deveria dizer), oração coleta, sobre as oferendas e comunhão. Encontramos outros livros para os demais ministérios existentes: ordo, gradual, lecionário/evangeliário. A celebração desse período é comunitária e ministerial, havendo também uma maior liberdade e espontaneidade para a celebração da Eucaristia (cf. NEUNHEUSER, 2007, pp. 59-84).

Nos séculos VII-VIII, esses livros são copiados à mão e levados para o norte da Europa. Foram introduzidas novas orações, rituais e outros elementos não pertencentes à Igreja de Roma. No século IX, a liturgia se concentra nos sacerdotes, com isso surgindo a missa privada. Desse modo, houve a necessidade de um único livro para “dizer” a missa. Nasce, portanto, no final do século IX e início do século X, o missal de forma primária. Vale ressaltar que a celebração dá ênfase ao sacerdote celebrante, com ausência de ministros e a assembleia celebrante praticamente desaparece.

Efetivamente, temos o missal no século XI. Os monges trazem o missal para a Itália novamente. Devagar, Roma vai abandonando os diversos livros que usava para a celebração e o papa assume o missal para celebrar na capela papal com a cúria romana. Vários ritos e livros são utilizados para as celebrações, mas é a partir do século XVI, com o advento da Reforma Protestante que a Igreja Católica assumirá uma única forma de celebração para o Ocidente. Visando manter a unidade, convoca-se o Concílio de Trento, e se adotam livros únicos: o Breviário e o Missal Romano, este pela primeira vez usado por toda a Igreja espalhada pelo mundo. O missal tridentino é o modelo da missa que o papa celebrava privadamente. Desaparecem a homilia, a oração e a participação dos fiéis, aumentam os gestos, inclinações, genuflexões e beijos.

O Concílio Vaticano II (1962-1965), visando o ad fontes e o aggiornamento, bebe na fonte dos Padres da Igreja, e a mudança de mentalidade suscitada pelo Concílio, refletirá no missal romano, considerando que a Igreja celebra aquilo que crê, e crê aquilo que celebra, eis o axioma lex orandi, lex credendi. De acordo com a Instrução Geral do Missal Romano: “no novo missal, a regra de orar (lex orandi) da Igreja corresponde à perene regra de crer (lex credendi)” (IGMR, n. 3).

Recuperando a eclesiologia de Povo de Deus, visando intensificar a vida cristã e tendo em vista que a liturgia é o cume para o qual tende a vida cristã e a fonte donde emana sua força (cf. SC, n. 10), o Papa São Paulo VI determinou a revisão dos livros litúrgicos: “revejam-se, quanto antes, os livros litúrgicos das diversas regiões com o auxílio de peritos e de acordo com os bispos” (SC, n. 25), promulgando a 1ª edição típica do missal romano em 1970, a ser traduzido em vernáculo pelas Conferências Episcopais de cada país. Essa primeira edição passou a ser usada no Brasil em 1973. Novos santos e novos textos precisaram ser inseridos no missal, de modo que uma 2ª edição foi publicada em 1975, chegando ao Brasil em 1991, edição que utilizada até o presente momento.

O Papa São João Paulo II publicou 3ª edição típica do missal romano em 2002, revista em 2008. Nela, foram acrescentados novos santos e foram feitas algumas alterações. A partir de então, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, por meio da CETEL (Comissão Episcopal para a Liturgia), começou o processo para a tradução da terceira edição típica do missal romano. Foram longos dezoito anos de reuniões, discussões, consultas a peritos, tradutores, maestros, professores, padres e bispos. Os textos traduzidos foram submetidos à plenária da 59ª Assembleia Geral da CNBB, em 2022, votados e aprovados. Em seguida, os textos foram enviados ao Dicastério para Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, e entregues também ao Papa Francisco. O referido Dicastério confirmou e aprovou a tradução brasileira no dia dezessete de março de 2023.

Não se trata de um novo missal, mas sim de uma nova tradução. Além disso o livro ganhou outra edição e diagramação. Conta com partituras para suscitar o canto do ministro e da assembleia celebrante, dentro do corpo do texto. A segunda edição trazia algumas poucas ilustrações em preto e branco, já a terceira edição apresenta as ilustrações coloridas, com a arte do artista sacro brasileiro Cláudio Pastro (1948-2016).

O Santuário Nacional de Nossa Senhora Aparecida cedeu alguns croquis de Cláudio Pastro para a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, para comporem o missal. Alguns desses croquis estão retratados nas paredes do Santuário Nacional – como os que estão na Capela São José, situada no interior da igreja –, outros são inéditos e nunca foram executados.

A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, através da CETEL, faz um esforço para que o livro litúrgico mais importante para a celebração da Eucaristia, após o Evangeliário, seja belo, digno, de nobre simplicidade, sendo por si só uma obra de arte. Mas a Comissão quis também que o livro, em seu interior, trouxesse a arte litúrgica de Pastro, que será um elemento não de menor importância para propiciar um encontro com o Mistério.

Desse modo, as ilustrações de Pastro se espalham pelo missal nos diversos tempos litúrgicos: Advento, Natal, Quaresma, Páscoa, Tempo Comum. Nas Solenidades e Festas, tais como São José esposo de Maria, Anunciação, Visitação e Apresentação de Jesus no Templo. Ilustra algumas memórias, orações eucarísticas, apresentando ainda outros símbolos: pássaros, peixes e anjos. De acordo com o artista: “A arte tem valor sacramental e é simbólica, isto é, sinal de união. Não é o tema que faz a arte e sim a forma. A arte de culto indica a Presença, é a imagem do Invisível, leva à contemplação” (PASTRO, 2014, p. 82).

Por tudo isso, a nova edição do missal propiciará, ao presidente da celebração e aos demais envolvidos na preparação das celebrações, um contato profundo com a dimensão simbólica e litúrgica da celebração eucarística e dos mistérios da fé. Segundo Pastro: “Os livros usados na celebração litúrgica são ‘sinais e símbolos das realidades celestes na ação litúrgica e, como tal, devem ser dignos, decorados e belos” (PASTRO, 2014, p. 171).

O missal contém a tradição orante da Igreja. Milhares de pessoas, ao longo dos séculos, com ele rezaram e a partir dele puderam fazer a experiência com Deus. Ao introduzirem arte litúrgica em páginas, a Conferência Episcopal do Brasil dá passos significativos na redescoberta da arte e da beleza, no caminho da busca pela verdadeira Beleza.

Tendo em vista que todo o espaço celebrativo deve ser mistagógico, favorecendo o encontro com o Transcendente, as alfaias, vestes e objetos devem também ser litúrgicos, portanto simbólicos. Não é toda arte ou qualquer objeto que pode estar a serviço da celebração. Para Pastro: “Os sinais e imagens, como prolongamento da Palavra, constituem o Evangelho Encarnado, testemunham Jesus Cristo e evangelizam o homem contemporâneo. Tarefa artístico-pastoral é a evangelização através da imagem (as paredes, os objetos, as vestes, os vasos sagrados, os bancos, a música…)” (PASTRO, 2010, p. 293). Pode-se, assim dizer, que a arte litúrgica presente na edição brasileira do missal evangeliza e, ao mesmo tempo, cumpre a intuição do Concílio Vaticano II – que dentre vários temas na Sacrosanctum Concilium abordou a dignidade da arte sacra, no capítulo VII.

A terceira edição leva em consideração a beleza do livro litúrgico e a arte nele contida. Assim, Pastro passa a ser conhecido e reconhecido em quase todas as igrejas católicas do Brasil, considerando que o missal estará presente desde as catedrais até as comunidades rurais, distantes dos grandes centros. De algum modo, a arte de Cláudio Pastro atinge agora todos os recantos do país. Espera-se, desse modo, que sua presença no missal sirva de incentivo para conhecer ainda mais a vida e a obra desse grande artista brasileiro que nos deixou em 2016 – ao mesmo tempo, em que impulsione as pessoas a mergulhar cada vez mais no mistério crido, celebrado e manifestado na arte litúrgica. Que a terceira edição do missal romano favoreça a acolhida da Presença e o encontro com o Belo.

Referências

CONCÍLIO ECUMÊNICO VATICANO II. Constituição Sacrosanctum Concilium: sobre a sagrada liturgia. São Paulo: Paulinas, 2002.

INSTRUÇÃO GERAL DO MISSAL ROMANO E INTRODUÇÃO AO LECIONÁRIO: texto oficial da terceira edição típica do Missal Romano. Brasília: Edições CNBB, 2023.

NEUNHEUSER, Burkhard. História da liturgia através das épocas culturais. São Paulo: Loyola, 2007.

PASTRO, Cláudio. A arte no cristianismo: fundamentos, linguagem, espaço. São Paulo: Paulus, 2010. PASTRO, Cláudio. Guia do espaço sagrado. 5 ed. São Paulo: Loyola, 2014.

Sobre o autor

Diego Willian dos Santos

Mestre em Teologia pela PUC-SP. Pós-graduado em Processos Formativos em Seminários e casas de Formação. Bacharel em Teologia pela Faculdade Dehoniana. Licenciado em Filosofia pela Universidade de Sorocaba. Coordenador do grupo Arte Sacra Contemporânea: Religião e História, do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.