
Na fábula A revolução dos bichos[1] (Animal Farm), de 1945, o ensaísta e crítico literário inglês George Orwell[2] dispôs de certos elementos, no enredo da trama de sua novela, que nos permitem pensar as ambiguidades da relação entre religião e política em nossa condição contemporânea. A despeito do livro ter sido escrito há mais de meio século, Orwell, como “um homem do nosso tempo”[3], foi capaz de antecipar criticamente o quadro por vezes contraditório que esse binômio pode assumir.
Orwell era geralmente visto como um tipo de socialista agnóstico, ou humanista ateu, que tinha pouca consideração pela religião organizada, especialmente as tradições cristãs de sua família. Entretanto, como nos apontou Michael Brennan, em seu livro George Orwell and Religion, o autor, particularmente na obra citada e no contexto da década de 40, está preocupado, entre outras coisas, com os efeitos destrutivos do totalitarismo secular que vinha preenchendo de modo indiscriminado o vazio deixado pelo declínio da religião estabelecida e da espiritualidade pessoal – bem como as incoerências das instituições religiosas diante dos regimes totalitários[4].
Os animais e a revolução
A obra A revolução dos bichos foi escrita no período histórico imediatamente após a Segunda Guerra Mundial, com profundas mudanças na geopolítica e cultura no mundo ocidental, e é considerada como uma das obras literárias mais importantes do século XX. O autor apresenta um tipo de distopia ficcional, que retrata as contradições do socialismo de modo alegórico e satírico, tal como se desenvolveu na Revolução Russa, antiga URSS. Numa linguagem antropomórfica, Orwell conta a história da ascensão e ruína da revolução de um grupo de animais, que, diante da situação de exploração que os humanos lhes impunham, buscaram desenvolver uma sociedade na qual viveriam igualitariamente como seres livres, felizes e realizados. Todavia, como mostra o desenrolar da narrativa, esse projeto estará fadado ao fracasso, pois alguns dos animais, de modo semelhante aos humanos, começam a explorar os seus pares, buscando privilégios e luxos, tiranizando o restante dos bichos. A obra tem um fim relativamente em trágico, porém aberto, provocando o leitor a interagir do desfecho, embora marcado por um pessimismo fundamental.
No livro, todos os personagens possuem um correspondente com figuras históricas reais. Por exemplo, o Sr. Jones é fazendeiro da granja que explora os animais (representando a burguesia e o capitalismo); o porco Major, idealizador da revolução, é Marx. Os porcos Bola-de-Neve e Napoleão são Trorsky e Stálin, respectivamente; temos Garganta, o porco que é um tipo de defensor e propagandista do regime; Sansão, o cavalo trabalhador, alusivo aos trabalhadores comprometidos com os sistemas; as ovelhas, propagadoras do regime; os cachorros, símbolos da repressão violenta; e, entre outros animais, de maneira especial, destacamos o corvo Moisés, que personifica a religião.
O corvo Moisés e a religião
O corvo Moisés, que personifica a religião na distopia, é mencionado em pelo menos quatro ocasiões ao longo de toda a obra. Nas primeiras cenas, Moisés é apresentado como uma figura domesticada e alimentada pelo Sr. Jones, que servia a propósitos conspiratórios, adotava uma retórica alienante de um paraíso celeste (Montanha de Açúcar-Cande), não tralhava e não possuía prestígio diante do governo dos porcos, com exceção de alguns poucos adeptos entre os animais da granja. Quando ocorre a revolução dos bichos contra os humanos, Moisés levanta voo do poleiro e bate asas granando para longe, ficando desaparecido por muitos anos. Quase na parte final da história, no período do verão, o corvo Moisés reaparece inesperadamente, depois de muito tempo, sendo o mesmo de antes, não trabalhando e contando suas histórias. Neste retorno, em razão do contexto de fome e trabalho dos animais, e com a barrocada da revolução, mais bichos começaram a acreditar em suas pregações. Mesmo não sendo possível determinar com exatidão a atitude dos porcos em relação a Moisés – uma vez que afirmavam que suas histórias eram completamente mentirosas – eles o deixaram permanecer na granja, sem trabalhar e com direito a algumas poucas regalias. A última referência ao corvo Moisés é no capítulo final, no qual está disposto que ele, junto com alguns outros poucos animais, era dos únicos que mantinham alguma lembrança da rebelião de outrora, enquanto o fato tinha caído no esquecimento para os demais.
Muito embora o corvo Moisés seja o personagem emblemático da religião na fábula, pode se perceber claramente que a questão religiosa transborda essa figura para outros elementos narrativos. Para além da escolha do corvo como símbolo mítico em diversas tradições religiosas, bem como do personagem judaico-cristão de Moisés, na Torá Hebraica – que se referem diretamente à cristandade europeia no período do pós-guerra – temos os mandamentos do Animalismo como uma alusão ao decálogo hebraico, as reuniões dominicais dos animais da granja, com prédicas e canções, como um tipo de culto secular político-religioso.
Entre política, bichos e religião
Na trama mais ampla de A revolução dos bichos, a religião é marcada por alguns elementos que queremos destacar a partir de uma interpretação não só daquele contexto, como também, para nossa realidade hoje. Primeiramente, a religião dos bichos é aquela que empresta ou tem sequestrada sua estrutura simbólica para legitimar ideologias de dominação que queiram se impor politicamente sobre os indivíduos. Na história, o corvo Moisés não intervém e é conivente com o uso da linguagem e imaginário de viés religioso para acomodar o projeto político dos porcos aos animais. Outro aspecto interessante é que essa religião é aquela que, ao invés de se opor às formas de opressão, serve como um tipo de “adestradora” das consciências e expectativas, de modo a favorecer a servidão voluntária, inviabilizando a consciência crítica por parte dos membros da sociedade. Ao contrário de se opor aos exageros e equívocos do porco Napoleão, os discursos do corvo acabam servindo para viabilizar a exploração dos animais pelos mais fortes e inteligentes.
Em terceiro lugar, a religião dos bichos é aquela que se torna cúmplice do uso da violência, do discurso de ódio e da incitação contra as estruturas sociais para coagir os outros a se enquadrarem nas visões e projetos totalitaristas. Mais para o fim da história, surgem as figuras dos cachorros adestrados pelos porcos, que acabam sendo utilizados para repressão de pensamentos divergentes. Tal religião também se baseia em supostas teorias conspiratórias, releituras de fatos históricos e ressignificação de discursos sob a narrativa messiânica de determinados líderes autoritários. Moisés, o corvo, mais uma vez condescendente com os porcos, ajusta-se à nova narrativa dos acontecimentos do passado recontadas por Napoleão e Garganta para legitimar o governo supostamente perfeito dos porcos.
Por fim, a religião dos bichos é aquela que se torna cúmplice de projetos totalitários, na medida em que perde sua relativa autonomia, seja diretamente apoiando estes regimes, seja como aparelhada em função das vantagens e privilégios de que dispõe com essa relação – como quando o corvo Moisés, ao voltar ao enredo no desfecho da obra, é liberado pelos porcos de trabalhar, além de receber diariamente aperitivos para seu deleite. Assim, na obra, a religião destes animais acaba tendo seu potencial revolucionário subtraído pela revolução totalitária que os subjuga a uma forma de alienação conveniente a este sistema político.
Orwell, o “religiofascismo” e a tragédia brasileira
A fábula de Orwell descreve – a partir do seu próprio contexto histórico – a religião no cenário de um declínio e enfraquecimento do cristianismo na cultura ocidental; seu envolvimento pernicioso com os regimes totalitários, por sua conivência e desejo de estar ao lado do poder. Muito embora Orwell não coloque na conta exclusiva da religião o fator principal ou o elemento de legitimação dos regimes totalitários, não é difícil fazer a correlação dessa sátira com as crises e contradições religiosas, sobretudo da igreja cristã, experimentada no contexto da crítica da sociedade moderna e da cultura secular diante dos contornos religiosos que muitas das vezes são associados aos imperialismos e totalitarismos. Mesmo depois de um tipo de ressurgimento da religião na contemporaneidade, ela retorna instrumentalizada no espaço público pelos interesses e projetos políticos de regimes totalitários ou imperialistas. Orwell nos advertiu igualmente para o perigo de que, no enfraquecimento da religião institucional, uma nova religião secular, fundada nas ortodoxias totalitárias, assuma o contexto de devoção e culto na sociedade ocidental.
As críticas de Orwell à contraditória e nefasta relação entre a religião e os regimes totalitários são pertinentes atualmente, diante do cenário político dos últimos anos, não só no Brasil, mas também em diversas partes do mundo. A ascensão de novos e recompostos totalitarismos, associados a um tipo de “religiofascismo”, seja ligado às extremas-direitas ou às esquerdas radicais, nos alertam para os perigos dessa interpenetração catastrófica. Mesmo quase 80 anos depois da sua morte, Orwell continua importantíssimo para discutirmos a religião no contexto das formas de governo autoritárias e dos mecanismos antidemocráticos presentes em nossas sociedades.
No desfecho de A revolução dos bichos, sabemos que a revolução foi uma fraude. E a questão que se coloca é: qual o desfecho da religião para a trama do nosso tempo? Como no final da fábula, em que os animais não conseguiam mais distinguir entre os porcos dos humanos e vice-versa, concluímos dizendo que a combinação por vezes promíscua e desmedida entre religião e política nos coloca diante da mesma dúvida dos bichos da granja: agora, nos confundimos ao distinguir entre o que é religioso ou relacionado aos intentos totalitários, e vice-versa. Mais uma vez, a ficção como realidade, ou a realidade como ficção, sugere que aquilo que se apresenta primeiro tragédia se coloque agora como uma grande farsa para todos nós.
Notas
[1] O título original do livro é Animal Farm, e também traduzido para o português com os títulos: “Fazenda dos animais”, “Granja dos bichos”.
[2] Pseudônimo adotado em 1932 por Eric Arthur Blair. Orwell é possivelmente um dos escritores mais importantes e lidos do século XX. Suas obras e ideias usufruem de enorme popularidade ao longo dos anos, sendo seus livros traduzidos, censurados, elogiados, desqualificados e difundidos por todo o mundo. Orwell, que é filho de pai inglês e mãe francesa, nasce em 1903, na Índia, que na época em que ela era uma colônia inglesa, mas ainda na sua primeira infância foi para Londres. Antes de ganhar a vida como escritor, serviu durante sua juventude ao exército inglês na Guerra Espanhola na Catalunha e na Guerra na Birmânia, atual Myanmar, e viveu por um tempo, por causa de problemas financeiros, nas regiões marginalizadas de Paris e Londres. Faleceu em 1950.
[3] BRADFORD, Richard. Orwell: um homem do nosso tempo. São Paulo: Tordesilhas, 2020.
[4] BRENNAN, Michael. George Orwell and Religion. London: Blommsbury, 2017, p.XI. e p.137.
Imagem: Bobby Proffer/Wikimedia Commons
