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Sobre ser moderado e, mesmo assim, não ser estoico

O estoicismo tem alcançado apelo no contemporâneo mesmo que continue a ser uma prática quase impossível de ser realizada. Gestada em meio à continuidade da demanda por temas alheios ao cotidiano mais prosaico, a corrente estoica se destacou entre tantas outras que se manifestaram, como é comum se reportar, em meio à decadência dos grandes sistemas filosóficos na antiga Grécia e da sociedade como um todo.

Não é incômodo algum pensar que as diferentes escolas de pensamento – ceticismo, cinismo, epicurismo e o próprio estoicismo – contavam com a procura de quem mantivesse o seu interesse pelo conhecimento, não exatamente o filosófico. Ainda não tínhamos entrado em uma era em que os produtos da reflexão conceitualmente articulada serviriam apenas para a elaboração de provas ou concursos. Para Ilaria Gaspari,

“a filosofia era então, em primeiro lugar uma escolha, uma maneira de viver, e era de fato praticada nas escolas: e as escolas – que floresceram durante toda a época helenística, conhecendo um enorme sucesso em tempos semelhantes ao nosso sob muitos aspectos, tempos de transformação e de crises, e de busca ansiosa pela felicidade – não eram lugares onde se estudava e pronto. Eram verdadeiras comunidades, associações livres, cujos discípulos se reuniam em torno de um mestre que não falava para construir instantaneamente estruturas conceituais mirabolantes, mas para formá-los”. (Lições de Filosofia. Belo Horizonte: Editora Âyiné, 2020, p.12).

Alcançar a ataraxia, a tranquilidade de alma, e viver de modo a não ser incomodado pelos ruídos vindos do exterior, vem sendo visto como o mais importante objetivo dessas correntes filosóficas que se forjaram na troca de experiências, no compartilhamento de dúvidas e na averiguação do que se julgava bom. Afastados do itinerário conceitual de Platão, mas mantendo o ímpeto socrático do corpo a corpo como meio de se alcançar as evidências, as chamadas escolas helenísticas também deviam a Aristóteles o contato diuturno com a empiria.

Pode ser que, por isso mesmo, os relatos que nos chegaram guardem um aspecto mais disperso, estabelecendo-se a partir de mobilizações específicas, quais sejam, a ira, a brevidade da vida ou da ausência da necessidade de se preocupar com os deuses. Das escolas apontadas aqui, coube ao ceticismo uma maior aproximação à epistemologia e isso, como se sabe, por se dedicarem à disposição de argumentos que viessem a conduzir à epoché, ou seja, à suspenção do juízo. O cinismo abriu espaço para a estética das atitudes e comportamentos que viessem a confrontar os costumes socialmente aceitos. Já o epicurismo e o estoicismo voltaram-se para uma reflexão que conduzisse a um exercício de vida em que a moderação viesse a se opor aos extremos. Entre as duas escolas que se assemelhavam é intrigante perceber o espaço concedido ao prazer, caso específico do epicurismo. O prazer dito negativo é aquele que se manifesta na virtude de se abster de algo que pode nos trazer a dor. Já para os estoicos, o prazer, quando tomado pelo que nos estimula quando vindo do exterior, sequer deve ser levado em consideração. Nada do que venha de fora deve nos excitar e o que quer que seja que nos traga bem ou mal somente se encontra no nosso interior.

Costumo confrontar os meus alunos com a proposta de se imaginar a possibilidade de se ser estoico no mundo contemporâneo. Como sobreviver sem se envolver com trends, sem deixar ser pilhado pelos haters ou sem se mobilizar pelas “engenharias do caos” ou pelas “máquinas do ódio”? Mas, observo que semelhante proposta esbarra em uma distração de origem. E num desrespeito. Digno de nota é percebermos que os antigos enfrentavam grandes problemas sem as alternativas que julgamos naturais nos dias de hoje. Mesmo que passíveis de serem vistas como de alcance limitado, temos ao nosso dispor toda uma parafernália de meios específicos e que passam pelos diagnósticos, pelas formas diferentes de tratamento, sejam eles farmacológicos ou terapêuticos.

Mesmo assim, dificilmente conseguiríamos dar conta de saber em que época seria mais difícil agir de modo estoico, mesmo porque a envergadura dessa proposta melhor se apresenta nos momentos de grande privação. Parecer ou ser moderado, ou dedicar-se a essa prática, bem se conforma a uma busca que se realiza no cotidiano e de modo silencioso e quase desapercebido.

Um primeiro passo bem poderia ser o de começarmos a suspeitar da necessidade de que precisemos de estímulos constantes para que a sensação de se estar vivo se manifeste a partir de cores, gostos, cheiros, ruídos ou toques. Sugestões como essas nos sinalizam a facilidade com que uma reflexão tão densa quanto a propiciada pelo estoicismo consegue ser oferecida e vendida como um produto da autoajuda ou da moda do coaching.

Diante da necessidade urgente de termos que nos destacar nos posts diários, as pérolas do estoicismo mais servem como antídoto ao que primeiramente foi essa experiência de compartilhamento de sabedoria. Transparecer moderação pode ser um meio eficaz para mais tempo pertencer a uma patota que lhe dá abrigo, comida e roupa lavada: nada do que já não tivesse sido concebido pela moral burguesa das aparências nas cidades europeias do século XIX.

Veja a LABÔ Lecture com Fernando Amed:
https://offlattes.com/archives/12447

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Sobre o autor

Fernando Amed

Doutor em História Social pela USP. Historiador pela FFLCH da USP, professor da Faculdade de Comunicação da Faap e do curso de Artes Visuais da Belas Artes de São Paulo, autor de livros e artigos acadêmicos. Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Comportamento Político do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.