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O que você deveria saber sobre ataques a civis em guerras

Se, por um lado, o efeito moral causado pelos bombardeios de áreas habitadas por civis serviu para enfraquecer a credibilidade do regime nazista na mente de alguns alemães, ao mesmo tempo fortaleceu sua credibilidade na mente dos outros. Uma mulher, Irma J., escreveu uma carta não solicitada a Goebbels, exigindo “em nome de todas as mulheres alemãs e mães e das famílias de quem vive aqui no Reich” que “vinte judeus fossem enforcados para cada alemão morto no lugar onde nosso indefeso e inestimável povo alemão tem sido morto de maneira bestial e covarde pelos pilotos do terror”. Georg R. escreveu de Berlim em tom parecido. “Tendo sido queimado uma vez, e bombardeado duas”, ele exigiu, indignado: “Não ao extermínio do Povo Alemão e da Alemanha, mas, pelo contrário, o completo extermínio de judeus”. Niall Ferguson. A guerra do mundo: a era de ódio na história. São Paulo: Planeta, 2015, p. 676.

Por mais que indivíduos cultos e preocupados com os seus semelhantes queiram transparecer, eles nada entendem de história e, por isso, dos seus dilemas mais aparentes ou profundos. Para além do cotidiano tomado por cafés, encontros de trabalho, comemorações de aniversários, jantares ou almoços cordiais, os eventos mais trágicos parecem estimular as opiniões forjadas no embalo. Não é para menos: as tragédias possibilitam a autopromoção nas redes sociais uma vez que dão oportunidade para quem quer se apegar a uma credencial qualquer que lhe habilite a se pronunciar sobre o caso.

Na minha bolha, vejo esse procedimento com frequência. Incrível o número de pessoas que parecem ter soluções para os conflitos mais complexos, mesmo que não tenham para si mesmos. O comportamento padrão nas redes dos mais abastados estimula o desejo de salvar o mundo falando sobre o assunto que for não importando o grau de conhecimento necessário para tanto: felizes os que se confortam com as pautas geradas por algoritmos!

Vejamos um caso. A epígrafe acima faz parte da introdução de uma situação ocorrida em parte do ano de 1944. Tratava-se do bombardeio aéreo de cidades alemãs como meio de enfraquecer o inimigo. Naquela época – trigger warning! – até russos e norte-americanos concordavam que os nazistas eram os inimigos e que por isso, deveriam ser neutralizados de modo radical.

O historiador Niall Ferguson recupera então as discussões havidas e que levavam em consideração os componentes morais: se os ataques aéreos matassem um número expressivo de civis, eles fariam com que os aliados se aproximassem da sordidez dos inimigos que queriam destruir? Já um outro ponto de vista era aquele que defendia o bombardeio estratégico, ou seja, buscando focar as áreas ocupadas pelas plantas fabris e que produziam armas, munições ou veículos militares. Além disso, também se ponderava se a desmoralização do povo alemão sob o ataque massivo poderia contribuir para que o fim da guerra fosse abreviado. A citação no início dessa coluna nos leva a crer que essa expectativa não viesse a contar com unanimidade.

Vejamos por exemplo, o caso de Dresden. Essa cidade industrial era de grande importância para os interesses beligerantes dos nazistas, possuindo uma “multiplicidade de instalações telefônicas e de linhas férreas”. E para que a derrota alemã se aproximasse, era necessário que esse poderio econômico fosse destruído. Mas havia outro problema: Dresden ficava na frente oriental, próxima então do percurso da invasão dos russos. Para os aliados, era providencial que o poder de ataque da força aérea fosse reconhecido também pelos russos.  Era igualmente necessário refletir sobre o impacto econômico dos bombardeios, ou seja, colocava-se no cálculo a vida útil dos aviões aliados, bem como a diferença entre a produção real e a potencial nos territórios nazistas que eram destruídos. Além disso, quanto mais homens fossem destinados à defesa, menos braços os alemães teriam na produção de armas.

É claro que esse aprofundamento no conflito não era sequer mencionado nos meios de comunicação de massa da época que procuravam vestir os uniformes de um ou outro lado do conflito. E, no mais, os leitores que estivessem no sossego de seus lares, deviam elaborar os seus juízos de forma semelhante ao que hoje ocorre, mesmo que seguramente com mais discrição.

Quase oitenta anos se passaram desde o fim da Segunda Guerra Mundial e mesmo assim, algumas contas não se fecham com facilidade, uma vez que elas implicam em vidas civis que se perderam. A esse respeito, a conclusão de Ferguson é lapidar:

“O bombardeio dos aliados foi tão indiscriminado quanto a política racial nazista foi meticulosamente discriminadora. A diferença moral – que tem sido esquecida por alguns escritores alemães – é que as tripulações do comando de bombardeio estavam voando em suas missões com o objetivo de derrotar a Alemanha nazista e acabar com a guerra. Quer este tenha sido ou não o melhor modo de alcançar este fim não cabia a eles decidir; o intuito deles não era desonroso. Para os nazistas, que isso seja reiterado, a morte dos judeus e de outros civis “intrusos” sempre foi um fim por si só. O ódio tomava conta da mente dos homens da SS em Belzec; ele estava ausente dos pensamentos dos pilotos aliados”. (Ferguson, p. 683).

Parece-nos necessário lançar luz sobre esses aspectos uma vez que eles matizam a complexidade das escolhas políticas, especialmente em um momento de guerra contra um inimigo não convencional, posto que havia naturalizado a prática do extermínio de uma etnia.  As guerras podem fazer com que nos reconciliemos com a história e nos afastemos dos contos de fada padronizados e presentes nas narrativas do contemporâneo.

Veja a LABÔ Lecture com Fernando Amed:
https://offlattes.com/archives/12447

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Sobre o autor

Fernando Amed

Doutor em História Social pela USP. Historiador pela FFLCH da USP, professor da Faculdade de Comunicação da Faap e do curso de Artes Visuais da Belas Artes de São Paulo, autor de livros e artigos acadêmicos. Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Comportamento Político do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.